Resumo: O presente artigo tem como objetivo estabelecer uma relação entre os conceitos de bem comum proposto por Nicolau Maquiavel (em seu "O Príncipe") e de interesse público, mormente pela via da noção de moralidade política estabelecida pelo Secretário Florentino. O estudo terá início com a determinação desta moralidade política traçada por Nicolau em sua obra política, ultrapassando, posteriormente, os conceitos de bem comum e interesse público. Ao final, pretende-se demonstrar que o elo entre o bem comum de Nicolau e a noção jurídica de interesse público estão ligadas pela noção de moralidade administrativa (ou moralidade política). Este artigo utilizou o tipo de pesquisa denominada bibliográfica, além do método indutivo e do procedimento monográfico.
Palavras - chave: bem comum; interesse público; moralidade política.
INTRODUÇÃO
Por muito tempo, entendeu-se que a moralidade política proposta por Nicolau Maquiavel em seu “O Príncipe” era ilimitada, de modo que muitos autores e atores políticos utilizaram desta errônea definição para buscar legitimação em atos praticados que eram contrários aos desejos do povo.
Dessa forma, procura-se definir a relação existente entre os conceitos de bem comum proposto por Nicolau e interesse público do Direito Administrativo Brasileiro, a partir da noção de moralidade política trazido por Nicolau Maquiavel, tendo por base teórica a própria obra maquiaveliana. Isto é, tenciona-se demonstrar que a atuação do agente político é limitada pelo bem comum/interesse público, o qual deve ser uma espécie de guia a legitimar seus atos.
Assim, é objetivo principal desse artigo demonstrar que a relação entre o bem comum de Nicolau e o interesse público moderno (ou seria pós-moderno?), por meio da noção de moralidade política proposta por Nicolau Maquiavel. Como objetivos específicos, tem-se a definição dos conceitos de moralidade política e bem comum definidos por Nicolau Maquiavel em sua obra “O Príncipe”, o conceito de interesse público proposto no Direito Administrativo Brasileiro, e a demonstração de que o bem comum de Nicolau Maquiavel relaciona-se com o conceito de interesse público, pelo que este também é o agente limitador das ações do agente político e o elemento de legitimação de seus atos.
Vale ressaltar que, apesar da obra de Nicolau Maquiavel ter sido longamente discutida, pouca atenção se deu ao fato de que o bem comum pode ser diretamente ligado ao conceito de interesse público, e limitando o conceito de moralidade política trazido pelo pensador florentino.
Da mesma forma, ao se analisar o caráter de legitimação do ato do Príncipe – isto é, do ato do agente político – pela via do bem comum, pode-se estabelecer um paralelo ao interesse público como elemento limitador do ato político, temática esta que demanda pesquisa e que se fundamenta nos anseios atuais da doutrina jurídica, inclusive podendo contribuir na construção de um novo conceito de atuação política, motivando a participação do povo nas decisões políticas.
Nesse sentido, é de se ressaltar o amor que Nicolau Maquiavel nutria por sua Florença, e que pode ser exemplificado por uma breve história do Secretário Florentino. Havia a necessidade de algum representante de Florença viajar até Módena, buscando informações sobre as movimentações dos exércitos espanhóis e alemães, então em invasão à Itália – que ainda era um estado fragmentado. Nicolau Maquiavel se prontificou a participar da viagem, de modo que foi enviado com a missão de se encontrar com Guicciardini e informar que Florença buscava um acordo. O que se destaca é que Nicolau já estava perto dos sessenta anos e a viagem se deu em rigoroso inverno.
Este exemplo da atitude do Secretário por sua amada Florença faz emergir a lembrança do grande homem público que foi Nicolau Maquiavel. E também demonstra que a política é o local para os grandes homens, aqueles que decidem suas ações com base em uma moralidade própria, típica e específica deste tortuoso meio – mas, que jamais se afastam das bases de toda e qualquer ação: o bem comum.
1. PARA UMA NOÇÃO DE MORALIDADE POLÍTICA EM NICOLAU MAQUIAVEL
Ressalte-se, de início, conforme proposto por De Grazia (1993, p. 11), que Nicolau Maquiavel será tratado nesse artigo tão somente como Nicolau. E isto porque "[...] é assim que os grandes homens são tratados - pelo primeiro nome".
