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Processo civil brasileiro do CPC de 1973: persistência do modelo do Estado liberal-legislativo (neoliberal)

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Agenda 05/05/2014 às 14:51

1.3 Crítica ao modelo liberal do processo civil brasileiro: racionalismo e neutralidade judicial camuflada

Diante dessa insistência de preservação do passado e da proteção do mercado, Dierle José Coelho Nunes nomina esse modelo, no âmbito do Poder Judiciário e do processo, como neoliberalismo processual, pois apesar de se fazerem reformas para aumentar o poder do juiz, não se vislumbra a busca de qualquer objetivo socializante.

Realmente, esse modelo teria se apropriado “do discurso socializante para desnaturá-lo e utilizá-lo contra si mesmo e em favor de seus imperativos funcionais”. Isso porque, apesar de afirmar “buscar uma atuação do direito mais social”, com reforço do papel do juiz, “é corrompida pela lógica neoliberal, de modo a implementar uma atuação jurisdicional e reformas legislativas construídas sobre o argumento cínico de que assim se garantiria maior acesso à justiça”. Desta forma, “permite-se a prolação de decisões em larga escala, com reduzido ou inexistente espaço de discussão, na lógica da produtividade, e não de uma real aplicação social ou constitucionalmente adequada do direito”.34

Em consonância com essas colocações, Ovídio Baptista aduz categoricamente que o ataque do neoliberalismo — “em seu empenho de privatizá-lo ainda mais, destruindo metodicamente o sentido de coletividade, numa exasperação do individualismo que é, como se sabe, o pilar da modernidade”35 — ocasiona a perda da legitimidade do Estado e, a partir disso, a crise do Direito mostra sua cara.

Essa influência do neoliberalismo, e de seu individualismo, é exercida sobre o processo civil, “uma vez que todos os institutos e o conjunto de categorias de que se utiliza a doutrina processual, foram concebidos para a tutela de direitos e interesses individuais”.36

Nesses termos, faz-se necessário sintetizar a crítica feita ao modelo de processo civil brasileiro, que absorveu essas concepções neoliberais, mantendo-se preso a uma organização política de Estado Liberal, não condizente com as imposições de uma Constituição Federal moderna e com pretensões democráticas.

1.3.1 Racionalismo: a utopia da certeza no processo civil

“A utopia da certeza no processo civil” é o título dado por L. A. Becker ao capítulo em que pretende demonstrar a vã pretensão do processo em buscar a certeza e a verdade em uma época de incertezas. Já no início do capítulo o autor pondera que:

[...] temos instituições cujo funcionamento depende — e muito — da certeza. Estamos falando do processo civil. Não só a certeza que se busca na reiteração de decisões judiciais, sempre frustrada. Mas também a certeza que se coloca como objetivo ao final do processo: certeza na decisão, calcada na certeza das formas processuais no procedimento ordinário, amparada pela instrução probatória, consagrada pelo título executivo e pela coisa julgada, avessa a qualquer provimento de urgência anterior à decisão final, que em tese é a única decisão certa, precisa, porque fundada numa suposta “posse da verdade”. Além dessas duas exigências de certeza há mais uma: a certeza do direito a ser aplicado.37

Aborda, assim, a predominância da “vontade de verdade” no âmbito do processo como a “crença cega (porém fundadora das ciências!) na imprescindibilidade absoluta do que é verdadeiro; crença na superioridade da verdade, em sua prevalência sobre a aparência, a ilusão, a falsidade”, inclusive sobre a “probabilidade e a verossimilhança”.38

A crítica que se faz, porém, com relação a essa premissa está no reflexo da “impotência da vontade de criar”, aliada ao medo do juiz de errar — a ponto de se esconder atrás do Código —, e na “exigência de certeza nas decisões, calcada na inexorável, desenfreada e teimosa ‘busca da verdade’”, a fim de atender “um mercado que precisou de uma justiça segura e previsível para desenvolver o Estado Industrial”.39

A ânsia da certeza na decisão foi “conservada em formol, ainda hoje na jurisdição tradicional” — em especial no procedimento ordinário —, desconsiderando o fato de que nas ciências em geral as tais certezas já foram “devidamente desmistificadas pela teoria do caos”.40 Becker ressalta que:

[...] a busca frenética da verdade não passa de um tapume de automatismo e suposta infalibilidade, a tentar fazer desnecessário qualquer prurido ético na decisão judicial. Se — como diria Eduardo Gianetti — falar em ética é falar em liberdade de escolha e em falibilidade, o sacrifício da escolha individual “no altar da perfeição infalível é escolher um mundo ‘perfeito’, mas no qual a experiência moral perdeu o sentido”. Em suma: o processo busca a verdade quando já desistiu da ética, assim como o juiz busca a lei quando já abdicou da justiça.

