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Personalidade e persuasão: ética prática, história e constitucionalismo em um discurso sobre a personificação jurídica dos animais não humanos

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Estudam-se as possibilidades fáticas de concessão da personalidade jurídica aos animais não humanos, através de uma abordagem argumentativa dos ditames constitucionais (constitucionalismo discursivo).

"Há uma série de fatores, que a lei não substitui, e esses são o estado mental da nação, os seus costumes, a  sua infância constitucional..." Machado de Assis

Resumo: Delinear-se-á no presente trabalho uma abordagem filosófico-jurídica dos paradigmas teóricos e científicos hodiernos que sustentam a extensão do princípio da igualdade aos animais não-humanos por meio de uma igual consideração de interesses, verdadeiro alicerce para o advento do direito animal. Sob a égide de uma concepção que considera o meio-ambiente em sua dimensão etérea,  da teoria darwinista da evolução das espécies, bem como através de um breve histórico da civilização humana, pretende-se apresentar uma fundamentação correta e coerente das possibilidades fáticas de os demais seres sencientes tornarem-se sujeitos de direitos com a simultânea aquisição da personalidade jurídica. Numa era pós-moderna em que o direito constitui-se intrínseco à moral, e cujo lastro centra-se na justiça, é inevitável romper com as barreiras impostas pelo especismo, ainda que às custas de uma aparente dessacralização da vida humana. 

Palavras-chave: igualdade, especismo, direito, moral, justiça

Sumário: I. Introdução. II. O evolucionismo e a evolução moral da espécie humana. III. Pessoa: a civilização, o cristianismo e a criação. IV. Póspositivismo: conceito e validade do direito em prol do abolicionismo animal. V. Considerações finais. VI. Referências

I. Introdução

O sentido da vida basta-se a si mesmo? E o sentido da vida humana se autojustifica? A segunda indagação ganhara completude? Prefiro entender que a resposta à primeira pergunta é afirmativa, no que concerne à última, vou deixá-la em aberto para não me esvair por veredas que se contrapõem à dissertação que apresento em prol da defesa dos animais não humanos, tampouco pelo oblíquo caminho da hipocrisia, tão conveniente quanto medíocre, quando amalgamado por um discurso.

A discussão colocada em pauta é a da necessidade de tutela de direitos e garantias fundamentais para os animais, considerando-os como sujeitos de direito e, simultaneamente, concebendo-os como pessoas no âmbito jurídico. Os animais não humanos já são contemplados com direitos em nossa Constituição, mas isso ocorre sem que sejam considerados titulares o que é, no mínimo, contraditório. Quanto à personalidade jurídica, muitos arguem que para tanto, é necessário a ostentação da condição humana, mas o que está sendo requerido é o gozo do status de pessoa na órbita do direito e para tal o único critério correspondente é a existência de um  ente considerado  sujeito de direitos. A exemplo da pessoa jurídica que, muito embora não sendo uma pessoa humana, comprova o fato de a pessoa no âmbito das atribuições de direitos e deveres ser uma criação jurídica.

Enseja-se, portanto, o reconhecimento dos animais enquanto sujeitos de direitos e a atribuição de personalidade jurídica a estes que, enquanto sujeitos dotados de vontade e sensibilidade, com a devida representação legal, devem dotar o direito de acesso à justiça de universalidade - aqui delineado em seu sentido duplo: a justiça como valor ético supremo e o acesso à jurisdição propriamente dita[2]- para além das barreiras especistas que obstam o longo alcance deste conceito.

Os objetivos aqui apresentados fazem parte de uma concepção de ética, essencialmente utilitarista, sobremaneira respaldados nos postulados do filósofo australiano Peter Singer cuja proeminência é inegável na filosofia e na elaboração argumentativa em prol da libertação animal. Sendo assim a ética é vislumbrada em sua dimensão factual, visto que não se constitui como uma estrutura conceitual ideal sem qualquer valor no âmbito das condições fáticas e jurídicas, além de se fazer necessária uma verdadeira revolução nesse sentido para que novos posicionamentos morais em relação aos demais seres sencientes possam constituir o discurso predominante e, por conseguinte, transforme-se numa realidade com dimensões constitucionais, afinal como afirma Alexy, o discurso precisa do direito para ter realidade e o direito do discurso para obter legitimidade.[3]

