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O papel do Poder Judiciário e do processo civil no Estado liberal e social

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Agenda 27/04/2014 às 11:45

O modelo de socialização processual do paradigma do Estado Social, em que se privilegia em excesso a atuação do juiz, começa a entrar em crise a partir da década de 1970, quando o movimento de acesso à justiça passou a buscar novos paradigmas, considerando que o Estado provedor não mais cumpria suas promessas.

 A ideologia prevalecente ao longo do tempo tem influência direta no modelo de processo que se adota pelo Estado. O dirigismo estatal reinante em cada época afeta diretamente o direito processual civil a fim de assegurar a obediência às estratégias de poder.

O exercício do poder, por meio de estratégias — dentre as quais, o processo civil —, sempre ocorreu, mesmo sem a existência de um aparelho estatal institucionalizado. De qualquer forma, com a formação do Estado centralizado e unificado, é imprescindível analisar as organizações políticas de cada época, pois a cada tipo institucional se conforma o Poder Judiciário, por meio das normas processuais, e se forma o modelo de processo civil.

Realmente, como diz Cândido Rangel Dinamarco, “preestabelecidos os fins do Estado, ele não dispensa o poder para caminhar na direção deles”1 e, para exercer o poder, precisa estabelecer as regras pertinentes para disciplinar as condutas de seus agentes e impor limites e formas de exercício do poder. É a partir desse poder que o Poder Judiciário — como integrante do Estado — exerce a jurisdição e “que gravitam os demais institutos do direito processual e sua disciplina”.2 Portanto, pela teoria geral do processo tem-se, no fundo, “a disciplina do poder e do seu exercício”.3

Para a teoria do processo, pois, é fundamental “o desenvolvimento da ideia de Estado e, é óbvio, da noção de historicismo. As teorias acerca da jurisdição não podem ser compreendidas à distância do ‘espírito das épocas’, ou das ideias de Estado que a inspiraram”. Por isso, é imprescindível uma reflexão pontual de cada época sobre o Estado, a cultura e a realidade social para a compreensão da teoria do processo. Somente dessa forma é possível “explicar e justificar, com coerência, os vários segmentos do mundo do processo”.4

Luiz Guilherme Marinoni explicita que “a teoria do processo, como valor cultural, não pode escapar à ideia do histórico” e deve refletir, justamente como os valores fazem, a consciência de uma época. Conclui o professor, como já alinhavado acima, que tal teoria “é marcada pela noção de Estado própria de um determinado momento histórico” e como a jurisdição é seu instituto fundamental, retira — juntamente com os demais institutos fundamentais do processo — a sua cor da noção de Estado. Disso se depreende “a importância da teoria geral do Estado para o correto desenho dos institutos processuais”.5

A jurisdição, portanto, retira sua noção do Estado e, por ser reflexo do poder deste, “encarrega-se de fornecer a tutela jurídica estatal”, principalmente por ser o “locus privilegiado da interpretação, aplicação e imposição do direito”, como leciona Carlos Augusto Silva. Em outras palavras, “a jurisdição encarna uma atividade estratégica de suma importância para a consecução das metas estatais”,6 ou seja, o Direito — no caso, o processual — figura como meio, por excelência, do exercício do poder.

Dessa forma, a legitimidade do exercício do poder pelo Judiciário — poder este denominado “jurisdição” — pode ser avaliada pelo uso adequado e razoável do processo civil. O valor do processo:

reside na capacidade que tenha de dar livre curso ao exercício adequado, efetivo e eficiente da ação e da defesa, para que também a jurisdição, em clima de equilíbrio e como resultado do contraditório regular, produza os efeitos desejados pela ordem jurídica e sócio-política.7

Contudo, como afirma o autor acima mencionado e conforme será analisado neste primeiro item, “o processo civil, além de disciplinar o exercício do poder estatal, pode ser manejado como estratégia de poder”.8 Carlos Augusto Silva defende que:

