O Estatuto da Criança e do Adolescente, com as alterações promovidas pela Lei nº. 12.010/09, estabeleceu, nos nove incisos do art. 101, medidas protetivas a serem aplicadas ao menor em situação de risco, ou seja, àquela criança ou adolescente cujos direitos estatuídos no mencionado diploma legal se encontrem violados ou ameaçados, seja em razão de sua própria conduta ou por ação ou omissão da sociedade ou do Estado ou, ainda, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis.
São as seguintes as medidas protetivas: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; acolhimento institucional; inclusão em programa de acolhimento familiar; colocação em família substituta.
No que toca ao acolhimento institucional, importa observar que a inclusão do §3º1 ao art. 101 do ECA frisou competir exclusivamente ao juiz o encaminhamento de crianças a entidades dessa natureza, rompendo, dessa feita, com a prática sedimentada de acolhimento por qualquer motivo e, ainda, por decisão de assistentes sociais, conselheiros tutelares e promotores de justiça. Contemplou-se, como exceção à regra do acolhimento por decisão judicial, apenas a situação de urgência, na qual o responsável pela entidade poderá receber o menor, mas desse fato deverá dar conhecimento ao juízo da Infância e da Juventude no prazo de 24 horas.
Ainda acerca do acolhimento institucional, necessário registrar que, em face da previsão estatuída pelo art. 28, §6º, III2, e, bem assim, a bem do menor indígena encontrado em situação de risco, deve o juízo da Infância e da Juventude proceder à imediata intimação da FUNAI acerca do acolhimento, para que desde o princípio se dê à instituição indigenista a oportunidade de, através de seus assistentes sociais, buscar a melhor solução junto à aldeia de onde o menor foi retirado. Deixar para dar ciência à FUNAI somente na instrução processual ou, pior, após apresentação de alegações finais pelas partes ou interessados é negar por completo a missão institucional da fundação, além de significar, para a criança acolhida, uma privação do convívio familiar, seja na família natural ou substituta, por muito mais tempo do que o necessário à solução da sua situação.
Outrossim, importa anotar que, em razão desse hábito de não comunicar à FUNAI o acolhimento de crianças indígenas, lamentavelmente sedimentado em grande parte das instituições, é de todo recomendável, mormente aos assistentes sociais dessa Fundação e aos procuradores federais, que se empreendam visitas às instituições de acolhimento. Não raro são essas as ocasiões em que o procurador federal acaba conhecendo crianças cujo caso em nenhum momento chegou ao seu conhecimento. Também com frequência ocorre do(a) assistente social da FUNAI se dirigir a uma unidade de acolhimento para visitar determinada criança e, na ocasião, descobrir que várias outras ali também se encontram, sem que a fundação indigenista tenha tomado conhecimento disso.3
Outra inovação da Lei nº 12.010/09 foi conferir às entidades responsáveis por programas de acolhimento institucional ou familiar a obrigação de confeccionar um plano individual de atendimento4, a ser elaborado por equipe técnica da unidade, com vistas à reintegração familiar ou, a depender do caso, à colocação em família substituta. Nesse particular, insta esclarecer que
as noções de família e parentesco são essenciais para compreender a lógica da organização social dos povos indígenas e, consequentemente, as práticas relacionadas à formação e aos cuidados com suas crianças e adolescentes. Em muitos casos, as crianças e adolescentes indígenas recebem cuidados de todos os seus familiares, sejam eles consanguíneos ou afins, e a convivência familiar e comunitária é plenamente exercida com notáveis autonomia e independência.
Neste sentido, nos termos do inciso I do parágrafo 6º do art. 28 da Lei 8.069/90, introduzido pela Lei 12.010/2009, merecem respeito as práticas indígenas que atribuem não apenas aos pais, mas à coletividade, os compromissos e responsabilidades atinentes à educação, formação e proteção de crianças e adolescentes. Tais práticas não podem, por si sós, ensejar a perda ou suspensão do poder familiar, porquanto as questões a ele concernentes devem ser compreendidas em consonância com a realidade dos povos indígenas.5
Ainda sobre o tema, o antropólogo Levi Marques Pereira igualmente fornece valiosa colaboração para a compreensão de quão ampla é, para as comunidades indígenas, sua família extensa, vejamos:
Fogo familiar - tal como aparece nos relatos dos antigos viajantes e cronistas - expressa melhor a unidade de residência entre os kaiowá atuais, do que termos como “família nuclear” ou “elementar”. O núcleo central do fogo familiar é formado pelo marido, esposa e filhos, mas é comum reunir parentes próximos de um dos cônjuges, ou mesmo casais, em caráter temporário ou mais ou menos permanente. Assim, pode reunir pessoas ligadas por quatro tipos de relações: consanguinidade, descendência, aliança, e uma relação de pseudoparentesco, pela instituição da adoção. O fogo reúne um grupo de comensalidade, com fortes laços de cooperação econômica e solidariedade política.