Tendo sido o maior escritor italiano em prosa, Nicolau ofereceu aos seus contemporâneos uma moralidade inteiramente nova: a moralidade política. Segundo Rodrigo (1996), o conceito de moral política formulada pelo Secretário Florentino está relacionado com as necessidades da ação política. Melhor dizendo, com a teoria da verdade efetiva das coisas, como bem afirma o próprio Maquiavel (2004, p. 99):
[...] julguei adequado procurar a verdade pelo resultado das coisas, mais do que por aquilo que delas se possa imaginar. E muitos imaginaram repúblicas e principados nunca vistos ou reconhecidos como reais. Tamanha a diferença se encontra entre o modo como se vive e o modo como se deveria viver [...].
Nicolau, portanto, empreende uma análise das situações políticas reais - a chamada verittá effetuale -, utilizando para isso do seu histórico como Secretário da Segunda Chancelaria de Florença e do Conselho dos Dez1. Foram essas experiências políticas, somadas às leituras dos antigos2, que para Hale (1963) formaram o substrato teórico de Nicolau3. Dessa forma, pode-se dizer que o Secretário analisou a política da forma como ela realmente é, com suas mazelas e dificuldades, de acordo com Sadek (2004).
Por sua vez, no capítulo XV do seu O Príncipe, Nicolau revela que o governante deve utilizar da maldade de acordo com a necessidade, dado que os próprios homens revelam-se maus por sua própria natureza. Mais adiante, o Secretário confirma o seu sentimento pessimista da natureza humana ao dizer que "[...] os homens se esquecem mais rapidamente da morte do pai do que da perda de patrimônio." (Maquiavel, 2004, p. 107).
Da combinação destas duas teorias - da verdade efetiva das coisas e da perfidez humana - é que surge por obra de Nicolau um novo conceito de moralidade reguladora dos interesses do Estado e afastada da moral cristã4, motivo pelo que restou denominada de moralidade política. Neste sentido, retira-se de Maquiavel (2004, p. 100):
E sei que qualquer um reconhecerá ser digno de louvor o fato de um príncipe possuir, entre todas as qualidades mencionadas, as consideradas boas; mas a condição humana é tal que não permite a posse total de todas elas, nem mesmo a sua prática consistente; é mister que seja o príncipe prudente a ponto de evitar os defeitos que lhes poderiam tirar o governo e praticar as qualidades que lhe garantam a posse, se possível; se não puder, com menor preocupação, deixe que as coisas sigam seu curso natural. E não se importe ele sujeitar-se à fama de ter certos defeitos, sem os quais lhe seria difícil salvar o governo, porque, levando em conta tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se praticadas, conduzi-lo-iam à ruína, e outras que podem se assemelhar a vícios e que, observadas, trazem bem-estar e segurança ao governante.
Essa moral política inaugurada por Nicolau pode ser bem observada no chamado Sonho de Maquiavel, contado por Viroli (2002). Este Sonho, na verdade, é um relato bem particular de Nicolau sobre o Sonho de Cipião, de Cícero. Diz-se que, quando em seu leito de morte, o Secretário relatou um sonho que tivera onde haviam dois lados: um com pessoas maltrapilhas e tristes, os quais seriam os santos e todos aqueles que tiveram uma vida de virtudes cristãs - sendo condenados a viver no Paraíso -; e do outro, pessoas muitíssimo bem vestidas discutindo assuntos de relevância política, os quais estavam sendo dirigidos ao Inferno. Nicolau finaliza seu relato afirmando que preferia ir ao Inferno discutir política, ao invés de ir aos Céus e viver tediosamente com santos e beatos.
O conteúdo subjetivo existente no Sonho de Maquiavel é a moralidade política, conforme se extrai de Viroli (2002, p. 18):
Em seu sonho, os fundadores, governantes e protetores das repúblicas, com seus feitos e obras, não desfrutam beatificamente a eternidade no lugar mais luminoso do Universo, como na antiga visão. Ao contrário, são condenados ao inferno porque, ao realizar os grandes feitos que os tornaram imortais, violaram as normas da moral cristã.
