O conflito de direitos fundamentais nas biografias
Eduardo de Sousa Bílio*
RESUMO: O presente trabalho traz como discussão o conflito entre direito à intimidade e a liberdade de expressão no contexto das biografias. No Brasil, existe a necessidade de autorização do biografado para veiculação de tais obras. O objetivo principal é fazer uma defesa a censura prévia e o papel do direito à intimidade e privacidade no contexto constitucional.[1]
PALAVRAS CHAVES: Direitos fundamentais. Conflito. Biografia. Liberdade de expressão. Intimidade.
ABSTRACT: This paper presents as a parameter the conflict between right to intimacy and freedom of expression in the context of biographies. In Brazil there is a need to release the biography for circulation of such works. The main goal is to make a defense to prior censorship and the role of the right to intimacy and privacy in the constitutional context.
KEYWORDS: Fundamental Rights. Conflict. Biography. Freedom of expression. Intimacy.
INTRODUÇÃO
O Brasil é um país que possui uma Constituição juvenil em comparação às Cartas Magnas de outros países, entretanto, considerada um modelo com um conteúdo de grande respaldo social para os países democráticos. Nos últimos anos, vários debates ganharam grande repercussão nacional e participação do Supremo Tribunal Federal. E não poderia ser diferente, mais uma grande controvérsia ganhou espaço na mídia brasileira, o que pode ser visto como algo positivo, pois fortalece os princípios constitucionais e o nosso Estado Democrático de Direito. Esse novo debate trata-se da discussão em torno da possibilidade de veiculação de obras biográficas sem a autorização do personagem biografado.
O debate tornou-se ainda mais acalorado com a instituição do Grupo Procure Saber, que reunia no início artistas favoráveis à censura prévia das biografias, sendo integrado por nomes famosos como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Djavan, entre outros artistas, e presidido pela ex-mulher de Caetano, Paula Lavigne. O grupo passou a defender a proibição de obras não autorizadas pelos biografados ou por suas famílias, em caso de morte. Nesse sentido, estabeleceu-se uma ampla discussão pública em torno do tema, que resultou em longos editoriais, matérias jornalísticas, entrevistas e até mesmo bate boca nas redes sociais.
Essa questão, como todas as temáticas relevantes na vida pública brasileira, chegou ao Supremo Tribunal Federal, na forma de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn 4.815/DF, Relatora Ministra Carmen Lúcia) proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), que questionou a constitucionalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, utilizados para proibir a divulgação de biografias não autorizadas. Embora não haja decisão proferida sobre essa Adi, objetiva-se nesse trabalho tomarmos um posicionamento sobre a temática.
Judicialmente falando temos: de um lado os artistas dizem defender o direito à intimidade e à privacidade e destacam as dificuldades em conseguir reparar através de ações judiciais os danos posteriores à publicação; do outro lado, os biógrafos, no entanto, avaliam que a necessidade de autorização é censura prévia e fere a liberdade de expressão.
O direito à privacidade é legítimo
Quando dois direitos constitucionais estão em conflito, geralmente um arcabouço de teses e contra teses vão surgindo. Temos no mínimo dois interesses divergentes, e como chegar uma melhor solução? Já que não existe hierarquia quanto aos direitos fundamentais. Para isso é necessário que vejamos os direitos como princípios, pois sua interpretação é mais ampla.
De antemão, quando se fala aqui em direito à intimidade e privacidade, esses são os objetos de resguardo que devem ser assegurados aos biografados. Esses direitos embora confundidos na maioria das vezes possuem algumas distinções. Segundo Gilmar Mendes (2009) “o direito à privacidade tem por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, às relações comerciais e profissionais que o indivíduo não deseja que se espalhem ao conhecimento público. Já o direito à intimidade seriam as conversações e os episódicos ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas”. (MENDES, 2009, pag. 420)
Segundo Farias (2008), o direito a intimidade é um dos novos direitos que surgiu com a sociedade industrial moderna e trata-se da “exigência moral da personalidade para que em determinadas situações seja o indivíduo deixado em paz”. (FARIAS, 2008, pag. 126)
A defesa aos direitos de personalidade, precipuamente o direito à intimidade é o foco do presente texto, entretanto, não se busca o extremo, ou seja, fazer uma escolha entre o direito à intimidade ou o direito a liberdade de expressão, mas sim um equilíbrio entre ambos.