Por outro lado, como ressalva o autor, não se pode partir para o avesso dos dogmas da certeza e da verdade, em culto ao dogma do provável, pois “é questionável a eticidade de um processo civil voltado exclusivamente à celeridade, de modo ‘parnasiano’ — a rapidez pela rapidez, sem nenhuma preocupação com o acesso à justiça, isonomia real e outras questões relevantes”.41

A marca de conservadorismo no processo civil também foi objeto de preocupações de Ovídio Baptista, para quem “não é tarefa difícil descobrir as raízes ideológicas que presidem o sistema processual, mantendo seus compromissos com o racionalismo”, de onde “provém a suposição de que a lei jurídica seja uma proposição análoga às verdades matemáticas”.42 Assevera que:

O sentido a-histórico de nossas instituições liga-se a este pressuposto [...]. É daí que parte a premissa metodológica para sustentar que a norma jurídica, como uma equação algébrica, somente admite um resultado “certo”. Daqui é que devemos, então, extrair a seguinte conclusão: se a norma jurídica assemelha-se a uma proposição algébrica, será impensável supor que ela tenha “duas vontades”; que possa permitir a seus aplicadores uma dose, mínima que seja, de discricionariedade.

Para o sistema, a norma jurídica deverá ter, consequentemente, sentido unívoco. Ao intérprete não seria dado hermeneuticamente “compreendê-la” mas, ao contrário, com a neutralidade de um matemático, resolver o problema “algébrico” da descoberta de sua “vontade”. Compreende-se, portanto, as razões que, no século XIX, fizeram com que os autores dos Códigos procurassem impedir que sua obra fosse interpretada. Reproduziu-se no século XIX a tentativa de Justiniano de impedir a compreensão hermenêutica de suas leis.43

Como apontam Jeferson Dyts Marin e Carlos Alberto Lunelli, esse paradigma racionalista surgiu para “sustentar a afirmação do antropocentrismo em face do teocentrismo”, quando o homem ousou desafiar Deus. Houve um deslocamento filosófico em que o homem, agora como sujeito de um mundo explicável por meio da razão, deveria garantir a verdade e a certeza, “afastando-se do provável e do plausível”.44

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Era fundamental a ideia de que o homem tinha condições de reconhecer pela razão a construção lógica e coerente do mundo. O homem não se contentava mais com a sabedoria divina, “era necessário o esgotamento das possibilidades, para alcançar-se a certeza”.

A certeza, dessa forma, torna-se “um valor supremo, um dogma indiscutível, o que termina por produzir uma técnica científica adaptada a essa exigência, produzindo uma ciência processual mecanicizada”.45 Essa busca voraz pela certeza e, logo, pela segurança jurídica, terminou por prejudicar o próprio ideal de alcance da justiça, até mesmo porque todo esse culto ao rigor lógico implicou “a consolidação de uma ciência jurídica dissociada da dimensão moral e comprometida com a ideia de que o alcance de seus propósitos derivaria da certeza e do rigor procedimental”.46

Portanto, os rumos da ciência jurídica, naquele momento histórico, foram conduzidos pela codificação, que incorporou métodos de raciocínio e dedução lógicos para escapar do subjetivismo do julgador, e, assim, materializar os propósitos da lei quanto ao alcance da certeza e da segurança.47

Nessa mesma linha de raciocínio, Ovídio Baptista elucida que a criação de um “mundo jurídico”, fechado em si mesmo e que contém “verdades eternas”, prescindindo dos fatos, está ligada ao paradigma do racionalismo do século XVII, que pretendia “tornar o Direito uma ciência demonstrativa tão exata quanto a matemática”.48 Diante disso:

O direito processual moderno, como disciplina abstrata, que não depende da experiência, mas de definições, integra o paradigma que nos mantém presos ao racionalismo, especialmente ao Iluminismo, que a História encarregou-se de sepultar. Esta é a herança que temos de exorcizar, se quisermos libertar de seu jugo o Direito Processual Civil, tornando-o instrumento a serviço de uma autêntica democracia. É ela a responsável pela suposta neutralidade dos juristas e de sua ciência, que, por isso, acabam permeáveis às ideologias dominantes, sustentáculos do sistema, a que eles servem, convencidos de estarem a fazer ciência pura.49

Nesses termos, Ovídio Baptista conclui que os “dois principais compromissos ideológicos inerentes à nossa compreensão do Direito e da missão do Poder Judiciário” estão na ideia de que o juiz somente deve respeito à lei, excluída qualquer possibilidade de compreensão hermenêutica, e a “tirania exercida pela economia sobre o resto. A função do Poder Judiciário não é mais fazer justiça, porém aclamar o mercado”.50 Assim sendo:

Com a separação entre teoria e prática, as classes dominantes conseguiram dois resultados significativos: (a) sujeitaram os magistrados aos desígnios do poder, impondo-lhes a condição de servos da lei; (b) ao concentrar a produção do Direito no nível legislativo, sem que aos juízes fosse reconhecida a menor possibilidade de sua produção judicial, buscaram realizar o sonho do racionalismo de alcançar a certeza do direito, soberanamente criado pelo poder, sem que a interpretação da lei, no momento de sua aplicação jurisdicional, pudesse torná-lo controverso e portanto incerto.51

Esse paradigma racionalista, que supõe ser o Direito uma ciência tão exata quanto a matemática, resta evidente quando se depara com o conceito de jurisdição como declaração, adotado pelo Código de Processo Civil brasileiro por influência de Giuseppe Chiovenda. Segundo este conceito a função jurisdicional teria uma “natureza meramente ‘intelectiva’, enquanto pura cognição”, sendo que “a atividade do juiz deve limitar-se a revelar a ‘vontade concreta da lei’”, ou seja, “sua missão seria apenas verbalizar a ‘vontade da lei’ ou a vontade do legislador”.52

Nesse sentido, a vontade da lei “já estava ‘concretizada’ ao instaurar-se o processo”, cabendo ao juiz “apenas revelá-la”. A premissa desse raciocínio chiovendiano é que a norma jurídica deverá ter um sentido unívoco, e “ao intérprete não seria dado hermeneuticamente ‘compreendê-la’ mas, ao contrário, com a neutralidade de um matemático, resolver o problema ‘algébrico’ da descoberta de sua ‘vontade’”.53

Outro ponto é que “quando se retira a autonomia do julgador, impondo-se a ele apenas a função de descobridor do sentido unívoco da lei, transfere-se ao legislador a responsabilidade pela realização da justiça”. Portanto, se a tarefa do juiz é apenas de descoberta, como se matemática fosse, “a realização dos ideais de justiça é própria do legislador e de ninguém mais”.54

Porém, como salienta Ovídio Baptista, os pressupostos são equivocados. Primeiro, porque se “imagina que a lei contenha todo o direito; que, como sustentam correntes do positivismo moderno, a justiça não seja problema do juiz. A justiça seria um problema do legislador: ou o juiz aplica a lei ou será irremediavelmente injusto (Hobbes)”. Segundo, porque, como se parte da “epistemologia do ‘certo’ e do ‘errado’, dizendo que o juiz deve descobrir a ‘vontade da lei’”, pressupõe-se que “possa haver apenas uma ‘vontade da lei’ a ser revelada na sentença”. Ou seja, por força do dogmatismo, não “é dado admitir que a lei, sendo hermeneuticamente interpretada, possa deixar ao magistrado uma margem de liberdade que lhe permita fazer o Direito progredir, harmonizando-o com as novas realidades sociais e históricas, capazes de revelar, agora, ‘outra vontade’ da lei”.55

Nesse conceito de jurisdição o papel do juiz fica restrito à análise do passado, como um historiador, sem a possibilidade de prover o futuro, tarefa esta exclusiva do legislador. Ora, sendo o juiz o “oráculo da lei”, cabe-lhe apenas revelar sua vontade, “tarefa que pressupõe isso que nossa doutrina indica como ‘cognição exauriente’. Somente após esse contraditório amplo, o julgador estaria em condições de ‘verbalizar’ (enquanto ‘bouche de loi’) a ‘vontade da lei’”.56 Diante dessa perspectiva racionalista, elimina-se a compreensão hermenêutica do magistrado, retirando “qualquer legitimidade à retórica, enquanto ciência da argumentação forense”.