Em razão do exposto, é de se frisar que o acolhimento institucional só há de ocorrer quando não existir membro da família extensa – na acepção acima descrita - que possa assumir, em segurança, o cuidado da criança indígena. No entanto, se o integrante da família extensa estiver inserido no mesmo contexto propício à violação dos direitos do infante ou à exposição deste a situação de risco, autorizada estará a inclusão do menor em programas de acolhimento familiar ou institucional.
No ponto, importa anotar que muitos casos de acolhimento ocorrem pela simples falta de capacitação dos atores sociais envolvidos para lidar com a diferença, ou seja, para lidar com a criança indígena. Desse modo, é inconcebível que conselheiros tutelares partam de conceitos próprios à cultura dos não índios para definir que determinada criança indígena se encontra em situação de risco, representando ao Ministério Público pelo correspondente acolhimento. Semelhante irresignação se pode encontrar nas palavras do antropólogo Marcos Homero Ferreira Lima, para quem
é imperativo ressaltar que muito daquilo que, aos olhos de um “branco” parece situação de risco, para um índio não é. Um outro ponto relevante é que, Conselhos Tutelares e operadores do direito, no afã de salvaguardar as crianças, de se mostrarem eficientes e atenderem às expectativas da sociedade envolvente, acabam por desconsiderar os modos de ser dos índios, seus usos, costumes, tradições e organização social. […] É necessário que entendam que as etiquetas de higiene, conforto, bem-estar dos índios não se iguala a dos brancos. É imperativo que saibam que os conceitos de “maternidade”, “vida”, “morte”, “doença”, “saúde”, “infância”, “sexualidade” não são universais, mas que, ao contrário, nas comunidades indígenas encontram as particularidades locais. Destituídos do preparo para lidar com esses aspectos da alteridade, os relatórios preparados por estes conselheiros condenam as crianças indígenas à saída do seio cultural. Promovem a morte do índio existente na criança, tudo na legalidade e revestido da maior boa-vontade.”6
Sendo de fato necessária a institucionalização e uma vez incluída a criança em programa de acolhimento, é de se acompanhar o cumprimento, por parte dessas instituições, da obrigação alhures mencionada, qual seja, a imediata confecção de plano individual de atendimento e, bem assim, o envio semestral de relatório circunstanciado à Vara da Infância e da Juventude. Nos termos do art. 92, §2º7, do ECA, cada criança demanda um relatório individualizado, não se aceitando relatório que açambarque todas elas.
A par do envio semestral de relatórios individualizados por parte das entidades de acolhimento, a Lei nº 12.010/09 também assegurou às crianças acolhidas o pronunciamento do juízo em iguais interregnos de tempo, senão vejamos:
Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
[...]
§1º Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei.
A partir da leitura conjunta dos arts. 19, §1º, e 92, §2º, pode-se dizer que o caso de cada criança acolhida seguirá a seguinte sequência: o plano individual de atendimento elaborado pela entidade de acolhimento será avaliado pela equipe multidisciplinar do juízo, a qual oferecerá parecer que fundamentará a decisão do juiz, quem, de sua vez, decidirá se a hipótese reclama reintegração à família de origem ou colocação em família substituta.
A par dos prazos acima assinalados, não se pode perder de vista, outrossim, o quanto disposto no §2º8 do art. 19 do ECA, que estabelece limite de dois anos para a permanência de criança ou adolescente em programas dessa natureza.
Todas essas colocações somadas à expressa advertência feita pela Lei nº 12.010/09 no §1º ao art. 101 do ECA, o qual consigna expressamente que “o acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta”, deixaram claro o intento do legislador infraconstitucional de romper com a cultura do abrigamento, por meio da qual crianças vinham sendo privadas da convivência familiar e comunitária por qualquer motivo e, ainda, por qualquer pessoa, não raro permanecendo em entidades de acolhimento até alcançar a maioridade sem sequer o ajuizamento de uma ação de destituição do poder familiar em seu favor9. A obrigação de reavaliar semestralmente a situação de cada uma delas nada mais constitui do que uma forma de exigir do Poder Público a contínua busca por solução diversa ao acolhimento institucional.