Pois bem, como visto na mídia o maior argumento dos biógrafos, quanto a não veiculação de obras biográficas sem a autorização do biografado “é que viola o direito a liberdade de expressão”, o que pode ser falacioso se mal argumentado. E aí se chega a uma pergunta: Quando termina o direito à liberdade de expressão dos biógrafos? E Stuart Mill (2008) tem a resposta para tal questão, ou seja, termina quando causa dano ao outro, toda a interferência em assuntos que só dizem respeito ao próprio indivíduo é ilegítima, precipuamente quando atinge o direito à intimidade e à privacidade do biografado, que é a parte considerada de maior interesse.
Em um primeiro momento torna-se essencial conhecer qual a legitimidade dessa censura, e se essa ADIN sobre os artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro possui alguma fundamentação. Dessa forma, o Código Civil brasileiro, em vigor desde 2003, diz que:
“Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais”.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
“Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
O Código Civil brasileiro sempre foi alvo de muitas críticas, desde o projeto até a sua aprovação, mas são inegáveis, que os avanços comparados ao Código de 1916 foram inestimáveis, aspectos voltados principalmente para as mudanças sociais, e perdendo a centralidade de outrora, o papel constitucional é desempenhado cada vez mais de forma incisiva pelo texto constitucional, dessa forma toda lei deve respeitar os valores e os princípios fundamentais da Constituição de 1988. Sendo assim, não existe fundamento algum nessa Ação Direta de Inconstitucionalidade, pelo fato desses artigos serem garantidos na nossa constituição.
Segundo o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, no entanto, afirma: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". E também no Artigo 1º, consta como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana. Destarte, a constituição privilegia a pessoa humana e Código Civil também, por ser um atributo da personalidade, no qual está o direito à intimidade. Então, é através dessa carga de importância do direito a intimidade, que está garantido a sua legitimidade, ou seja, de um lado temos a vertente representando os direitos fundamentais, com força de cláusula pétrea; por outro, são ao mesmo tempo direitos de personalidade essenciais à pessoa humana. É importante enfatizar que o direito a liberdade de expressão também é garantido constitucionalmente no mesmo artigo 5º, e está na mesma hierarquia, sendo também um direito essencial da sociedade democrática, entretanto muito tem se falado em liberdade de expressão apenas como tese que esconde por trás um arcabouço de interesses.
Então já deu para perceber que a não veiculação de biografias não autorizadas é protegida por dispositivos legais e constitucionais, e isso é necessário para o contexto em que vivemos, ou seja, numa sociedade em que os valores econômicos e capitalistas preponderam, e em que essa suposta “liberdade de expressão” nada mais é do que um pretexto ou um argumento falacioso, em que privilegia o mercado em detrimento do indivíduo. O maior interesse aqui se acredita que não é aquele defendido pelos biógrafos, por exemplo, de que somente se escreve um livro por que determinada pessoa é essencial para o conhecimento de utilidade pública, mas sim o interesse majoritariamente em questão é o lucro imensurável de autores e biógrafos que ganham fortunas em detrimento da indignação e sofrimento que aquela biografia poderá causar ao biografado. Então uma coisa é a função social da biografia de prestar informações históricas, e isso não se pode contestar. Mas outra é servir como lobby e vantagem à custa de coisas que só dizem respeito à vida íntima de determinadas pessoas, familiares e terceiros que acabam também tendo suas vidas invadidas. Ou seja, a biografia vai muito além da vida íntima de um famoso.