[...] o processo civil disciplina o exercício do poder estatal de acordo com determinadas estratégias. Se a estratégia do detentor do poder é a de reduzir a atuação dos juízes nas causas de seu interesse, o governante, então, assim conformará as normas processuais. Os modelos processuais [...] refletem os valores políticos, econômicos, sociais, culturais e as estratégias de poder das sociedades em que se inserem.9

Como o processo é o instrumento pelo qual o Poder Judiciário desenvolve a função que lhe cabe, igualmente relevante analisar o papel deste ao longo do tempo e de cada realidade histórica. Dinamarco também pondera que “é inegável a relatividade histórica das instituições jurídicas, especialmente das de direito público”, que recebem os influxos do regime político em vigor. Assim, “ver e tratar o processo, discipliná-lo e aplicar concretamente seus preceitos a partir dessas premissas, permite endereçá-lo aos objetivos em razão dos quais têm vida o próprio ordenamento processual e os seus institutos”.10

Portanto, passa-se a analisar a imersão do Poder Judiciário no quadro do poder estatal nas variadas fases da história institucional do Estado Liberal e Social.


1.1 Estado Liberal

O primeiro paradigma a ser analisado é o do Estado Liberal, que surge como o Estado de Direito. Como leciona Paulo Bonavides, “esse primeiro Estado de Direito, com seu formalismo supremo, que despira o Estado de substantividade ou conteúdo, sem força criadora, reflete a pugna da liberdade contra o despotismo na área continental europeia”.11

As constituições dos Estados da Nova Inglaterra, a constituição norte-americana (1787), assim como a resultante da Revolução Francesa (1791), pretenderam ser o estatuto jurídico do Estado de Direito Liberal, inspirado por um ideário comum de ruptura com a ordem político-social medieval.

Como afirma Nuno Piçarra, tal ideário tem como premissa essencial a antinomia radical entre o indivíduo, com a sua liberdade natural, e a sociedade, que lhe impõe obrigações e o coage com o seu poder. Tal antinomia, bem como a busca de sua solução, “é que virão a determinar a construção de novos modelos de Estado e novas formas de poder político”.12

O intuito, pois, é encontrar uma alternativa à velha ordem feudal que garanta “a afirmação do indivíduo enquanto tal, a salvaguarda dos seus interesses próprios”, e lhe assegure uma liberdade — a denominada “liberdade moderna” — “que é, essencialmente, autonomia individual perante o Estado e a sociedade, ao contrário da velha ‘liberdade-participação’ dos antigos ou da ‘liberdade-privilégio’ medieval”.13

Esse Estado Liberal partiu do modelo de Estado mínimo de Locke, “em que a liberdade individual apenas seria sacrificada na estrita medida da necessidade da sua garantia por parte do Estado, o qual, por isso mesmo, deveria estar sujeito a rigorosos mecanismos de limitação do seu poder político”.14

Piçarra elucida que, como esse modelo de Estado “não se pretendia apenas uma alternativa a este estado de coisas, mas a única alternativa que como ordem político-social poderia ser qualificada”, pôde ser absorvido pela América, onde não havia necessidade de qualquer rompimento com uma ordem anterior, mas, ao contrário, de inaugurar uma ordem-político-social.15

Tratava-se de um modelo normativo de Estado, que partia de um dever-ser, de uma ficção, como foi o caso da ideia de contrato social,16 e, portanto,

não se pretendia, em primeira linha, uma interpretação de uma realidade tomada como base, não se pretendia uma inferência normativa da realidade, mas antes um modelo normativo da realidade, ainda que muitas vezes sob a aparência de um modelo descritivo e como tal utilizado.17

Nesse modelo, portanto, existiria uma unidade política do corpo social que se funda em um único poder soberano, qual seja, o Poder Legislativo. Proclama-se, assim, com Rousseau, o “princípio da soberania popular contra o poder monárquico-aristocrático”, rompendo com o sistema político-jurídico feudal. Reduz-se “o Estado ao Direito, o político ao jurídico e a soberania à lei”.18