É por isso que o chamado processo de conhecimento “é o instrumento dessa ideologia” e “é por meio dele que o sistema pretende manter a neutralidade — melhor, a passividade — do juiz durante o curso da causa, para somente depois de haver descoberto a ‘vontade da lei’ (Chiovenda), autorizar-lhe a julgar, produzindo o sonhado juízo de certeza”.57

Em razão dessa total submissão à lei, Ovídio Baptista faz uma distinção entre o ato de julgar, que é uma função intelectiva, e o ato de decidir, que tem natureza volitiva, o que possibilita a escolha entre mais de uma opção. Isso porque:

Como a exclusiva missão de nossos juízes é descobrir a “vontade da lei”, fica subentendido que eles não têm a mínima possibilidade discricionária de opção entre duas ou mais alternativas que o sistema reconheça como legítimas. Logo, nossos juízes apenas julgam, sem poder decisório. O ponto culminante da crise paradigmática encontra-se aqui. Sem a compreensão hermenêutica que supere o dogmatismo, não haverá solução. E isto supõe discricionariedade.

É claro que, na prática, todos sabemos que os juízes realmente decidem. Todavia, essas autênticas decisões, reveladoras de componente volitivo do ato jurisdicional, não devem ser admitidas como uma possibilidade legitimada pelo sistema. A solução é fazer que o juiz simule a construção de um silogismo, para dar a impressão de que seu raciocínio seguira o modelo matemático.58

Portanto, a conclusão que se chega diante desse paradigma racionalista é a de que o verdadeiro julgador não é o juiz, mas sim o Código, que contém a vontade da lei. O processo civil revelador de uma verdade insculpida na lei pertence a uma ciência da descoberta, que faz do juiz um matemático da época do Iluminismo.

Essa é a crítica feita ao racionalismo, que não se compatibiliza com a dimensão hermenêutica que se pretende conferir ao direito processual — uma ciência da compreensão —, que exige dos juízes um verdadeiro raciocínio jurídico.

1.3.2 Neutralidade judicial camuflada

Essa segunda crítica está absolutamente relacionada àquela referente ao racionalismo do processo e à utopia da certeza. Realmente, como existe um exacerbado normativismo derivado do paradigma racionalista, concebe-se um Estado de Direito em que se promove uma orientação — e interpretação — de bloqueio ao juiz a partir de princípios de estrita legalidade.

Quer-se com isso dizer que o modelo de processo civil adotado é produto de uma pretensão de se “produzir uma ciência de Direito neutra quanto a valores”, visando manter os juristas “distantes e alienados de seus compromissos sociais”.59 Como afirma Celso Campilongo, “o sistema de valores inerentes à função judiciária no Estado liberal é marcado pela ideologia de fidelidade à lei”, com uma rígida delimitação da competência do sistema judicial, para reforçar “a imagem doutrinária do juiz técnico, esterilizado politicamente e que faz da adjudicação um silogismo capaz de garantir, dogmaticamente, a certeza do direito”.60

Nesse sentido, como elucida o autor, “na geometria da tripartição dos poderes, o juiz submete-se ao império da lei”, mas é compensado pela sua independência perante todos os outros fatores do processo decisório.

O dogma, assim, está na “neutralidade da ciência processual”, que leva às consequências indesejáveis do dogmatismo, como o pensamento acrítico — que não questiona o “porquê” das coisas — e a “formação de um direito processual eminentemente conceitual, que se desliga da realidade social”.61 Nesses termos, tem-se um direito “investigado como um ‘fato’, despido de qualquer conteúdo axiológico”, o que veda “o acesso hermenêutico ao fenômeno jurídico”,62 para que o jurista se conserve imune aos valores.

A partir dessa suposta neutralidade matemática judicial, garantida pela remissão expressa à vontade única da lei, o juiz — e consequentemente o processo — são utilizados como estratégia de poder de um Estado Neoliberal, que pretende proteger a uma diminuta classe privilegiada. Em outras palavras, o juiz, ao ser omisso e remeter a responsabilidade à lei, toma partido do sujeito mais forte da relação processual.