E considerando essa questão do lucro é complexo ponderar como fazer a coisa certa, mas enfatizando o interesse do próprio biografado, pergunta-se: seria justo um indivíduo qualquer como produtor da sua própria história, que conhece realmente os fatos que viveu e simplesmente terceiros (biógrafo não autorizado) lucre com informações da vida privada dessa pessoa? Claro que não. E digamos que o biografado queira explorar a sua própria imagem (fazer uma autobiografia), sendo um direito seu, já não poderia fazer ou até poderia, mas não seria tão vantajoso, porque a imagem já foi explorada. Ou caso contrário, não é pelo fato da pessoa biografada ser uma pessoa pública, que isso signifique que a mesma não tenha privacidade, que não seja sujeito de direitos, que não tenha liberdade de escolha. Isso nada mais é do que autonomia de personalidade, e garante que o biografado não queira ter particularidades de sua vida íntima impressas para a posterioridade e para a eternidade sem o seu consentimento.
Dessa forma, elimina-se o argumento de que os artigos 20 e 21 da nossa Constituição viola a liberdade de expressão e representa uma censura repugnável. Na verdade, não se está negando que isso represente uma censura prévia, é censura sim. Mas é necessário ressaltar também que nem sempre esse termo pode representar algo ruim, pois precisa ser desconstruído esse sentido pejorativo, e isso também é uma das armas utilizadas pelos biógrafos. Na nossa sociedade já somos censurados enquanto pessoas. Só podemos utilizar a nossa liberdade desde que não prejudique o outro (liberdade negativa). Outros bons exemplos são: as censuras de músicas racistas, as faixas indicativas de idade para determinado programa, filmes, novelas, etc. Além disso, não se pode esquecer também da censura às propagandas de cigarro, devido a essa medida, 33% da população brasileira deixou de fumar, ou seja, “um a cada três brasileiros deixou de fumar depois que medidas que restringiam a propaganda de cigarros em televisão e veículos de comunicação”[2], sendo que estava em questão também o direito a liberdade de comunicação e de expressão na Constituição. A censura também pode ser vista como algo positivo, pois ela resguarda também certos direitos, sendo estes tão importantes e que não pode ser esmagados em nome da liberdade de expressão. Além disso, esta é uma situação específica, ou seja, uma situação excepcional, e no qual caberia, pois trata de um direito de personalidade e necessitaria de uma autorização, pois nos remete aos interesses particulares que são regulados pelo nosso código civil e consta na nossa constituição. E essa autorização prévia é a medida necessária de caráter preventivo, como a própria qualificação quer dizer para que os direitos individuais, fundamentais à privacidade e à intimidade possam conviver em harmonia com a liberdade de expressão quando se quer ultrapassar o âmbito do que é de domínio público para adentrar-se ao restrito campo das intimidades de cunho privado.
A mídia manipula?
Outro ponto a destacar é o argumento utilizado pelos biógrafos, de que se a história fica sobre critério do criador, este não pode contar tudo sobre a vida dele. Mas de que forma se pode garantir se aquelas informações no qual o biógrafo propõe expor sobre o biografado são verídicas?
Primeiramente, vamos ao conceito de Biografia[3] do Dicionário Informal: é um texto formal, expresso na terceira pessoa, sobre a vida de uma determinada identidade. E como sinônimos temos: história, conto, fábula, ficção, narração, etc. Então já podemos perceber que a biografia não tem caráter científico, e as informações contidas ali ficam a caráter do escritor, e como diz aquele famoso ditado “Quem conta um conto aumenta um ponto”.
Pode-se afirmar que o biografado é uma vítima, as informações podem ser manipuladas facilmente a critério da pessoa que narra a história. Por isso é um absurdo a invasão da vida privada, se o biografado enquanto vida não quis a sua exposição, seria correto expô-lo enquanto morte? Claro que não. E caso seja autorizado pelo biografado, que o mesmo também ganhe com isso. Não se pode negar que é uma questão de interesses, sendo dessa forma, ambas as partes podem ganhar.
Sem querer desmerecer, existem sim bons trabalhos biográficos contribuidores para a história social, mas não se consegue enxergar determinadas biografias como informações de imprescindível interesse público que não possa ficar a sociedade sem acesso. A liberdade de expressão é aqui um lobby que dá espaços para uma mídia manipuladora e também dá espaços para a indústria da fofoca. Pois qual a utilidade pública que trazem determinadas biografias, como a opção sexual de fulano ou beltrano ou a traição de C ou D, ou como foi o acidente de A, como já expressei, pela falta de "interesse útil-informativo" da questão. Qual o interesse público aqui? Informar a sociedade? Ou explorar detalhes íntimos? Considera essa última indagação também uma afirmativa.