Com isso, “a identificação da lei com a regra de Direito conduz à conclusão de que a criação do Direito se identifica com a legislação. A lei torna-se a única fonte de Direito: não existe Direito antes de a vontade do legislador o criar”.19 Essa lei “é essencialmente uma norma geral e abstrata, imputável à vontade geral do povo soberano, a quem exclusivamente deve sua existência. A sua validade e essência deve-a à racionalidade que é, justamente, a intenção da vontade legisladora”.20

Nesses termos, se o Direito corresponde à lei, que se autofundamenta, esta se desvincula materialmente da Constituição, que se limita a uma moldura dentro da qual o legislador decide por si próprio o que entende por Direito.21

Paulo Bonavides esclarece que “a ideia essencial do liberalismo não é a presença do elemento popular na formação da vontade estatal, nem tampouco a teoria igualitária de que todos têm direito igual a essa participação ou que a liberdade é formalmente esse direito”.22 Investe-se no poder o terceiro estado, ou seja, a burguesia, que, apesar de ser a então classe dominada, ao se tornar dominante afastou-se dos demais componentes do corpo social, configurando-se por uma ideologia de classe.

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Portanto, na concepção do Estado Liberal, o conceito de “povo” era restrito aos participantes da classe burguesa, isto é, “o cidadão-proprietário economicamente — e com isso já politicamente — influente”.23 Nuno Piçarra leciona que a referência social deste Estado não parte do homem concreto, mas do cidadão, sujeito político racional, de cuja soma resulta o “povo legal”. Esse cidadão se reduzia “a quem tinha um certo rendimento, condição, afinal, sine qua non para alcançar o esclarecimento e a independência, indispensáveis à verdadeira cidadania”.24 Tal era a sociedade tida em conta pela teoria política liberal.25

Como diz Friedrich Müller, o ícone “povo” não apresenta fissuras. Aplica-se um conceito seletivo, em que povo é o “terceiro estado, a nova burguesia proprietária, quer dizer nem a aristocracia eclesiástica e secular, nem o lumpemproletariado, ou seja, proletariado ‘maltrapilho’”.26 Dessa forma, a iconização do povo unificava a população heterogênea em benefício dos privilegiados, “por meio da linguagem e da definição nas mãos do(s) grupo(s) dominante(s) — como constituinte e mantenedora da constituição”.27

O conceito de povo, pois, era bastante restrito, uma vez que somente alguns indivíduos, que compunham pequena parcela da sociedade, eram considerados portadores de direitos. Disso resulta, no esteio de Paulo Bonavides, que “a Revolução Francesa, por seu caráter preciso de revolução da burguesia, levara à consumação de uma ordem social, onde pontificava, nos textos constitucionais, o triunfo total do liberalismo, apenas, e não da democracia, nem sequer da democracia política”.28

Realmente, como afirma o autor, “o título de representação da liberdade fora usurpado pela burguesia”. A burguesia, nesse momento histórico, justificava-se como o denominador comum de todas as classes e alegava ter enfrentado o despotismo em busca da liberdade de todos, apesar de somente ela própria ter se beneficiado de modo concreto.29

A suposta democracia, que deveria ser produto da revolução social, como forma de participação total e indiscriminada do homem, passou a ser restrita ao “homem livre”, isto é, aquele pertencente à classe burguesa, perante o Estado, na formação da própria vontade estatal. A noção de liberal-democracia, pois, tinha como ideal de “governo do povo” as concepções burguesas, inclusive no que tange ao sufrágio “universal”, que garantiria a participação de grupo seleto de homens na vida política do Estado. Em outras palavras, a liberal-democracia não postulava o governo do povo em si, por meio do predomínio da vontade da maioria, mas buscava interesses exclusivamente da classe burguesa.

Tal restrição do sufrágio, portanto, demonstra que não houve uma abolição de privilégios e nem uma participação ativa do povo na vida política do Estado. Isso quer significar que para a burguesia o valor liberdade se sobrepunha ao valor da igualdade, ou seja, “o princípio liberal triunfara indiscutivelmente sobre o princípio democrático”.30

A burguesia envidou todos seus esforços no sentido de constituir um Estado não intervencionista, que viabilizasse sua livre iniciativa. A partir disso, com base nas concepções liberais, surge o constitucionalismo como doutrina que preconizava a legitimação e limitação do exercício do poder político, a fim de garantir os direitos individuais, em especial o direito à liberdade.