Também importa mencionar observação feita por Sávio Bittencourt, para quem a substituição operacionalizada pela Lei nº. 12.010/09 do termo “abrigo” e seu consectário “abrigamento” por “acolhimento institucional” possui grande utilidade por demonstrar “que a ideia lúdica de um abrigamento garantidor de direitos na verdade esconde a privação do direito essencial à convivência familiar. O termo acolhimento institucional é mais claro ao apontar que à criança ou ao jovem submetido ao afastamento da vida familiar está sendo sonegado um direito fundamental e, portanto, só pode permanecer nesta situação nas hipóteses em que ela seja indispensável para assegurar seus interesses maiores e mais urgentes.”10
Dessa sorte, é de se reconhecer a grande conquista que foi a introdução do §6º, III, ao art. 28 do ECA, obrigando a intervenção e oitiva da FUNAI como forma de garantir e resguardar o melhor interesse da criança indígena. De se registrar, por oportuno, que, embora tal dispositivo legal esteja topograficamente alocado na seção que cuida da família substituta, ele se aplica igualmente aos casos de acolhimento institucional, como forma de otimizar a atuação da fundação e abreviar o tempo de permanência da criança indígena em instituição de acolhimento.
Notas
1“Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
[...]
§ 3º Crianças e adolescentes somente poderão ser encaminhados às instituições que executam programas de acolhimento institucional, governamentais ou não, por meio de uma Guia de Acolhimento, expedida pela autoridade judiciária, na qual obrigatoriamente constará, dentre outros:
I - sua identificação e a qualificação completa de seus pais ou de seu responsável, se conhecidos;
II - o endereço de residência dos pais ou do responsável, com pontos de referência;
III - os nomes de parentes ou de terceiros interessados em tê-los sob sua guarda;
IV - os motivos da retirada ou da não reintegração ao convívio familiar.”
2 “Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.
[...]
§ 6 º. Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
[...]
III - a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
3Essa realidade das crianças indígenas acolhidas não difere muito das demais crianças, embora para as primeiras as consequências sejam ainda mais gravosas. Sávio Bittencourt, ao comentar o Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes, realizado pelo IPEA, aponta que “apenas metade (54,6%) das crianças e adolescentes institucionalizados tinha processo nas varas de infância e juventude. As demais, quase metade dos institucionalizados, parece ter sua existência ignorada pelo Ministério Público e pela Magistratura. Estão no limbo jurídico, sem que os guardiões de seu direito saibam disso.” BITTENCOURT, Sávio. A Nova Lei de Adoção – Do Abandono à Garantia do Direito à Convivência Familiar e Comunitária. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 11 p.
4“Art. 101. […]
§ 4°. Imediatamente após o acolhimento da criança ou do adolescente, a entidade responsável pelo programa de acolhimento institucional ou familiar elaborará um plano individual de atendimento, visando à reintegração familiar, ressalvada a existência de ordem escrita e fundamentada em contrário de autoridade judiciária competente, caso em que também deverá contemplar sua colocação em família substituta, observadas as regras e princípios desta Lei.”
5INFORMAÇÃO N° 124/PGF/PFE/CAC-FUNAI/2009.
6LIMA, Marcos Homero Ferreira. (no prelo) Adoção e institucionalização de crianças indígenas ou “matando o índio existente na criança”. Revista da FUNAI.
7“Art. 92. As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deverão adotar os seguintes princípios:
[...]
§ 2º Os dirigentes de entidades que desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional remeterão à autoridade judiciária, no máximo a cada 6 (seis) meses, relatório circunstanciado acerca da situação de cada criança ou adolescente acolhido e sua família, para fins da reavaliação prevista no § 1o do art. 19 desta Lei.”
8 “Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.
[...]
§ 2º A permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se prolongará por mais de 2 (dois) anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária.”
9“PEDIDO DE DESABRIGAMENTO. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS DOS GENITORES. 1. É inaceitável que crianças permaneçam institucionalizadas há mais de nove meses, privadas da convivência familiar e que sequer tenha sido proposta ação de suspensão ou destituição do poder familiar. 2. Por mais precárias que sejam as condições de vida da família, essa situação de abrigamento deve ser provisória e breve. 3. Essa demora impõe que seja oportunizado aos infantes receberem mais carinho dos genitores e avô, o que somente será possível com a ampliação do sistema de visitação, que deverá ser semanal e nas dependências do abrigo, com supervisão técnica. 4. É pertinente o brado da Procuradoria de Justiça: Falta de recursos econômicos, por si só, não está mais a autorizar o afastamento dos filhos dos pais, como reza o art. 23 do ECA. É preciso priorizar os vínculos afetivos, investir no fortalecimento do apego, pensar e repensar as políticas públicas, se efetivamente queremos um país melhor, mais justo, fraterno e menos violento! Recurso provido.”(Agravo de Instrumento Nº 70014348072, Sétima Câmara Cível, TJRS, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 19/04/2006)
10BITTENCOURT, Sávio. A Nova Lei de Adoção – Do Abandono à Garantia do Direito à Convivência Familiar e Comunitária. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 64 p.