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A falência da ação penal privada e o acesso à Justiça

Agenda 19/05/2014 às 10:36

O texto demonstra a ineficiência da ação penal privada como instrumento de busca de tutela jurisdicional em se tratando de pessoas pobres, sugerindo a alternativas para garantir o livre acesso ao Poder Judiciário materialmente.

Desde que extinta a vingança privada nas relações sociais, o Estado avocou para si o poder de punir. Certamente, com a evolução do Direito, inspirada em princípios iluministas e, modernamente, pelos princípios das Declarações Universais de Direitos Humanos, a punição estatal não poderia dar-se de qualquer forma.

Em se tratando da configuração do Devido Processo Legal brasileiro, sobretudo em matéria penal, a forma pela qual o Estado incita e é incitado à punição dá-se por meio do instrumento denominado Ação Penal, que é a ação judicial movida por um legitimado, requerendo ao Estado-Juiz a apreciação do fato descrito na norma penal incriminadora.

Tradicionalmente, as ações penais (ações de provocação judicial) são classificadas, segundo a doutrina, de acordo com o interesse verificado na causa.

Na ação penal privada, o interesse seria do particular, razão pela qual a provocação do Estado depende de sua exclusiva iniciativa. Deverá ajuizar a chamada queixa-crime, que é a peça inaugural da ação privada. Vigora o princípio da Disponibilidade, segundo o qual a parte pode dispor do bem jurídico ofendido e, assim, decidir se deseja que o Estado manifeste-se sobre o fato.

Já na ação penal pública condicionada, diz-se que o interesse é do particular e também do Estado. Mas peculiaridades recomendam que o órgão estatal incumbido de iniciar a ação não aja sem a prévia manifestação do interessado, teoricamente, o maior atingido pela conduta delituosa. Nestes casos, é necessária a provocação pelo ofendido, mediante manifestação denominada representação. Com a representação, autoriza-se o ente estatal com atribuição para dar início à ação penal: o Ministério Público. Vigora, pois, o princípio da Obrigatoriedade Regrada, ou seja, a ação penal é obrigatória, desde que respeitada a regra que exige a representação do ofendido.

Por fim, tem-se a ação penal pública, em que o interesse preponderante é o público. Imediatamente, atinge-se o bem de algum prejudicado, mas este bem foi eleito pelo Estado como fundamental, não sujeito a concessões ou vontades dos particulares. Assim, o interesse estatal prepondera, não admitindo o Estado determinada vulneração à ordem social, tutelada pelo tipo penal atingido. Neste caso, vigoram os princípios da Oficiosidade (os agentes que souberem da ocorrência do crime agem de ofício) e da Obrigatoriedade (dever de ajuizar a ação penal)desde que haja provas suficientes.

Mantendo o foco da discussão, a atenção deve voltar-se para a eficácia da apuração criminal por meio da ação penal privada. Por certo que todo tipo penal traz em si a tutela de um bem jurídico tido como importante para o Direito Penal. A ofensa a este bem jurídico deve ensejar uma apuração para, em se descobrindo os indícios de autoria e a prova da materialidade, propor-se a ação penal e possibilitar, quando viável, a condenação do infrator.

Entretanto, a ação penal privada é aplicada em casos de pequena relevância no âmbito penal, fazendo com que a parte deva mover, por sua iniciativa, uma ação específica para que o Poder Judiciário possa analisar a potencial ofensa. Nesse passo, a imposição de que a parte deva promover os meios para atingir um pronunciamento judicial é fator que está intimamente ligado à garantia constitucional de acesso à justiça prevista no art. 5.º, XXXV da Constituição Federal.

Dentre os crimes mais comuns e que são apuráveis mediante ação penal privada estão a calúnia, a difamação, a injúria – geralmente, diga-se de passagem, crimes de menor potencial ofensivo. Ou seja, nestes casos, para mover a ação penal privada, o ofendido deverá, necessariamente, valer-se de um advogado constituído (particular) ou público (Defensoria Pública).

A prática demonstra que as maiores vítimas (e os maiores autores) dos crimes contra a honra são pessoas de baixa renda, quando não, de extrema pobreza. A calúnia, injúria e difamação ocorrem em contexto de desentendimentos familiares, briga entre vizinhos, em discussões rotineiras e destemperos comuns no cotidiano social. Cristalizam-se em ofensas à moral, à conduta social, a características de determinada pessoa, não raro, constituindo condutas passíveis de indenização no campo cível: estamos diante do conhecido dano moral.

Entretanto, o custo financeiro para que as partes possam mover um processo judicial é muito alto, pois exige a contratação de serviços advocatícios. Imaginem-se as pessoas em situação de pobreza que terão que contratar um advogado para ingressar com o processo criminal. Neste caso, ainda que interessadas na punição do ofensor, a falta de condições financeiras impedirá a contratação de patrono e o ajuizamento da ação penal privada no prazo de 06 meses a contar da data do fato, operando-se, com isto, o instituto da decadência e a extinção da punibilidade do ofensor (art. 107, IV, CP).