Nessa ordem de ideias, Nuno Piçarra ressalta que, nesse contexto, os direitos fundamentais se configuravam como os direitos de liberdade perante o Estado, o que demandava uma abstenção deste. Esta, por sua vez, era viabilizada pelo princípio da separação dos poderes, que surgia como princípio de limitação do poder político.31 Diante disso, a elaboração de uma constituição, em sentido formal, está estritamente vinculada à ideia de liberdade, existente em um acordo ou contrato social dos cidadãos entre si ou deles com o exercente do poder, e à ideia de segurança.

Segundo Rogério Ehrhardt Soares, essa última ideia “é o desejo de calculabilidade matemática da classe burguesa”, que, para além do interesse no respeito às velhas leis fundamentais e dos privilégios dos diferentes grupos, desejava a “fixação duma máquina estadual definida e transparente e a garantia duma esfera de liberdade, ao abrigo das pretensões do poder e expressa em direitos individualizados”.32

Chega, então, a hora do constitucionalismo como “movimento de opinião que reclama que todo Estado disponha duma lei formal fundamental, duma constituição”. Assim, “a ideia constitucional transformou-se num princípio ético-político. Numa negação do absolutismo”.33

Demais disso, considerando esse ideal burguês, veio a lume a preocupação com a existência de um controle social sobre o exercício do poder político a fim de garantir a efetiva realização dos direitos individuais burgueses. Nesse sentido, o caminho encontrado pela teoria política foi a institucionalização da divisão dos poderes e do sistema de freios e contrapesos, como “termômetro de tendências antiabsolutistas”,34 a fim de impedir a concentração de poder nas mãos de um ou poucos.

Paulo Bonavides explicita que, com a queda do absolutismo e a remoção do monarca do poder, este naturalmente seria vertido ao povo, o que não era de interesse da classe burguesa emergente, uma vez que esta pretendia “escalar o poder, amparando-se constitucionalmente na técnica separatista”.35 Caso não tivesse havido a separação de poderes e o poder retornasse ao povo, o princípio democrático seria vitorioso. Tal foi o objetivo de se defender, à época, uma “solução intermediária, relativista, que, de um lado, afastava o despotismo do rei e, de outro, não entregava o poder ao povo”.36

1.1.1 Poder Judiciário no Estado Liberal

Como já afirmado acima, o Poder Judiciário e seu modelo processual, como estratégia do poder, recebem influência direta do modo de organização do Estado. Necessário, portanto, situar este Poder no âmbito de um Estado Liberal, o que enseja uma análise do amadurecimento da doutrina da separação dos poderes ao longo do tempo, uma vez que esta também refletiu na evolução do Poder Judiciário.

A doutrina da separação dos poderes nasceu na Inglaterra no século XVII, associada à ideia de rule of law e ideais antiabsolutistas. Isso significava uma “exigência de separação orgânico-pessoal entre função legislativa e função executiva (designação inicial da função jurisdicional)”,37 que só se efetivou e foi concretizada na constituição inglesa com a “definitiva rejeição do absolutismo em 1689”.38

A primeira versão da doutrina da separação dos poderes surge como “arma ideológica de luta contra os abusos e arbitrariedades” do órgão de função legislativa (Longo Parlamento), diante da necessidade de limitá-lo e retirar-lhe “quaisquer competências de natureza jurisdicional que a outro órgão constitucional deveria caber”.39

Diante disso, na sua versão originária, essa doutrina “está intimamente ligada à primeira das distinções funcionais mencionadas, legislativo-executivo, que se sedimentou na Inglaterra a partir do século XVII”,40 e foi consagrada na primeira constituição escrita da Inglaterra — o Instrument of Government de 16 de dezembro de 1653.41 Essa primeira versão possuía uma conotação jurídica de exigência liberal do primado da lei, da igualdade perante a lei e da segurança jurídica.