Vislumbrando a realidade com um olhar otimista, apesar dos 30 milhões de animais mortos todos os anos em experiências vivsseccionistas- muitas delas sem o objetivo de lograr quaisquer benefícios- e outros 20 bilhões através de abates procedidos de modo atroz[4], é possível perceber uma mudança gradativa por meio de movimentos sociais, da mobilização de artistas e pela comoção acadêmica que anseia e oportuniza mais e mais o abolicionismo animal. A liberdade e a igualdade, direitos que são o núcleo dos direitos fundamentais humanos, fazem parte também, desde então, da centralidade com que se busca a dignificação de seres que são capazes de sofrer, critério fundamental para uma igual consideração de interesses e axiologia fundante da elaboração que se segue.

II. O evolucionismo e a evolução moral da espécie humana

Por vezes exclusivamente associado à teoria darwiniana, o evolucionismo faz também referência à um conjunto de doutrinas erigidas entre os séculos XIX e XX, entre as quais se destacam a de Spencer (1820-1903) e a de Bergson (1859-1941), que considera a concepção filosófica evolucionista- o desenvolvimento inevitável do real em direção a estados mais aperfeiçoados- um modelo explicativo fundamental para o incessante fluxo de transformações do mundo natural, biológico e espiritual. Pode- se depreender, assim, a partir de um olhar sobre a história da civilização humana, o cárater universal desse  conjunto de doutrinas que condiz, ainda que não parcialmente, com uma realidade de perene evolução ou de perpétuo anseio de evolução em que estamos plenamente inseridos.

Em outras palavras, as ideias do evolucionismo lançam um olhar que concebe o homem,  suas realizações, assim como a natureza no todo em um eterno processo dialético de progresso e aperfeiçoamento no desenvolvimento de novas capacidades, habilidades, manifestações e potencialidades. Controvérsias à parte, fato é que a teoria evolucionista apresentada por Charles Darwin, em 1858, por meio da publicação de A Origem das Espécies, insere-se nesse contexto de progresso e transformação, uma vez que reflete-se como uma das teorias mais emblemáticas da história da humanidade e cujas consequêncas transcenderam o âmbito das ciências, sendo ainda hoje fonte de reflexões morais e profundas mudanças nos paradigmas axiológicos.

Há muito teorias racionalistas emergem e nos tornam reféns da dúvida, do questionamento e, por vezes, imobilizados diante da coerção imposta pelos modelos reinantes de teoria moral, filosófica e religiosa.  Mas como afirmara o grande Toth do Egito cerca de dois mil anos antes da era cristã - o Toth alcunhado pelos gregos como "Hermes Trismegisto" (o sábio três vezes magno)- ao enunciar o primeiro dos " Sete Princípios Herméticos": a essência do Universo é a Razão, Lógos, e que todo universo é racional, lógico. E sendo o ántrophos um mikrokosmos, é também o homem essencialmente Lógos, Ratio, Razão[5]. A razão materializada pela dúvida e pela indagação- É preciso duvidar de tudo-[6] é, nesse sentido, o grande fundamento da própria constituição humana, dos seus valores, a condição suprema que permeia o processo evolutivo- histórico da humanidade em seu cerne.

Revolução Neolítica, Revoluções liberais, descobertas de novas técnicas, formação dos Estados Nacionais, guerras, capitalismo, entre outras candentes fontes de controvérsias e polêmicas, podem ser consideradas os verdadeiros motores da história que, dialética em sua essência, demonstra a imutabilidade imanente aos acontecimentos que se sucedem no decorrer dos séculos. Imutabilidade que a partir da publicação de Charles Darwin, o mundo passara a perceber em sua dimensão universal, ao ser considerada elemento crucial da evolução das espécies, o que impulsionou instabilidades nos campos científico, ideológico e religioso. Desde então, os  alicerces morais da civilização ocidental, essencialmente judaico-cristãos, foram profundamente abalados com uma intensidade tão ou mais impactante quanto à produzida com a publicação de "A Revolução das Orbes Celestes", de Nicolau Copérnico, que refutara o geocentrismo, as teses ptolomaicas, e assentara as bases do heliocentrismo moderno.