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 Analisando a questão sob o prisma da prestação da assistência jurídica gratuita pelo Estado, função dedicada à Defensoria Pública, é sabida a grande carência de defensorias públicas em todo o Brasil. Desta forma, aquele que não custear honorários advocatícios, tem grande chance de não contar, também, com a prestação jurídica de um Defensor Público. A conseqüência será a mesma: não ajuizamento da ação penal privada no prazo de 06 meses e, com isto, nova extinção de punibilidade pela decadência.

Com estas constatações, note-se que a ação penal privada não mais se adéqua à realidade brasileira. As Delegacias de Polícia e os Juizados Especiais Criminais estão abarrotados de ocorrências e procedimentos por crimes contra a honra que simplesmente aguardam o prazo decadencial de 06 meses pelo ajuizamento de queixa-crime e, ato contínuo, são arquivados.

Entretanto, até que se chegue o momento do arquivamento, há toda uma movimentação do aparato estatal com a produção de boletins de ocorrência, localização de testemunhas, coleta de depoimentos, realização de perícias, tudo para se gerar procedimentos fadados ao insucesso pela falta de condição de procedibilidade: a queixa-crime. Perde-se tempo, dinheiro e desperdiçam-se recursos humanos com tais procedimentos. E o que é pior: a garantia fundamental do acesso à justiça, fator mais importante na questão analisada, não é proporcionada ao ofendido.

As ações penais privadas nos crimes contra a honra geram, em grande parte, duas coisas: (1) impunidade, pois as partes raramente dão continuidade ou sequer contratam advogado para que a questão tenha continuidade (a rigor são ofensas jurídicas realizadas no calor de discussões, algo que logo perde força), além de (2) gasto da máquina pública com questões fadadas à ineficácia. Considerando o número de casos que aportam no Poder Judiciário, não menos do que 90% dos procedimentos que necessitam da queixa-crime para terem seu início são extintos por ausência dessa condição de procedibilidade.

Em se adotando apenas as categorias das ações penais condicionadas à representação e as públicas, bastará mera representação ou comunicação do fato às autoridades com atribuição para tanto que as investigações e o ajuizamento de ações ocorrerão automaticamente, conferindo um trâmite minimamente hábil a garantir o acesso à justiça e à prestação jurisdicional[1]. Se o Estado ainda insiste na punição de crimes com estes, então a estrutura processual deverá permitir que ele ainda tenha condições de dar uma resposta a estas condutas[2] (sobretudo com a utilização desenfreada da internete como local fértil para ofensas à honra e à imagem das pessoas).

Não importará a condição econômica do ofendido: a chance de existir o exercício de um jus puniendi proporcional, ou seja, alguma resposta estatal ao fato (composição dos danos cíveis, transação penal, suspensão condicional do processo) será inversamente proporcional à atual, fazendo com que o jurisdicionado perca a impressão de que, mesmo tendo procurado as autoridades públicas (Delegacia de Polícia ou o Ministério Público), sua questão foi esquecida ou menosprezada. Busca-se minimizar uma outra faceta do Direito Penal Seletivo, que se manifesta quando somente aquele que possui condições financeiras de custear um advogado consegue acionar o Estado para obter uma resposta. Por isso, defende-se o fim da ação privada, bastando que exista a representação para que a questão conflituosa seja analisada pelo Poder Judiciário.

Se isto não for possível, ao menos que a ação penal se torne pública condicionada à representação para pessoas pobres, tal qual ocorria quando a vítima de estupro não possuía condições financeiras e quem movia a ação penal era o Ministério Público (antigo art. 225, § 1.º, I, CP, com redação alterada pela lei 12.015/2009).

Percebe-se que o problema da ação penal privada[3] anda de mãos dadas com a falta de estrutura do Estado em garantir assistência jurídica e acesso efetivo ao Poder Judiciário.


[1]              Com a extinção da ação penal privada, um novo estudo deverá ser realizado quanto ao instituto do perdão judicial, tradicionalmente utilizado nesta categoria de ação judicial.

[2]           Em infrações como estas, em que o dano moral parece ser o modo mais adequado para a (tentativa de) restauração do bem jurídico tutelado, a reparação do dano deveria ser largamente utilizada como causa extintiva de punibilidade. Aplicação pura da subsidiariedade do Direito Penal e de sua utilização como ultima ratio.

[3] Foca-se nos crimes contra a honra, pois estes são a imensa maioria dos crimes de ação privada que circulam nos escaninhos de Delegacias de Polícia e Fóruns. Outros delitos, como  o Exercício Arbitrário das Próprias Razões (art. 345, CP), esbulho possessório (art. 161, § 1.º, II, CP), Fraude à Execução (art. 179, CP), Violação de Direito Autoral (art. 184, CP), Induzimento a Erro Essencial e Ocultação de Impedimento (art. 236, CP) são de menor freqüência e também poderiam receber tratamento de ação penal condicionada à representação em casos de vítimas pobres.

Sobre o autor
Thiago S. G. Albeche

Delegado de Polícia no Rio Grande do Sul<br>Professor junto à Academia de Polícia do RS (ACADEPOL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBECHE, Thiago S. G.. A falência da ação penal privada e o acesso à Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3974, 19 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28011. Acesso em: 22 dez. 2024.

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