Sendo assim, por vezes, será necessário ao governante que negue a moral cristã e pratique atos atentatórios às virtudes convencionais. É o que se observa da leitura de Martel (2003, p. 85): "Maquiavel estuda, analiticamente, a inovação política, mostra-a possível e legitimável pelo agir político, demonstra, por meio de exemplos de homens de política, a logicidade da intervenção humana". Para tanto, Nicolau nos oferece o exemplo da conquista da Romana por César Bórgia, o Duque Valentino5.
A região da Romanha era local de muitas convulsões sociais e políticas, além de toda a sorte de violências. Desta maneira, César Bórgia julgou conveniente enviar um de seus representantes para a Romanha, o qual detinha plenos poderes sobre aquela região dominada. Desta forma, o Duque consolidou o seu poder na região da Romanha. Mais tarde, sob o argumento de que as arbitrariedades pudessem torná-lo odiado perante o povo, César Bórgia mandou que o seu representante fosse cortado ao meio e exibido em praça pública.
O que deve mover, portanto, os atos de um governante é o desejo de manutenção do seu país que ocorrerá através dos grandes feitos realizados em prol de seu povo, quando para isso, segundo Maquiavel (2004, p. 111), "[...] é preciso compreender que um príncipe [...] não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens tidos como bons, pois é muitas vezes forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião".
Por isso, a moralidade política defendida por Nicolau teve como esteio de criação teórica a impossibilidade para o Príncipe de governar sob as premissas defendidas pelo cristianismo, mormente com relação ao caráter piedoso dos homens. Isto é, como diria certa vez Cosme, o Velho, primeiro senhor Médici da cidade de Florença, "os Estados não podiam ser governados com o rosário nas mãos", conforme atesta Viroli (2002, p.29).
Questiona, assim, Nicolau aos seus contemporâneos: como realizar os grandes feitos necessários a um Estado, sem violar nenhuma regra cristã? É o que se tem em Skinner (1996, p. 155):
A diferença crucial entre ele [Nicolau] e seus contemporâneos está na natureza dos métodos que um e outros consideraram adequados para realizar aqueles fins. O ponto de partida dos teóricos mais convencionais era que, para o príncipe alcançar tais metas, deve estar certo de seguir os ditames da moralidade cristã, sob qualquer circunstância. [...] A crítica fundamental que assim dirige [Nicolau] aos pensadores de sua época é o fato de não perceberem aquilo que, a seu ver, define o dilema que caracteriza o príncipe. Como observa, não com pouca aspereza, eles querem ter o direito de expressar sua admiração por um grande condutor de homens como foi Aníbal, mas ao mesmo tempo pretendem 'condenar o que tornou possíveis suas façanhas', em especial a 'crueldade humana' na qual Maquiavel, com muita franqueza, vê a chave para o sucesso e a glória de Aníbal [...].
A resposta, segundo o Secretário, é a inauguração de uma nova espécie de moralidade, conforme Skinner (1996, p. 155):
A única saída para esse dilema, insiste ele [Nicolau], consiste em aceitar sem nenhuma reserva que, se um príncipe estiver empenhado seriamente em 'manter seu estado', terá de renunciar às exigências da virtude cristã, abraçando de todo o coração a moralidade em tudo diferente que lhe determina a posição que ocupa. Assim, a diferença entre Maquiavel e seus contemporâneos não pode ser corretamente avaliada como a diferença entre uma visão moral da política e uma concepção da política que estaria divorciada da moralidade. O contraste essencial diz respeito, isso sim, a duas moralidades distintas - duas exposições antagônicas e incompatíveis do que em última análise se deve fazer.
Em política, portanto, os meios que um governante utiliza para atingir o fim de preservação do Estado são relativos à sua atividade política, não podendo se defender a aplicação de códigos cristãos de compaixão e bondade.
Para alguns, a moralidade política de Nicolau pode significar que ao governante é permitido fazer tudo aquilo que seja do seu interesse. Este pensamento, no entanto, é inoportuno e divorciado dos escritos do Secretário Florentino, eis que ao Príncipe cabe manter o seu Estado e trazer glória ao seu povo.