Em se considerando as revoluções, transformações incidentes em dimensão universal, conclui-se, pois, pelo cárater revolucionário da ideias darwinianas cujo arcabouço teórico sobrepujara a teoria aristotélica da imutabilidade , fixidez e hierarquização do universo, segundo a qual cada espécie ocupava seu lugar apropriado e permanente, além de propor que as diferenças genéticas e anatômicas entre os homens e os demais seres era de grau e não qualitativa[7]. A teoria da seleção natural proposta por Darwin e pelo pouco citado Alfred Wallace (1823-1913), versa sobre o fato de os seres vivos sofrerem variações genéticas originadas por alterações ocorridas nos genes e sobre as mutações gênicas que se perpetuam com a duplicação do material genético.

Graças à capacidade de variar geneticamente, as gerações que se sucedem apresentam indivíduos com diferenças capazes de torná-los aptos a sobreviver e se reproduzir e, por fim, fazerem parte da seleção dos mais aptos, ou seja, da seleção natural. Para Darwin e Wallace, a seleção natural é o processo pelo qual as espécies de seres vivos se adaptam ao meio ambiente, fenômeno denominado de adaptação. Esta teoria, diga-se a propósito com uma inegável proeminência  até os dias atuais , mais recentemente passara a propalar sua preponderâcia até no hermético mundo jurídico através de um tímido processo de igualização e tutela jurisdicional dos demais integrantes do Reino Animal.

Há muito vem-se testemunhando a tutela de animais por meio de leis e de trabalhos doutrinários pioneiros a exemplo do de Henry Salt, publicado em 1914, Les droits de l'animal considérés dans leur rapport avec le progrès social; da Déclaration des droits de l'animal, elaborada por André Géraud em 1924 com base na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 que embasou,por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais proclamada pela UNESCO em 1978 e leis como a editada em 22 de julho de 1822, na Grã- Bretanha, para impedir o tratamento cruel que era destinado ao gado[8]. Na França, baluarte das concepções políticas modernas, em 1850, a Lei Grammont, proibiu maus tratos em via pública,e em 1959, os maus tratos tornaram-se completamente proibidos, independente do lugar[9].

A partir dos dados apresentados, pôde-se perceber pequenas mudanças no tratamento destinado aos animais, ao menos contemplando-os com algumas leis, apesar de uma eficácia pouco comprovada. Reflexo de atos minoritários e que assumem uma relevância gradativa  , fazendo com que filósofos e juristas levantem contundentes questionamentos sobre o locus mais adequado para os seres sencientes em sua totalidade; reflexões que atingiram seu auge na década de 70 com a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, com a criação do GAP[10],com obras eloquentes como "Libertação Animal" de Peter Singer, e "Ética Prática" do mesmo autor. As obras do autor australiano  conseguem trazer à luz as raízes filosóficas das controvérsias contemporâneas e de como o esboço de sua teoria acerca da ética, aplicada coerentemente, pode ser utilizada em casos práticos. As teorias no campo da ética tem como escopo supremo a viabilização moral de condutas e atos que tenham uma significância no mundo fático, a ética não é um sistema ideal de grande nobreza na teoria, mas inaproveitável na prática.[11]

A ética apresenta um vasto campo de estruturas dispostas a alicerçar uma determinada concepção argumentativa, aqui, em consonância com a estruturação filosófica que embasa os postulados de Peter Singer, prioriza-se uma abordagem utilitarista, uma das vertentes do consequencialismo em que os resultados (efeitos positivos condizentes com os objetivos almejados) preponderam em detrimento de regras morais. É um modelo, um dos paradigmas que o vasto campo da ética dispõe, não uma verdade disposta a fundamentar logicamente todos os contextos que amalgamam as realidades circundantes da vida em sua extensão - já que, em outras situações pode demonstrar-se completamente inadequado-, é, enfim, um caminho útil, eficaz e possível para que teorias especistas e segregacionistas sejam sobrepujadas por um ideal ético que inclua os animais não-humanos em nossa realidade de consideração.