Portanto, a neutralidade do Judiciário é uma das peças importantes na caracterização do Estado de Direito burguês, pois assinala a importância da imparcialidade do juiz e o caráter necessariamente apartidário do desempenho de suas funções para beneficiar a parte já privilegiada pela letra fria da lei.63

Essa neutralidade política camuflada, que depois passou a exigir distanciamento ético, desvinculou progressivamente o Direito de suas bases sociais. Disso decorre “a canalização de todas as projeções normativas com pretensão de validade para o endereço político do Legislativo”, crescendo a força e a importância do positivismo jurídico. Tércio Sampaio Ferraz Jr. explicita que:

[...] a neutralização do Judiciário se apoiará na centralização organizada da legislação (só a lei, votada e aprovada pelos representantes do povo, obriga) e reforçará o lugar privilegiado da lei como fonte de direito. Este reforço ocorre não só pela exaltação do princípio da legalidade e a consequente proibição da decisão contra legem, mas também pelo ato jurisdicional como um processo de subsunção do fato à norma. Ao sublinhar-se a subsunção como método de aplicação do direito, neutraliza-se para o juiz o jogo dos interesses concretos na formação legislativa do direito (se esses interesses serão atendidos ou decepcionados não é problema do juiz, que apenas aplica a lei). Por conseguinte, sua atividade jurisdicional guiada superiormente pela lei e pela constituição não se vincula a nenhum direito sagrado ou natural nem exige um conteúdo ético ainda que teleologicamente fundado. Acima de tudo, o importante é que a lei seja cumprida.64

Entretanto, essa neutralidade começa a perder força a partir do final do século XX e começo do século XXI, quando houve uma mudança de perspectiva do cidadão, que passou a depositar a sua confiança — perdida em relação aos outros poderes em vista de diversos escândalos e abuso e desvio de poder —, no Poder Judiciário.

A resposta do Código de Processo Civil para essa confiança depositada no Judiciário foi o aumento dos poderes do juiz, mas sem modificar o restante do sistema, mantendo-o ainda vinculado à estrita legalidade. Diante disso, como alerta Celso Campilongo, o Judiciário tem dificuldades para lidar com essa situação, pois ao temer a “contaminação política do juiz”, procura distinguir o magistrado do político. Mas com isso acaba por menosprezar o peso político inerente à atividade jurisdicional e, por mais que a função do juiz não se confunda com a do político profissional, isso não significa que o papel do magistrado deixe de ser político.65

Como relatam Maria Tereza Sadek e Rogério Arantes, a Constituição de 1988 criou um modelo singular de separação de poderes, aumentando a responsabilidade do Poder Judiciário como mediador político entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, bem como no controle constitucional dos atos legislativos e de governo. Houve com essa iniciativa a “jurisdicização da política”, muito embora se tenha continuado a exigir do Judiciário decisões que não fossem “políticas” e sim meramente jurídico-formais. Criou-se uma tensão, uma vez que não há como conciliar a natureza política dos conflitos institucionais que chegam às portas do Judiciário com a necessidade de proferir decisões baseadas e restritas à letra da lei.66

Tem-se, pois, que “a simplicidade harmônica do modelo esbarra numa única dificuldade: o mundo real”. De fato, a “avaliação feita pelo magistrado no momento de aplicar a lei não está submetida apenas à observância estrita da letra da norma jurídica. A tarefa do julgador não é meramente técnica. Ao contrário, é social e politicamente determinada”.67 Assim, “o idealismo dos que crêem ser a legalidade o único parâmetro para as decisões judiciais objetivas e racionais não se sustenta, obviamente, perante os desafios da conjuntura nacional”.68

Não se ignora que na prática forense os juízes vão muito além da função que a lei lhes reservou e, assim, criam jurisprudencialmente o Direito. Porém, “tudo o que os juízes fizeram, além da função declaratória, haverá de ser feito mediante a utilização de algum subterfúgio que possa evitar a censura do sistema”.69

Como diz Celso Campilongo, no atual Estado de Direito existe (a) uma hipertrofia legislativa, com uma enxurrada de leis para atender uma sociedade crescentemente diferenciada e fragmentária, o que “rompe com a noção de sistema jurídico fechado piramidal” (mudança quantitativa), (b) uma variabilidade de normas, “modificando constantemente a regulação dos mais diversificados aspectos da vida social e tornando a legislação instável” (mudança qualitativa) e, como síntese das duas características anteriores, (c) um “problema de coerência interna do ordenamento”.70