Diante disso, o conceito de moralidade política de Nicolau não pode ser utilizado como base de sustentação teórica de um governo tirânico, o qual se utiliza de todas as arbitrariedades possíveis, nem mesmo de um governo corrupto. A razão para tanto é a ausência de legitimação deste governo, a ausência do elemento limitador da moralidade política do Secretário. É o que afirma De Grazia (1993, p. 185-186):
Um Estado mau ou injusto é uma tirania, na qual o governo visa a ganhos privados. Na maioria das vezes, quando há um príncipe, 'o que é bom para ele prejudica a cidade e o que é bom para a cidade prejudica a ele. De modo que imediatamente nasce uma tirania [...] e se a sorte fizesse surgir um tirano virtuoso [...] não resultaria nenhuma utilizada para aquela república, mas [apenas] para ele próprio'. (Niccolò admite um outro sentido de tirania - 'Um poder absoluto, que é chamado pelos autores de tirania' - , mas não o emprega com tanta frequência). Um Estado justo é aquele governado para o bem comum. O governante virtuoso, o novo príncipe, o bom cidadão, a guerra justa, o grande fundador-legislador - todos eles têm como fim o bem, o benefício ou o bem-estar comum.
Nicolau defende, dessa maneira, que o governante deve empreender aquilo que for necessário para a manutenção do seu Estado e na propagação do bem comum. A liberalidade de ação do Príncipe proposta por Nicolau está limitada na ação pelo bem comum, o qual é dedicado ao predomínio absoluto dos interesses de toda a coletividade e de ações duradoras, tratando a política como um processo de construção.
2. O BEM COMUM
Nicolau conheceu a sua Itália como "[...] um mosaico de cubos muito pequenos [...]", conforme afirmou Mosca (1968, p. 103), sendo que permanecia dividida em diversas cidades-estado que, no mais das vezes, guerreavam entre si, diminuindo as chances de unificação e aumentando as chances de invasão por uma nação mais forte. Para Larivaille (1988, p. 9), a Itália era um "mosaico de Estados de dimensões territoriais, regimes políticos, estágios de desenvolvimento econômico, até culturas muito variáveis".
Para Hale (1963) foi a discussão com Francesco Vettori sobre a fragmentação da Itália que estimulou Nicolau a escrever "O Príncipe", posto que o sonho do Secretário era que houvesse um governante capaz de unificar o território italiano.
Diante disso, ao concluir a sua obra-prima "De Principatibus" com um verso de Petrarca, Nicolau realiza uma "Exortação ao Príncipe para Livrar a Itália das Mãos dos Bárbaros". O mesmo Petrarca possui outra poesia, que é reveladora do bem comum decantado pelo Secretário, onde declama por um "um cavaleiro que toda a Itália honra, / preocupado mais com os outros do que consigo mesmo".
2.1. O CONCEITO MAQUIAVÉLICO DE BEM COMUM
Segundo De Grazia (1993), apesar de Nicolau jamais ter se enveredado nos caminhos da definição do que seja bem comum6, é certo dizer que o bem comum em sua teoria política é tratado em um caráter duplamente importante.
Nesse sentido, aliás, bem explica Ames (2000, p. 146) quando afirma que em um primeiro momento, o bem comum se trata do amor à pátria, expressão essa utilizada pelo próprio Nicolau e que significa a renúncia dos interesses pessoais do Príncipe em prol dos interesses da coletividade; e, por segundo, guarda referência à necessidade de êxito duradouro, isto é, "não diz respeito ao êxito imediato e efêmero, mas ao legado deixado às gerações futuras: a criação de instituições duradouras que sobrevivam aos seus criadores".
A primeira característica relaciona-se com aqueles homens que sacrificaram sua vida em razão do bem comum, ou seja, aqueles que rejeitaram viver por sua glória pessoal, mas concederam o seu viver ao fim último da Pátria. O grande exemplo é o próprio Secretário, conforme se constata da redação de Ridolfi (2003, p. 154), ao comentar a demissão de Nicolau em razão da queda do Governo de Piero Soderini:
Mas ele [Nicolau] continua vivendo o poeta, inclinado aos sonhos, e quem sabe, ali e ali, ele se ilude em poder continuar naquele cargo que para ele é a vida, e a vida toda durou. Mesmo que mudem os magistrados, ele é um homem de letras, que usa sua pena e seu engenho para os que governam, assim fazem os artistas, os soldados, os poetas. Serve ao Estado, não a uma facção; fielmente serviu à República sob o governo popular, há de servi-la fielmente sob o governo dos Médici.