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No nosso século, o princípio da igualdade estendido à todos os seres humanos é algo indiscutível, desconsiderar tal vai de encontro a possibilidade de se erigir um discurso racional, como afirma Singer, faz parte da ortodoxia ético-política predominante[12].  As diferenças entre seres humanos restringem-se à sua individualidade, não são cerceadas por questões ligadas ao sexo ou à raça, como outrora nos tempos de vigor dos regimes do apartheid,do escravagista e até mesmo do nazismo. Concebemos, pois, os seres humanos como iguais em sua dimensão de interesses, já que podemos nos diferenciar quanto à capacidade psíquica, habilidades, condição social, apresentarmos ou não  alguma forma de deficiência, nos identificar com determinado grupo étnico ou com determinada orientação sexual; o princípio da igual consideração de interesses, portanto, é um meio imparcial de se considerar os interesses de outrem independentemente de sua condição individual. De forma sumária, o princípio da igual consideração dos interesses requer um processo de igualização por meio da consideração dos interesses alheios por entendê-los como importantes, independente das aptidões ou caracteres dos indivíduos que os detenham.

O princípio da igual consideração de interesses tem suas implicações, uma delas, demasiadamente polêmica, é a possível emersão de dilemas não-igualitários em que um tratamento desigual deve ser dado para que um processo de igualização seja promovido, a exemplo de alguém que de pouca condição dispõe e requer que o Estado desprenda mais recursos para si do que quem goza de um status econômico mais favorável, ou no caso das ações afirmativas para estudantes que acabam facilitando por um processo seletivo desigual, o ingresso de indivíduos que tiveram menos oportunidades de acesso à uma educação de qualidade. Segundo esse princípio, os interesses devem ser pesados imparcialmente, sem olhar a quem,  deste modo, os indivíduos devem ter os seus interesses atendidos e analisados de acordo as suas circunstâncias que podem ser diferentes dos interesses e das circunstâncias de outros.

Jeremy Bentham, sistematizador do utilitarismo moderno, foi um dos precursores de ideias e ideais capazes de ensejar uma consideração moral para seres não detentores da "privilegiada" condição humana, e em um trecho em defesa do abolicionismo dos escravos das possessões inglesas e contra a condição animal que lhes era  relegada , escrevera:

"Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas,a vilosidade da pele ou são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda compreensão possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que o bebê de um dia, uma semana ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento."[13]

A transcrição de um excerto da obra de Bentham revela o cárater quase premonitório de seus postulados, dos quais pode-se depreender o critério vital ideal para a igual consideração dos interesses: a capacidade de sofrer, a sensibilidade, a senciência e não aptidões de raciocínio,  de sociabilidade ou de desenvolvimento da  linguagem. Em se considerando determinadas limitações biológicas percebidas nos seres humanos, a realidade especista emerge com um papel fundante de nossas concepções que, revistas e abaladas com a emersão da capacidade de sofrer como um critério fundamentador de nossas condutas, mostram-se  incompatíveis com uma ética. Nesse ínterim, a discriminação com seres de outras espécies mostra-se tão indefensável quanto a lógica que sustenta concepções como o racismo, sexismo, entre outras aberrações morais que por ora abrangem nossas condutas. A base que o  princípio da igual consideração de interesses propicia- sob a égide de um respaldo moral também concedido pela teoria da evolução de Darwin- não pode ficar adstrita a realidade dos seres humanos, como ressalta o próprio Singer[14].

IV. Pessoa: a civilização, o cristianismo e a criação

No decorrer da apresentação de conceitos que se reputam importantes para uma abordagem jurídica, é imprescindível que nos reportemos ao legado romano. Em uma sociedade marcada pela hierarquização, a posição dos indivíduos estava vinculada ao status (status libertatis, status civitatis e status familiae), sendo assim, a personalidade jurídica era concedida a quem detinha o status da liberdade-  vislumbrada apenas no sentido político-institucional, subjetividade e autonomia da vontade eram estranhas a realidade de consideração dos romanos; o status de cidadão abrangia necessariamente a existência de homens livres, libertos e que não fossem estrangeiros- estes últimos foram contemplados com a cidadania só em 212 d.C.- e o status de pater familia, isto é, patriarca, ou de pessoa aleni iuris, os subjugados ao poder do pater familia.[15]

