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Bem comum e interesse público.

Uma análise a partir da noção de moralidade política em Nicolau Maquiavel

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3. O INTERESSE PÚBLICO

Ao iniciar sua análise sobre o conteúdo jurídico de interesse público, Ferraz Junior (1995, p. 10) declara que o interesse público configura uma afirmação de Direito Público que não exige prova para que se configure como verdadeira, induzindo a tratá-lo como um axioma, isto é, uma máxima.

O que se quer dizer é que o jurista brasileiro entendeu o interesse público da mesma forma como o fez o Secretário Florentino, já que "O bem comum é algo tão evidente para Niccolò que ele nunca se dá ao trabalho de especificá-lo".

3.1. NOÇÃO JURÍDICA DE INTERESSE PÚBLICO

No Direito Brasileiro, cumpre à Administração Pública "promover o bem de todos" (art. 3?, IV, da Constituição Federal). Logo, o interesse público foi alçado pela Constituição Cidadã ao status de objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, motivo pelo que esboçar uma noção jurídica para interesse público torna-se tarefa mais do que necessária.

Entretanto, parte da doutrina administrativista, especialmente Justen Filho (2013), tem defendido a tese da impossibilidade de uma definição precisa do que seja o interesse público, sob o argumento de que se trata de um conceito jurídico indeterminado.

Cabe registrar, por outro lado, a posição de Carvalho Filho (2011), para quem o interesse público tem natureza jurídica de conceito determinável. Dessa maneira, apesar da dificuldade no estabelecimento de sua noção, o interesse público pode perfeitamente ser circunscrito a existência de determinados elementos.

Com efeito, pode-se remontar os contornos jurídicos da noção de interesse público no Direito Administrativo Brasileiro das ideias do jurista italiano Renato Alessi, pela obra de Celso Antonio Bandeira de Mello, revelando-se interesse público quando configurar um "interesse coletivo primário". É o que se retira de Bacellar Filho (2010, p. 90):

Conquanto empregada com relativa frequência no âmbito da Administração Pública, a expressão "interesse público" revela um complexo significado. A doutrina italiana, multicitada no Brasil através da obra de Renato Alessi, mormente após a adoção de suas ideias por Celso Antônio Bandeira de Mello, lança mão da distinção entre interesse coletivo primário e interesses secundários para precisar o sentido de "interesse público", asseverando que este só se configurará quando coincidir com o primeiro (coletivo primário).

Por sua vez, também cabe ressaltar trecho da doutrina do próprio Bandeira de Mello (2009, p. 66), sobre as influências italianas para a estruturação do conceito de interesse público:

Esta distinção a que se acaba de aludir, entre interesses públicos propriamente ditos - isto é, interesses primários do Estado - e interesses secundários (que são os últimos a que se aludiu), é de trânsito corrente e moente na doutrina italiana, e a um ponto tal que, hoje, poucos doutrinadores daquele país se ocupam em explicá-los, limitando-se a fazer-lhes menção, como referência a algo óbvio, de conhecimento geral. Este discrímen, contudo, é exposto com exemplar clareza por Renato Alessi, colacionando lições de Carnelutti e Picardi, ao elucidar que os interesses secundários do Estado só podem ser por ele buscados quando coincidentes com os interesses primários, isto é, com os interesses públicos propriamente ditos.

A definição do interesse público pela separação entre interesses coletivos primários e interesses secundários parte do pressuposto de que o interesse público não se encontra exclusivamente na identificação do interesse do Estado.

Inclusive, Bandeira de Mello (2009, p. 65) adverte para o perigo que a concepção simplista de interesse público como interesse do Estado pode encaminhar o intérprete. Isto porque, o Estado, tal como os particulares, também é uma pessoa de direitos e deveres (in casu, uma pessoa jurídica) que "existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito".

