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Jurisprudência comentada: STJ - 3ª Turma - Arrendamento mercantil. Reintegração de posse. Adimplemento substancial

Agenda 31/03/2014 às 18:19

Análise da teoria do adimplemento substancial à luz da doutrina e jurisprudência. Com fundamento no princípio da boa-fé, a tese objetiva assegurar o cumprimento da função social dos contratos, em homenagem ao princípio da conservação dos contratos.

Trata-se de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente em desfavor do recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento mercantil (leasing) para a aquisição de 135 carretas. A Turma reiterou, entre outras questões, que, diante do substancial adimplemento do contrato, qual seja, foram pagas 30 das 36 prestações da avença, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Ressaltou-se que a teoria do substancial adimplemento visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos aludidos princípios. Assim, tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, daí a expressão “adimplemento substancial”, limita-se o direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma demasia. Dessa forma, fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato. Dessarte, diante do substancial adimplemento da avença, o credor poderá valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, mas não a extinção do contrato. Precedentes citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 1.051.270-RS, DJe 5/9/2011, e AgRg no Ag 607.406-RS, DJ 29/11/2004. REsp 1.200.105-AM, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 19/6/2012.

SÍNTESE: Há quase uma década o STJ vem aplicando a teoria do adimplemento substancial para mitigar as regras contidas nos arts. 475 e 476 do CC/2002, que disciplinam, respectivamente, a resolução do contrato e a exceção de contrato não cumprido. Com fundamento no princípio da boa-fé, essa tese tem por finalidade assegurar o cumprimento da função social dos contratos, em homenagem a outro princípio igualmente relevante na seara contratual, qual seja, o da conservação dos contratos. Além do precedente em destaque, podem ser citados os seguintes julgados acolhendo a teoria do adimplemento substancial no âmbito do Tribunal da Cidadania: STJ AGA 607.406/RS (venda com reserva de domínio) e REsp. 469.577/SC (alienação fiduciária).

COMENTÁRIOS:

É com vistas na nova mentalidade que orienta o Direito Privado que a teoria do adimplemento substancial (substantial performance) tem merecido acolhida na jurisprudência pátria. No âmbito do STJ, faz quase uma década que a tese chegou às Turmas de Direito Privado que compõem aquela Corte Superior (3ª e 4ª Turmas).

Segundo Fernando Augusto Chacha de Rezende, pode-se infirmar que a teoria do adimplemento substancial é proveniente do direito inglês que possui suas origens arraigadas no commom law” (REZENDE, Fernando Augusto Chacha de. Teoria do adimplemento substancial e boa-fé objetiva - necessária exegese conjunta dos institutos. Disponível em http://www.lfg.com.br. 13 de novembro de 2008).

No Brasil, inspirada em grande parte no microssistema protetivo do consumidor, as diretrizes teóricas do vigente Código Civil acabou por reforçar a leitura dos institutos do Direito Privado à luz das normas constitucionais (e vice versa) dando lugar ao chamado Direito Civil Constitucional, cuja proposta é exatamente a de estudar o Direito Privado sob a ótica da Constituição Federal, e esta também à luz da ótica do direito comum. Nesse contexto, destaca-se a função social dos contratos, firme nos princípios da boa-fé, da equidade, da solidariedade, da eticidade e da socialidade – reitores da atual sistemática civilista.

Com base nesses princípios informadores é que os tribunais pátrios vêm acolhendo a teoria do adimplemento substancial, sendo que, no âmbito do STJ, os colegiados de Direito Privado (3ª e 4ª Turmas) há quase uma década acolhem a tese, que, consoante destacado no julgado, visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos aludidos princípios”.

A reforçar a função dessa importante teoria, pode-se destacar o Enunciado nº 361, aprovado na IV Jornada de Direito Civil – CJF/STJ, assim redigido: “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.

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O dispositivo referido pelo verbete é o art. 475 do Código Civil, que assim dispõe:

Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Analisando friamente o dispositivo, em tese poderia a parte prejudicada pelo inadimplemento promover a resolução do contrato. Contudo, do ponto de vista da personalização do direito (expressão utilizada por Gustavo Tepedino), segundo o qual os contratos têm por função atender os interesses da pessoa humana (TARTUCE), esse direito potestativo pode sofrer limitações quando (in)justamente colidir com os interesses do parceiro contratual inadimplente, pois, conforme o caso, a falta contratual do inadimplente pode não ser de tamanha gravidade que justifique a resolução.

Na hipótese do julgado em comento, percebe-se que houve aplicação da tese a um contrato de arrendamento mercantil, impedindo a reintegração de posse pretendida pelo arrendante, por ter o órgão julgador considerado que, num universo de 36 parcelas, o pagamento de 30 prestações configura o adimplemento substancial do contrato. Ou seja, considerado em sua perspectiva global, a avença foi descumprida apenas formalmente. Embora não explicitado no informativo, houve, in casu, clara aplicação de dois princípios gerais do direito, qusejam: razoabilidade e proporcionalidade. De fato, não nos parece razoável e proporcional retirar o bem arrendado das mãos do arrendatário após ter quitado mais de 80% das prestações.