Desta forma, “o direito atual rompe com os postulados de harmonia e homogeneidade da ‘era das grandes codificações’”. Isso porque “a ideia de unicidade do sistema jurídico é substituída por uma visão policêntrica, que admite a convivência de infinitos microssistemas normativos dotados de lógicas próprias mas dificilmente ajustáveis à pretensão de coerência do macrossistema”.71 Assim sendo, Campilongo é incisivo ao dizer que, nessa conjuntura, “encarar o direito como passível de uma interpretação ascética, literal, unívoca, burocrática ou, weberianamente, legal-racional, não passa de um exercício de abstração”. Além disso, os juízes sabem que o ideal da certeza jurídica deduzida do sistema legal é cada vez mais inatingível e que sem estratégias inovadoras de enfrentamento dessas dificuldades “a legitimidade do estado, do direito e do próprio Judiciário ficará comprometida”.72

Demais disso, não se pode mais aplicar o pressuposto racionalista de que o processo deve buscar a solução “certa”, típico do pensamento binário. De fato, a “doutrina contemporânea resgatou a importância dos ‘princípios’ como ideais imanentes às normas jurídicas particulares”, e com isso a pressuposição de que os magistrados devem se orientar por meio de juízos valorativos, segundo escalas de relevância jurídica. A partir disso, “a ideia do ‘justo’ reingressa no raciocínio jurídico, eliminando a epistemologia das matemáticas”.73

Diante disso, é preciso fazer com que o processo civil transponha o paradigma dogmático e racionalista a fim de recuperar “o espaço que lhe cabe como ciência do espírito”, encontrando “terreno propício para que o processo desenvolva-se em harmonia com uma sociedade complexa e pluralista, cuja marca fundamental é o individualismo das grandes multidões urbanas”.74 Como afirma Ovídio Baptista, para se “transformar o conceito de jurisdição, para torná-lo compatível com nossas atuais exigências sociais e políticas, a primeira imposição que nos assalta é a de estarmos dispostos a envolver-nos com as questões políticas, cujo acesso aos juristas esteve sempre vedado”.75

Para tanto, é preciso primeiro transformar o indivíduo em verdadeiro cidadão para, em seguida, descentralizar o poder, até que ele chegue ao povo, a fim de permitir-lhe “o exercício autêntico de um regime democrático, de que o Poder Judiciário terá que ser o fiador”. Ora, a jurisdição, num regime verdadeiramente democrático “deve ser o agente ‘pulverizador’ do Poder, o órgão produtor de micropoderes, que possam contrabalançar o sentido centralizador que os outros dois ramos zelosamente praticam”.76

Em resumo, a crítica que se faz é que não se pode mais acreditar na pretensa neutralidade axiológica da lei e nem do próprio Poder Judiciário. Para que seja assegurado o papel de instrumento democrático à jurisdição estatal, torna-se imprescindível que se abandone a ideologia liberal da doutrina da separação dos poderes, em que o Legislativo cria a lei e o Judiciário apenas declara a vontade daquele. Não se pode mais conceber, no seio de uma sociedade contemporânea, complexa e plural, uma função judicial asséptica — camufladamente neutra —, em que o juiz, apesar de criar direito, o faz dissimuladamente. Não se pode mais cogitar um sistema que fundamentalmente comungue do dogma da “separação dos poderes” de um modelo iluminista.

Portanto, para que se possa pensar em um Judiciário e em um modelo de processo civil que sirva como estratégia de poder de um Estado Democrático de Direito, é preciso repensar os fundamentos do atual sistema e superá-lo, a fim de se adotar um novo paradigma verdadeiramente democrático.

Sobre a autora
Renata Espíndola Virgílio

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001), especialização em Direito Processual Civil pela Unicsul (2007) e em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (2010). É Procuradora Federal (Advocacia Geral da União) e mestre em Direito, na linha de processo, pela UnB (2013).<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIRGÍLIO, Renata Espíndola. Processo civil brasileiro do CPC de 1973: persistência do modelo do Estado liberal-legislativo (neoliberal). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3960, 5 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27951. Acesso em: 22 nov. 2024.

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