Diante disso, a pessoa jurídica Estado pode possuir - e, de fato, apresenta - uma imensa gama de interesses individuais e que lhe são particulares. Ou seja, que não estão em sintonia com os interesses do conjunto social. Este conjunto de interesses individuais do Estado são denominados, por Bandeira de Mello (2009), como interesses secundários.

Repetindo as lições de Renato Alessi, Bandeira de Mello (2009) trata dos interesses secundários por meio de exemplos como a tributação, pelo Estado, em demasia dos seus administrados. Tal situação, por óbvio, enriqueceria o Erário, mas levaria todo o corpo social à pobreza, configurando-se, por vezes, em verdadeiro confisco. Além de afronta ao princípio tributário da proporcionalidade razoável, tal assertiva também ofenderia ao interesse público, já que, para Silva (2005, p.715), "o tributo não deve subtrair mais do que uma parte razoável do patrimônio ou da renda do contribuinte".

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Assim, observa-se que o interesse público difere dos interesses individuais e particulares, constituindo-se, portanto, no "interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social", como bem acentua Bandeira de Mello (2009, p. 59). Oportuno transcrever a declaração de caráter categórico de Bacellar Filho (2010, p. 93) de que "A Administração não deve cuidar de interesses do Estado, mas dos cidadãos."10.

Todavia, registre-se que não se pode cair no erro comum de supor que o interesse público é constituído apenas e tão somente de um "antagonismo entre o interesse das partes e o interesse do todo", o que foi muito bem definido por Bandeira de Mello (2009, p. 59) de "falso antagonismo".

O que se quer dizer é que o interesse público não pode ser confundido com um interesse autônomo, isto é, de algo que existe por si mesmo e que seja independente de todo e qualquer interesse das partes. Pelo contrário, para Bandeira de Mello (2009, p. 59) o interesse público tem como fundamental elemento o "interesse do todo", ou seja, uma "função qualificada dos interesses das partes", senão veja-se:

Poderá haver um interesse público que seja discordante do interesse de cada um dos membros da sociedade? Evidentemente, não. Seria inconcebível um interesse do todo que fosse, ao mesmo tempo, contrário ao interesse de cada uma das partes que o compõem. Deveras, corresponderia ao mais cabal contra-senso que o bom para todos fosse o mal de cada um, isto é, que o interesse de todos fosse um anti-interesse de cada um.

No mesmo sentido Justen Filho (2013, p. 150-151) afirma que "O interesse público não se confunde com o interesse da sociedade: [...] Não havendo vínculo com os interesses individuais concretos, surgiria o problema de determinar o conteúdo de natureza social".

Poderia, ainda, ocorrer a confusão em admitir que o interesse pública seria o mero somatório de interesses individuais ou, então, a média destes interesses particulares, o que não se justifica como verdadeiro.

Com efeito, como bem expõe Justen Filho (2013), admitir o interesse público como o somatório dos interesses individuais seria aniquilar a possibilidade de presença das minorias, o que configuraria em um ato claramente atentatória ao Estado Democrático11. Resumindo: na definição de interesse público não há um critério quantitativo, mas qualitativo - como já dito acima.

A título de exemplificação, a doutrina administrativista tem se utilizado do fenômeno da desapropriação para explicar o conceito de interesse público. Para Bandeira de Mello (2009), o administrado provavelmente terá interesse individual em não ter imóvel de sua propriedade objeto da desapropriação; mas, ao mesmo tempo, terá pessoal interesse na existência do instituto da desapropriação, já que importante para o desenvolvimento social (tal como na construção de uma escola, hospital ou, até mesmo, abertura de ruas e avenidas).