Mais do que Secretário da Segunda Chancelaria e do Conselho dos Dez de Florença, Nicolau foi um legítimo homem de Estado, que ofereceu seus melhores e incessantes préstimos em benefício de sua amada Florença.
Aliás, este amor à pátria caracterizador do bem comum é ressaltado pelo Secretário na Exortação de fechamento do Discurso das coisas florentinas após a morte de Lourenço7, conforme se vê de Maquiavel (p. 744 apud Viroli, 2002, p. 234) quando afirma que "Creio que a maior honra que os homens podem alcançar seja aquela que a sua pátria, voluntariamente, lhes concede: creio que o maior bem que se possa fazer, e o mais agradável a Deus, seja aquele que se faz à sua pátria".
Por sua vez, em pelo menos dois capítulos dos seus Discursos, Nicolau utiliza a pátria como elemento justificador dos atos do governante. O primeiro refere-se à nomeação pelo cônsul Mânlio do seu substituto Papírio Cursor, mesmo sendo pública e notória a inimizade existente entre eles. O segundo, intitulado de "A pátria deve ser defendida com glória ou infâmia; em qualquer caso será bem defendida", Maquiavel (2008, p. 419) assim relata:
Esse fato é digno de nota e deve orientar todo cidadão que seja chamado a dar conselhos ao governo de sua pátria. Quando é necessário deliberar sobre uma decisão a qual depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por considerações de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, glória ou ignomínia. Deve-se seguir o caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção da sua liberdade, rejeitando-o tudo mais.
Nicolau empreende, assim, que o bem comum também está diretamente ligado à salvação do Estado, de modo que as ações do governante estão justificadas pela realização de "grandes feitos" e "grandes coisas", conforme Bobbio (2000).
O sucesso político tratado por Nicolau é aquele que permanece ao longo do tempo, uma vez que assim restará dominada a Fortuna e libertada a Virtù do governante, naquilo que se constituirá em salvação do Estado.
Essa necessidade de continuidade no êxito do governo é o fim do Estado e o fim do Estado é o bem comum. Como bem assinala De Grazia (1993, p. 201), "O fim do Estado e o único bem em si mesmo é o bem comum. O príncipe, novo ou velho, é um bom príncipe na medida em que é um homem excepcional trabalhando pelo bem comum".
Portanto, o bem comum é justificador das ações do Príncipe. Referidas ações devem alcançar a todos da população do Estado, de modo que leve o Estado à glória, concretizando a prática política pelo bem comum. É preciso, assim, "colocar os interesses da comunidade acima de quaisquer outros", como afirma Skinner (1996, p. 202).
Nesse sentido, De Grazia (1993, p. 204) conclui o capítulo 7 do seu excelente Maquiavel no Inferno8 desta forma:
Agora parece que atingimos um patamar mais elevado. Quer Niccolò apresente a pátria como uma aproximação ou contraste do ideal da república, como uma divina dama ou o domínio que tem império sobre os homens, ele tem boas razões para insistir que, em qualquer decisão sobre a verdadeira saúde da pátria, não deve entrar nenhuma consideração sobre o justo ou o injusto, o piedoso ou o cruel, o louvável ou o ignominioso; "pelo contrário, adiado qualquer outro aspecto, [deve-se] seguir inteiramente o partido que lhe salve a vida e lhe mantenha a liberdade". O Estado encontra sua perfeição constitucional, seu verdadeiro e perfeito fim, numa pátria em que o bem comum seja observado ao máximo, isto é, numa república independente e duradoura onde a lei é respeitada e as mulheres são honradas, onde os altos cargos estão abertos a todos os cidadãos, onde predomina a igualdade dos ganhos da liberdade e do trabalho e de legá-los aos filhos - em "uma república perfeita", que percorrerá "todo o curso [...] ordenado pelo céu". Tal é o sentido de tudo isso.