É muito fácil a mídia e os grandes interessados, que são os biógrafos levar até as nossas casas e comparar pessoas como Roberto Carlos, Caetano, Gilberto Gil, Erasmo Carlos como censores, um argumento sem fundamentação. É uma injustiça dizer isso de pessoas que lutaram contra a censura, contra o totalitarismo. A ditadura não se compara com os dias atuais, se fosse assim, não sequer poderíamos expor nossas opiniões, temos uma constituição democrática no qual os próprios direitos fundamentais e a democracia estão inseridos nas cláusulas pétreas. Como nomes consagrados da música popular brasileira, alguns deles com reconhecido histórico de luta contra a própria ditadura, podem defender uma posição claramente contrária à liberdade de expressão? É o que deixa bem claro Gilberto Gil sobre isso:
"Nunca quisemos exercer qualquer censura. Ao contrário, o exercício do direito à intimidade é um fortalecimento do direito coletivo. Só existiremos enquanto sociedade se existirmos enquanto pessoas".[4]
Qual direito prepondera?
Os direitos aqui em conflitos devem ser expressos na forma de princípios, isso é fundamental ao nosso Estado Democrático de Direito, já que a própria Constituição brasileira resguarda esses direitos, significa dizer que ela sujeita a concorrência de princípios. Já que não há hierarquia de direitos fundamentais, a solução deve está apurada no caso concreto, ou seja, é preciso utilizar-se da Teoria da ponderação de Robert Alexy. A ponderação consiste em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis. Segundo Barroso (2013), essa nova interpretação constitucional, no qual há colisão de direitos fundamentais, exige que sua aplicação seja mediante ponderação, ou seja, o intérprete irá aferir o peso de cada um, fazendo concessões recíprocas.
Outro doutrinador afirma: “Essa colisão de princípios será resolvida, levando-se em conta o peso ou a importância de cada um dos princípios concorrentes, a fim de se escolher no caso concreto qual deles prevalecerá ou cederá ao outro”. (FARIAS, 2008, pag. 153)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos perceber o quão complexo são os direitos de personalidade em conflito com os direitos de liberdade de expressão. Na hipótese de colisão devem ser analisados o sobrepesamento desses direitos com sua carga principiológica (Teoria da ponderação). Entretanto, um caminho essencial é a veracidade do fato. Deve-se está atento ao papel também dos meios de comunicação, essenciais para a sociedade democrática. O real interesse pode está mascarado por trás de como as informações são divulgadas. Como podemos observar ao longo do trabalho, alguns argumentos utilizados pelos biógrafos poderiam sobrepesar em outra ocasião, mas não nessa situação. É importante salientar que a doutrina ainda procura buscar paradigmas do passado como o conceito de censura para soluções no presente, nos quais não se ajustam aos modelos que se pretende enquadrá-los. Os direitos de personalidade são direitos supremos do homem e asseguram ao próprio indivíduo a senhoria de sua pessoa.
REFERÊNCIAS:
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
____________. Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa in Revista de Direito Privado, volume 18, 2004; Revista dos Tribunais.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e comunicação. 3. ed. Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris, 2008.
MENDES, Gilmar Mendes; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. Temas de Direito Civil. 4. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
* Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Piauí – UFPI.
[1] Trabalho apresentado na disciplina Linguagem e Argumentação Jurídica (UFPI), ministrada pelo prof. Dr. Fernando Ferreira Santos.
[2] Estudo feito pela Organização Pan - Americana da Saúde (Opas), entre 1989 e 2010. Disponível em: < http://rf-brasil.jusbrasil.com.br/politica/104138510/proibicao-da-publicidade-de-cigarros-marca-o-dia-mundial-sem-tabaco>. Acesso em 03 de maio de 2014.
[3] Disponível em: <http://www.dicionarioinformal.com.br/biografia/>. Acesso em 01 de maio de 2014
[4] Disponível em: http://g1.globo.com/musica/noticia/2013/10/em-video-artistas-dizem-que-nunca-quiseram-censurar-biografias.html. Acesso em 03 de maio de 2014.