Contemporaneamente a esses fatos, Thomas Hobbes, em 1651, publicou a obra “Leviatã”, identificando o Direito com o poder, e, portanto, com a vontade do soberano. Sua pretensão era construir “um sistema jurídico tão seguro que não admita a menor controvérsia na sua aplicação”42 e, dessa forma, desnecessária se tornaria a retórica. Constata-se, nessa obra, a neutralidade do Poder Judiciário e a busca pelo racionalismo:

Nossos juristas concordam com a ideia de que a lei nunca é contrária à razão, e de que essa mesma lei não é a letra (isto é, cada uma de suas frases), mas a intenção do legislador. [...] Portanto, o que faz a lei não é a juris prudencia, ou sabedoria dos juízes subordinados, mas a razão desse homem artificial, o Estado, e suas ordens. Tendo em vista que o Estado é, em seu representante, uma só pessoa, não é fácil surgir uma contradição nas leis, e, quando tal acontece, a própria razão é capaz, por interpretação ou alteração, de eliminar a contradição. Em todos os tribunais de justiça, quem julga é o soberano (que é a pessoa do Estado). O juiz subordinado deve considerar a razão que levou o soberano a fazer determinada lei, para que sua sentença esteja em conformidade com ela e, nesse caso, seja a sentença do soberano; do contrário, será a sua sentença e, portanto, injusta.43

Já em 1689, na obra “Dois tratados sobre o governo civil”, John Locke encontra “os fundamentos do Estado e do poder político num fato convencional e não num fato natural (que é o pressuposto da monarquia mista): o contrato social”,44 por meio do qual se pretende salvaguardar a propriedade e a segurança dos homens, que deixaram de ser garantidos no estado de natureza.45

Para Locke, segundo Piçarra:

a lei positiva (e não o monarca absoluto, como em Hobbes) é que é o remédio contra a insegurança e a ausência de paz, que tornaram insustentável o estado de natureza. Ela é o garante e a medida da liberdade individual, ainda que imponha, em muitos casos, restrições à liberdade. A vida e a liberdade só pela lei positiva ficam, efectivamente, garantidas.46

Trata-se, pois, da supremacia do Poder Legislativo, que atua por maioria parlamentar a partir do consentimento da coletividade e com a função de fazer leis, mas que possuía limites internos ao seu poder.

Posteriormente, Montesquieu — na obra “Do espírito das leis”, publicada em 1748 — ressalta a desconfiança antropológica ao afirmar que “a experiência eterna nos mostra que todo homem que tem poder é sempre tentado a abusar dele; e assim irá seguindo, até que encontre limites”. Por isso, “para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder contenha o poder. Uma constituição pode ser feita de tal forma que ninguém será constrangido a praticar coisas que a lei não obriga, e a não fazer aquelas que a lei permite”.47

Sua ideia de liberdade, pois, está “ligada intimamente à de legalidade”,48 o que o vincula à antiga concepção de rule of law, ou seja, ao Estado de Direito, mas com uma “conotação exclusivamente jurídico-funcional, visando garantir a supremacia da lei, mediante o exercício de acordo com ela (legal e não arbitrário) da função executiva e da função judicial”.49

Diante disso, o avanço em relação aos seus antecessores, foi que para além das funções legislativa e executiva, Montesquieu acrescenta a “função judicial”. Para o autor, as funções do Estado se resumem à edição das leis e à sua execução pela força pública, as quais devem ficar orgânica e pessoalmente separadas.