A conceituação do interesse público, assim, deve estar centrada na natureza do interesse de cada administrado. Explica-se: se por um lado há o interesse individual (que não configura interesse público, até porque presentes na singularidade), por outro há aquilo que se chama de interesse pessoal do administrado que surge no âmbito da coletividade, ou, melhor dizendo interesse público. É o que afirma Bandeira de Mello (2009, p. 60-61):

O que fica visível, como fruto dessas considerações, é que existe, de um lado, o interesse individual, particular, atinente às conveniências de cada um no que concerne aos assuntos de sua vida particular - interesse, este, que é o da pessoa ou grupo de pessoas singularmente consideradas -, e que, de par com isto, existe também o interesse igualmente pessoal destas mesmas pessoas ou grupos, mas que comparecem enquanto partícipes de uma coletividade maior na qual estão inseridos, tal como nela estiveram os que os precederam e nela estarão os que virão a sucedê-los nas gerações futuras.

Pois bem, é este último interesse que nomeamos de interesse do todo ou interesse público.

Por esse motivo é que Bacellar Filho (2010, p. 91) conceituou interesse público como sendo a "parcela coincidente de interesses dos indivíduos enquanto membros da coletividade". Ou, como inaugurou em nosso Direito Administrativo Bandeira de Mello (2009, p. 61), o interesse público "deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem".

Destarte, são elementos que formam a noção jurídica de interesse público: conjunto de interesses; estes interesses são pessoais; critério qualitativo em relação ao todo social.

Mas, para Justen Filho (2013) a impossibilidade de reprimir os processos históricos e sociais nos trouxe à era da pós-modernidade, período em que o Estado vive uma crise permanente, dada a conscientização de que o progresso alcançado trouxe efeitos positivos e negativos, o que poderá influenciar na aplicação do conceito jurídico de interesse público.

3.2. A INFLUÊNCIA DA PÓS-MODERNIDADE NO CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

Para Touraine (2007, p. 76), o momento chamado de pós-modernidade é marcado pelo fim de um tipo de sociedade, chegando a afirmar que "A estátua da sociedade, que fora erguida no coração do espaço público, está hoje reduzida a cacos", de modo que preceitua o nascimento do sujeito.

Por mais que, em um primeiro momento, pareça que Touraine (2007) realize a negativa da existência - e importância - do interesse público neste período de pós-modernidade, a leitura atenta de sua obra assim nos concede o entendimento de que o retorno ao sujeito provoca uma robustez no conceito de interesse público adotado pela doutrina administrativista brasileira.

Retira-se, neste sentido, de Touraine (2007, p. 102):

A destruição da ideia de sociedade só pode nos salvar de uma catástrofe se levar à construção da ideia de sujeito, à busca de uma ação que não procure nem o lucro nem o poder nem a glória, mas que afirme a dignidade de cada ser humano e o respeito que ele merece. [...]

Ocorreram em seguida [...] a ascensão de um individualismo consciente, refletido, definido como a reinvindicação para si mesmo, por parte de um indivíduo ou de um grupo, de uma liberdade criadora que é seu próprio fim [...].

Este individualismo nascido da pós-modernidade traz em seu bojo, todavia, um perigo à existência do interesse público: o fascismo, na opinião de Justen Filho (2013). Com efeito, o fascismo utiliza do aspecto de privilégio de uma maioria - formada, muitas vezes, pela utilização massificada dos meios de comunicação12 - para impor a sua doutrina e o seu poder político.

Por este motivo é que Touraine (2007, p. 113) ensina que "O maior perigo atual, porém, é aquele que já mencionei, a saber, que a ideia de sujeito seja corrompida pela obsessão da identidade".

Portanto, apesar das transformações trazidas pela pós-modernidade, a noção jurídica de interesse público continua a ser a mesma lançada em tópico anterior, fundamentada na existência de elementos que versam sobre a união de interesses pessoais e qualitativos dos administrados.


4. O ELO ENTRE O BEM COMUM E O INTERESSE PÚBLICO

Ao oferecer um conceito de interesse público, Di Pietro (2007, p. 61) leciona que o desvio da ação política do conteúdo jurídico previsto como interesse público levaria aos denominados "desvio de poder" e "desvio de finalidade", conforme segue:

Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes, a autoridade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista em lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade, que torna o ato ilegal.