Corroborando nossa conclusão, colacionamos recente julgado do TJMG:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO - BEM ALIENADO FIDUCIARIAMENTE - PURGA DA MORA - PARCELAS VENCIDAS E ENCARGOS - VALOR DIMINUTO EM RELAÇÃO AO TOTAL DA DÍVIDA - PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE - A purga da mora se dá com o pagamento das prestações vencidas, e não das vencidas e vincendas, conforme recentes julgados desta Câmara e do STJ. - Acrescente-se que não se vê razoabilidade em privar a devedora alienante do bem, uma vez que o valor de toda a dívida encontra-se substancialmente saldado (Rel. Des. Mota e Silva, D. J. 08/02/2011).

Nesse julgado, o eminente relator cita a elucidativa lição dos professores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que também transcrevemos nessa oportunidade:

"Para quem possui uma percepção nítida da boa-fé objetiva, deve incluir-se entre as atribuições do magistrado análise da gravidade da infração contratual, não sendo crível o desfazimento de uma significativa relação jurídico-econômica pelo fato do insignificante descumprimento da avença. Em outras palavras, na linha do princípio constitucional da proporcionalidade, o desfazimento do contrato pode impor um sacrifício excessivo a uma das partes, comparativamente à opção de manutenção do contrato. Na falta de uma pequena parcela para o alcançe do adimplemento, é coerente que o credor procure a tutela adequada à percepção a prestação faltante (v. G., ação de execução ou monitória), e não a pura e simples resolução contratual.

Pois bem, em contratos de promessa de compra e venda e alienação fiduciária não são raras as situações em que o contratante praticamente liquida o débito, porém, ao final do negócio jurídico, sucumbe diante de pequena parcela do contrato. Em tese, o credor poderá ajuizar ação de reintegração de posse ou busca e apreensão e reaver o bem imóvel ou móvel, como consequência do surgimento da pretensão ao crédito, decorrente da lesão ao direito patrimonial. Nada obstante, a perda do bem vital (apartamento, automóvel) é um sacrifício excessivo ao devedor, em face do pequeno vulto do débito. Daí a abusividade do exercício do direito resolutório, concedendo-se ao credor a possibilidade de ajuizar a ação necessária ao recebimento do crédito" (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações, Lumem Júris Editora, 2009, 3ª edição, p.400).

A exemplificar outro importante campo de aplicação da tese do adimplemento substancial, transcreve-se a ementa de julgado versando sobre a resolução de contrato de plano de saúde:

SEGURO SAÚDE Ação principal de obrigação de fazer e ação cautelar de consignação em pagamento - Cancelamento automático de contrato de plano de saúde por inadimplemento de três mensalidades Prova nos autos de que a consumidora não recebeu os respectivos boletos para cobrança Resolução automática que infringe o próprio ajuste entre as partes e se mostra abusiva, por não permitir à consumidora a purgação da mora Aplicação da teoria do adimplemento substancial, pela qual não se justifica a resolução contratual por inadimplemento se houve descumprimento de escassa relevância, mantendo-se a utilidade, contudo, do recebimento das prestações pelo credor Manutenção do contrato entre as partes, após quitadas as parcelas contratuais na ação consignatória Ação principal parcialmente procedente e ação cautelar procedente Recurso não provido (Processo nº 2494720078260505 SP, Rel. Des. Francisco Loureiro, D. J. 16/12/2010, 4ª Câmara de Direito Privado).

De fato, imagine-se a situação de alguém que, por vinte anos, quitou regularmente as prestações de seu plano de saúde, mas que, por algum motivo, deixou de pagar as últimas mensalidades, e por isso lhe tem negada a cobertura prevista no contrato pela operadora do plano. Seria razoável e proporcional tal medida? Talvez, se ainda vivêssemos sob o regime privado anterior ao Código Civil de 2002, de forte índole individualista e patrimonialista.

Contudo, não é o que deve ocorrer nessa nova Era do direito obrigacional, que tem nos contratos sua expressão mais eloquente, pois, garantir direitos dessa natureza em detrimento do superprincípio da dignidade humana é inadmissível, o que resulta no salutar dirigismo estatal no sentido de se mitigar a autonomia privada, de modo a garantir a justiça e efetividade dos contratos.

Concluindo, a lei, como instrumento destinado a promover a justiça, garante a um dos contratantes o direito de resolver o contrato em caso de inadimplemento do parceiro contratual. Mas, quando esse direito é exercido de forma abusiva, como no caso em estudo, colidindo com os princípios afetos à dignidade humana, deve ser afastada para dar lugar ao direito. Como é corrente na doutrina, a lei é apenas o ponto de partida, e não o de chegada; é o referencial mínimo no qual o operador do direito deve se pautar, e por isso mesmo não é absoluto. Foi exatamente com base nessas premissas que a Terceira Turma do STJ afastou a regra do art. 475 do CC/2002 no presente julgado.

Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. Jurisprudência comentada: STJ - 3ª Turma - Arrendamento mercantil. Reintegração de posse. Adimplemento substancial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3925, 31 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27193. Acesso em: 26 dez. 2024.

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