Assim, faz a previsão de “três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil”. Isso não significa, porém, que nesse momento histórico existe a figura do Poder Judiciário, como órgão autônomo. Montesquieu inova com a previsão de um “poder de julgar”, pelo qual o príncipe ou magistrado que o exerce “pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos”.50

Em sua concepção, tudo “estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou o dos nobres, ou o do povo, exercesse estes três poderes: o de criar as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar crimes e as querelas dos particulares”.51

No entanto, é explícito ao mencionar que desses poderes “o judiciário é, de algum modo, nulo”52 e que os juízes da nação não são “mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta lei não podem moderar nem a força e nem o rigor”.53 Na época, o juiz, em qualquer caso, deveria somente pronunciar o julgamento feito pelo júri que lhe antecedia — cidadãos das mais diversas proveniências sociais e profissionais, eleitos durante certos períodos — no julgamento da causa.54 Montesquieu aduz que:

O poder de julgar não pode ser dado a um senado permanente, mas exercido por pessoas extraídas da classe popular, em certas épocas do ano, de modo prescrito pela lei, para formar um tribunal que apenas dure o tempo necessário.

Dessa forma, o poder de julgar, tão terrível entre os homens, não estando ligado nem a uma certa situação nem a uma certa profissão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo. E ninguém terá, constantemente, juízes diante dos olhos: temer-se-á a magistratura, e não os magistrados.55

Reduzia-se, pois, a função judicial “a uma tarefa de aplicação mecânica lógico-silogística do texto legal”, a partir da decisão do júri que o precedia. O poder judicial do príncipe ou magistrado era, então, “despojado de qualquer autonomia decisória, de qualquer poder criador do Direito”,56 como garantia contra o arbítrio.

Essa função judicial nula e invisível entre os homens era do interesse de uma classe burguesa ascendente, que pretendia garantir seus direitos e evitar intervenções em suas liberdade e propriedade pelo Estado. Depreende-se que o programa iluminista adotava a mesma linha de Montesquieu quanto à função judicial.57

No que tange à titularidade do poder, seguindo a lógica do conceito de “povo” na época,58 a função jurisdicional deveria existir para proporcionar a segurança e a conservação dos direitos fundamentais da “classe burguesa”. Como aponta Benedito Cerezzo Pereira Filho, a burguesia soube aproveitar a magistratura para seus próprios interesses, preservando para si, por exemplo, a sua propriedade.

A magistratura, nesses termos, “aceitou seu papel: ‘poder’ invisível, nulo, mero aplicador da lei, la bouche de loi. Converteu-se, assim, num funcionário obediente da burguesia, pois que aplicaria a lei ao caso concreto, ao servir-se, tão e somente, do princípio de subsunção”.59

Como elucida Luiz Guilherme Marinoni, “a figura do juiz inerte, do juiz que era a bouche de loi, sem qualquer poder criativo ou de imperium, foi sustentada pelo mito da neutralidade”. Esse mito supôs:

(a) ser possível um juiz despido de vontade inconsciente, (b) ser a lei — como pretendeu Montesquieu — uma relação necessária fundada na natureza das coisas, (c) predominar no processo o interesse das partes e não o interesse público na realização da justiça e, ainda, (d) que o juiz nada tem a ver com o resultado da instrução, como se a busca do material adequado para a sua decisão fosse somente problema das partes, no que o julgador não deve interferir.60

Nesse sentido, o zelo da burguesia em preservar os direitos então conquistados fez com que os órgãos instituídos para legislar tornassem tudo preso numa rede de leis e, na medida do possível, “cuidou de limitar a liberdade de movimento do juiz; diligente e desconfiadamente se lhe sequestrou o arbítrio”.61 Ora, as instituições liberais, representantes da sociedade civil burguesa, passaram a ver o juiz como agente do poder e funcionário público, nutrindo contra ele severa desconfiança. Possuíam, assim, um “pensamento binário: ou o juiz haverá de ser a ‘boca da lei’, ou então ele será arbitrário. A razoabilidade do ato judicial fica, epistemologicamente, eliminada”.62

Constata-se, assim, que por trás desse discurso sobre a divisão do poder entre as atividades estatais63 é possível vislumbrar o estabelecimento de uma teoria de governo que fosse capaz de limitar o poder por meio das leis, ou seja, buscar meios de partilhar o poder para evitar o arbítrio. Para Montesquieu, a limitação do poder é feita pela lei, sendo que cabe aos “juízes observarem a letra da lei”, pois “não existe um cidadão contra o qual se possa interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra e de sua vida”.64