O interesse público funciona, assim, como um elemento limitador da vontade do governante. Idêntica função àquela exercida pelo bem comum defendido por Nicolau.

Anteriormente exemplificou-se que a excessiva tributação do Estado não importaria em interesse público. Neste passo, o próprio Maquiavel (2004, p. 134) afirmou:

Deve, além disso, estimular os cidadãos a exercer suas atividades livremente, no comércio, na agricultura e em qualquer outra área, de sorte que o agricultor não deixe de enriquecer suas propriedades por medo de que lhe sejam arrebatas nem deixe o comerciante de fazer crescer seu negócio por recear impostos. Ao contrário, deve o príncipe instituir prêmios aos que desejarem executar essas coisas e a todos aqueles que, de um modo ou de outro, pensarem em ampliar a sua cidade ou o seu Estado.

De igual forma, Justen Filho (2013), ao receitar os limites a serem impostos ao governante para evitar o perigo do fascismo que ronda a época pós-moderna, afirma que esta limitação está justificada em um bem comum compatível com a ordem jurídica. Idêntica posição tem Bacellar Filho (2010, p. 97-99) ao escrever que "o princípio da legalidade vincula o 'direito administrativo às disposições constitucionais'", senão veja-se:

A Administração Pública, para servir objetivamente ao interesse público - tal como determina a Constituição Espanhola - deve respeitar a legalidade formal, obedecendo fielmente às imposições legislativas que refletem a vontade do povo, manifestada através de seus representantes, bem como a juridicidade, concretizando todos os mandamentos que o direito positivo como um todo faz espargir, notadamente os de fonte constitucional.

Sendo assim, chega-se, finalmente, ao elo entre o interesse público moderno (pós-moderno, em verdade) e o bem comum delineado pelo Secretário Florentino, o que pode ser construído a partir do princípio da moralidade administrativa, previsto no art. 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Ora, se o interesse público deve respeitar a ordem jurídica-constitucional, nada mais natural que esteja diretamente ligado a um dos princípios administrativos de maior importância. Cumpre ressaltar, em razão da oportunidade, que Bacellar Filho (2010) constitui o interesse público sobre as amarras de todos os princípios constitucionais da Administração Pública previstos pelo precitado artigo da Constituição.

Entretanto, aqui a análise da relação entre as noções de interesse público e bem comum será embasada a partir do princípio da moralidade administrativa. É o que se retira de Bacellar Filho (2010, p. 103):

A moral administrativa não guarda estrita compatibilidade com a chamada moral comum. Esta, diz, Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta interna; já a moral administrativa é imposta ao agente público para a sua conduta externa, segundo as exigências da instituição a que serve, e a finalidade de sua ação: o bem comum. [...] Não há dúvida, portanto, quanto à íntima conexão entre a noção de interesse público e o princípio constitucional da moralidade administrativa: este tem como razão de ser a condução da Administração Pública ao bem comum.

Diante disso, as noções de interesse público e bem comum funcionam como elementos de legitimação de um governo, porquanto atuam como limitadores da moralidade política proposta pelo Secretário. Cabe transcrever, novamente, excerto de De Grazia (1993, p. 186), onde "Um Estado justo é aquele governado para o bem comum. O governante virtuoso, o novo príncipe, o bom cidadão, a guerra justa, o grande fundador-legislador - todos eles têm como fim o bem, o benefício ou o bem-estar comum".

Assim, não há moralidade administrativa dissociada da prática pelo governante de ações embasadas no interesse público/bem comum. Repita-se que a liberalidade de ação do Príncipe proposta por Nicolau está limitada à ação pelo bem comum/interesse público, dedicado ao predomínio absoluto dos interesses da coletividade e de ações duradoras, tratando a política como um processo de construção.

Sobre os autores
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva; KAESTNER, Roberto Nasato. Bem comum e interesse público.: Uma análise a partir da noção de moralidade política em Nicolau Maquiavel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3940, 15 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27717. Acesso em: 22 nov. 2024.

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