Cabe sublinhar, ainda, a seguinte passagem: "O Estado encontra sua perfeição constitucional, seu verdadeiro e perfeito fim, numa pátria em que o bem como seja observado ao máximo [...]". Será deveras importante para a compreensão da relação entre o bem comum e o interesse público.
Por enquanto, deve-se atentar que o bem comum significa o sentido de tudo isso, como magistralmente denominou De Grazia (1993) o seu capítulo 7. Dessa forma, o bem comum, para Nicolau, é o fim último do governante. É o amor à pátria representado através da conduta ímpar de um Príncipe que levará o seu Estado a atingir grandes feitos duradouros.
2.2. UM EXEMPLO DE ATUAÇÃO PELO BEM COMUM DE UMA PÁTRIA
A atuação pelo bem comum poderia ser exemplificada através do Cônsul de Roma Mânlio, que "era 'inteiramente em favor do público' e não se importava com nenhuma 'ambição privada' [...] sempre rude com cada indivíduo e amando apenas o bem comum'", como bem afirma De Grazia (1993, p. 188).
O exemplo mais conhecido e mais importante para Nicolau é o de Rômulo, fundador de Roma. Com efeito, Maquiavel (2008) ao comentar sobre a fundação de Roma oferece a lição de Rômulo, que primeiramente assassinou o seu irmão Remo e depois concordou com a morte do seu sócio9 Tito Tácio, o que foi fundamental para o estabelecer da República de Roma.
Seria suposto, aos mais afoitos, que a ação de Rômulo seria um ato egoísta e que poderia provocar no povo de Roma uma prática de "forçar os que a eles se opuserem", como bem diria Maquiavel (2008, p. 49). Mas, antes é necessário tornar claro o motivo para que Rômulo conduzisse ao homicídio de seu irmão e à aceitação da morte de Tito Tácio, senão veja-se:
É por assim dizer uma regra geral a de que as repúblicas e os reinos que não receberem as suas leis de um único legislador, ao serem fundados ou durante alguma reforma fundamente que se tenha feito, não possam ser bem organizados. É necessário que um só homem imprima a forma e o espírito do qual depende a organização do Estado.
Deste modo, o legislador sábio, animado do desejo exclusivo de servir não os seus interesses pessoais, mas os do público: de trabalhar não em favor dos próprios herdeiros, mas para a pátria comum, não poupará esforços para reter em suas mãos toda a autoridade.
Nicolau defende que a grande lição deixada por Rômulo está na justificativa dos seus atos, os quais foram realizados pelo bem comum de Roma e de sua fundação - e não por seus interesses pessoais.
Aliás, para Maquiavel (2008, p. 50), prova de que Rômulo "agiu não para satisfazer uma ambição pessoal, mas em prol do bem comum, é o estabelecimento imediato do Senado, cujo conselho procurou, tomando-o como guia". Rômulo rejeitou um governo "absoluto e tirânico", ajustando as primeiras instituições de Roma para um governo "livre e popular".
O brilhantismo da fundação de Roma por Rômulo - mormente por sua atuação pelo bem comum da pátria - encontra-se escancarada no seguinte trecho do A Arte da Guerra, de Maquiavel (2005, p. 109):
Não terminei de expor tudo aquilo a que me propus, ou seja, duas coisas. Primeiro, que um homem reto não poderia empregar a arte militar em seu próprio benefício; segundo, que uma república ou um reino bem organizado não permitiria jamais que seus cidadãos ou súditos agissem dessa forma. Sobre a primeira já disse o que me veio à mente. Falta falar sobre a segunda, e neste ponto responderei à pergunta feita. Pompeu, César e quase todos os generais que teve Roma depois da última Guerra Púnica ganharam fama de homens bravos, não de homens retos. Mas os que os antecederam alcançaram a glória como cidadãos valentes e bons. Isso porque não faziam a guerra em seu próprio benefício, como aconteceu com os que citei em primeiro lugar.
Destarte, encontra-se o bem comum ao analisar a história de fundação da República de Roma por Rômulo, já que "O fim do Estado e o único bem em si mesmo é o bem comum. O príncipe, novo ou velho, é um bom príncipe na medida em que é um homem excepcional trabalhando pelo bem comum" (De Grazia, 1993, p. 201).