Nesse contexto liberal, pois, de formalismo e legalidade, em que predomina a importância do Legislativo e se preza a liberdade do indivíduo, o Poder Judiciário como instituição nos moldes atuais era inexistente e o juiz — ancorado nos princípios técnicos da igualdade formal dos cidadãos e da escritura, bem como no princípio dispositivo — era um aplicador mecânico da lei, a partir de simples interpretação literal desta. Com isso, resta revelado o diminuto peso político dos tribunais nos primórdios da teoria de separação de poderes, quando do advento do Estado Liberal.

Entretanto, não se pode ignorar que a figura do Poder Judiciário tomou rumos distintos no continente europeu e no continente norte-americano. Diferentemente da constituição decorrente da Revolução Francesa de 1791, que tolhia a atuação da função judicial e até mesmo sua autonomia — como se expôs até o presente momento —, a constituição americana de 1787 já faz menção a um Poder Judiciário como órgão autônomo e proativo.

Tal fato pode ser inferido da coletânea “O federalista”, onde Alexander Hamilton esboça uma análise do Poder Judiciário proposta pela Constituição americana. Esse federalista afirma categoricamente, ao citar Publius, que “não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado dos poderes Legislativo e Executivo”.65 Confere, porém, diferentemente dos escritores europeus, uma identidade formal e material ao Poder Judiciário, que deixa de ser aplicador autômato da lei, para ter um papel ativo na interpretação da lei — para além da gramatical —, e assume, finalmente, a função jurisdicional de aplicar o direito no caso concreto.

O autor já adiantava sua opinião sobre o papel do Poder Judiciário, bem diferente do inicialmente propagado pelos liberais burgueses, no sentido de que “as cortes foram destinadas a desempenhar o papel de órgão intermediário entre o povo e o Legislativo, a fim de, além de outras funções, manter este último dentro dos limites fixados para sua atuação”. Aduz, pois, que as cortes deveriam atuar especialmente na interpretação das leis, sendo que a Constituição é a “lei básica” e, portanto, “sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas leis ordinárias”.66

É importante destacar mais uma vez que, ao contrário do continente europeu, o Estado de jurisdição executor da constituição “pôde consolidar-se liminarmente nos Estados Unidos da América, onde lhe foi dado o cunho essencial. O monismo do legislador é substituído pelo pluralismo dos poderes constituídos, todos igualmente subordinados à constituição e dotados das competências que esta lhes atribui”.67

Diante disso, “o poder judicial, guardião dos direitos fundamentais, é visto aqui, primordialmente, como uma espécie de contrapeso do poder legislativo e do poder executivo e não como um poder nulo, corolário daquele monismo”.68 Ademais, comentando o texto de Hamilton, Nuno Piçarra conclui que “à função judicial é reconhecido um carácter claramente constitutivo e criador do Direito. Desde logo, reconhece-se como inerente à função judicial um poder de interpretação — que na França se chegou a pretender proibir aos tribunais — e, explicitamente, um poder de ponderação entre normas de diferente força jurídica”.69

Em suma, a implantação do Estado Liberal e o desenvolvimento da teoria da separação dos poderes seguiram caminhos distintos, configurando-se de forma mais rígida no continente europeu — em que o Poder Judiciário sequer existia formalmente e o poder de julgar era visto como mera aplicação da lei — e mais flexível no continente anglo-saxão, no qual o Poder Judiciário recebeu identidade própria e poder de criação de Direito.

No caso brasileiro, é nítida a influência do Estado Liberal adotado no continente europeu, em que predominava um Poder Legislativo forte e um Poder Judiciário asséptico — quer seja pela ausência de atuação, quer seja pela atuação positiva em benefício de uma parte — a fim de servir à ideologia estatal da época. Esta, que beneficiava exclusivamente os interesses da classe burguesa por meio da proteção de sua liberdade e propriedade, moldou suas instituições sociais — dentre as quais a administração da justiça e a formação do processo judicial — para atender esses fins.

Depara-se no Brasil, portanto, com uma “legislação processual tendente a privilegiar determinados grupos”, a partir da existência de agentes econômicos, que, “valendo-se do poder de influência nos círculos de poder político, emplacaram diplomas legislativos introdutores de procedimentos que privilegiam seus interesses, em detrimento do restante da população”.70 O Código de Processo Civil de 1973 concebeu, assim, um modelo processual “técnico-teórico, banhado em valores do liberalismo, sem nítida preocupação social”,71 como se verá mais adiante.

1.1.2 Processo: liberalismo processual

O processo na estrutura liberal, conforme Dierle José Coelho Nunes, “se dimensionava em perspectiva privatística como mero instrumento de resolução de conflitos e era visualizado como instrumento privado, delineado em benefício das partes”, em que “os indivíduos são, pelo menos ideologicamente, entendidos como soberanos na gestão de seus interesses”.72

Essa fase, segundo ensinamentos do autor, pode ser caracterizada como “liberalismo processual”, que parte de uma:

concepção de protagonismo processual das partes, uma vez que desde a abertura (proposição) do procedimento, até mesmo o impulso processual era confiado a elas, de modo que a tramitação do processo, os prazos e o término das fases procedimentais dependiam do alvedrio dessas.73

Nessa perspectiva, o juiz “apresentava-se como um estranho em relação ao objeto litigioso, cumprindo a função de espectador passivo e imparcial do debate, sem quaisquer ingerências interpretativas que pudessem causar embaraços às partes”.74

Em suma, o Direito, nesse paradigma liberal, é visto como um sistema normativo no qual as regras são válidas “universalmente” para todos os membros da sociedade, e tão somente a ele incumbe a tarefa de pautar a atuação do Estado. Dito de outra forma, “o Estado tornou-se limitado à legalidade, com um ordenamento jurídico que estabelece limites negativos, delimitando o uso da liberdade pelos indivíduos, para, com isso, assegurar aos mesmos o livre exercício da autonomia da vontade”.75

Segundo Luiz Guilherme Marinoni, o direito de jurisdição nos idos dos séculos XVIII e XIX, segundo a concepção dos Estados Liberais burgueses, limitava-se ao direito de estar em juízo, ou seja, o direito de propor ou contestar uma ação e suportar o ônus dessa demanda. Assim, “a desigualdade econômica ou social não era objeto de preocupação do Estado. Bastava fosse conferido ao indivíduo — o indivíduo-razão — o direito de ir a juízo, pouco importando se o ‘cidadão’ estava ou não em condições de usufruir este direito”.76

Somente por meio de um Estado de Direito seria possível colocar limites no próprio Estado, mas verifica-se que este nunca deixou de ser uma “organização de poder”, mesmo que dentro desses limites, pois permanece o “poder de dominação”, que dessa vez se deu por parte da classe burguesa frente ao povo.

O Estado Liberal, portanto, com o discurso de liberdade e igualdade, teve como objetivo principal limitar o poder e as funções do Estado, a fim de que este não impedisse o desenvolvimento da classe burguesa. Em outras palavras, o Estado Liberal correspondia ao implemento econômico do capitalismo e os direitos “individuais” vieram somente para auxiliar esse processo de crescimento.

Nesses termos, o Estado deveria se ausentar das relações sociais, mediante a limitação de seu poder de dominação, e deixar fluir livremente a lei de mercado. Contudo, na realidade, verifica-se que o poder nunca deixou de existir para o povo “dominado”, que certamente não era a classe burguesa.

Sobre a autora
Renata Espíndola Virgílio

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001), especialização em Direito Processual Civil pela Unicsul (2007) e em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (2010). É Procuradora Federal (Advocacia Geral da União) e mestre em Direito, na linha de processo, pela UnB (2013).<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIRGÍLIO, Renata Espíndola. O papel do Poder Judiciário e do processo civil no Estado liberal e social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3952, 27 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27979. Acesso em: 23 dez. 2024.

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