Com a queda do Império Romano em 476 d.C., inicia-se a chamada Idade Média e o cristianismo se impõe como instituição reguladora do Estado (em detrimento do poderio dos reis), da sociedade e das almas. Como ideologia reinante, o cristianismo propalara uma concepção diferenciada em relação aos romanos, agora os seres humanos eram vistos como tais, como filhos do Senhor, feitos à imagem e semelhança do Deus Pai. A hierarquização prevalecia, a divisão tripartida da sociedade era seu maior símbolo : " Tripla é pois a casa de Deus, que se crê una: embaixo uns rezam, outros combatem, outros ainda trabalham; os três grupos estão juntos e não suportam ser separados; de forma que sobre a função de um repousam os trabalhos dos outros dois, todos, por sua vez entreajudando-se."[16]Mas a fundamentação, desde então, era outra, tudo se justificava pela vontade de Deus e as pessoas, apesar da exacerbada estratificação, assim eram consideradas, pelo menos discursivamente, e, ao fim, a personalidade era garantida por um direito consuetudinário garantidor também da liberdade medieval, como enuncia Jacques Le Goff:

"O homem medieval não tinha nenhum sentido de liberdade segundo a concepção moderna. Para ele, a liberdade era o privilégio, e a palavra era usada frequentemente no plural. A liberdade era um estatuto garantido, era, segundo a definição de G. Tellenbach, " o justo lugar diante de Deus e dos homens", era a inserção na sociedade.[...] Ela não podia residir senão na dependência, o superior garantindo ao subordinado o respeito a seus direitos. O homem livre era aquele que tinha um senhor poderoso. Quando, na época da Reforma Gregoriana, os clérigos reclamavam a "liberdade da Igreja", entendiam por isto subtrair-se à dominação dos senhores terrenos para exaltar diretamente apenas o senhor mais alto, Deus."[17]

No usufruto da liberdade mantenedora da harmonia social, os homens da Idade Média encontravam sustentáculo moral para o seu lugar na sociedade e para a realidade que os circundava, quanto ao tratamento dos demais seres, a exemplo dos animais,  o locus legítimo era sob o seu domínio - "Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra."[18]-, a ideologia que preponderava estava a cargo dos militantes da fé.

Um breve histórico da Civilização Ocidental, portanto, é suficiente para constatarmos as origens do dilema moral aqui relatado,da relatividade do conceito de pessoa e, sobretudo, da relatividade da dignidade com que esse status fora contemplado. Dignidade esta que enseja a libertação e a sua extensão  para além das barreiras impostas pelo especismo. Mas enfim como consideramos a dignidade? O que ela tem a ver com libertação? E o ser "pessoa" implica necessariamente a ostentação da condição humana?

Em conformidade com a ética Kantiana " a autonomia da vontade é o fundamento da dignidade da natureza humana como um fim em si mesmo, o ser humano, de acordo essa concepção, deve ser tratado segundo suas decisões, já que é caracterizado por um agir intencional, indivíduo cujos atos só serão éticos se vinculados a uma liberdade, a uma manifestação real do seu ser.[19]Ainda nesse sentido afirma Eduardo Luis Tinant:

 La libertad participa así de la construcición de la persona con toda su fuerza moral. En tal sentido, la liberación personal como una forma de libertad requiere el logro de un primer estado íntimo - liberación interior- de conocimiento de la verdade y apetencia del bien- "la verdad os hará libres", dijo Cristo-, y de una tarea constante y virtualmente interminale, que incluye las demás liberaciones mucho más exteriores a la persona, lejanas a su mismidad, pero asimismo ncesarias, ya que liberarse es ir progresivamente conquistando nuevos espacios de libertad, haciendo a ésta más amplia, más efectiva, más fluida (cf. Gérman J. Bidart Campos, "La libertad que me dan y la que me tomo", ED, 107-887). En otras palabras, el desarrollo de la personalidad es la aspiración suprema de la libertad, porque, después de todo, como señaló René Jolivet en su " Tratado de filosofia moral": ética es la ciencia que trata del empleo que el hombre debe hacer de su libertad para conseguir su fin último"

É por isso que quando se fala em dignificação dos animais nos remetemos indubitavelmente, a exemplo de quando falamos da dignidade humana, à questão da liberdade, ou seja, à correspondência de  nossas atitudes em relação aos anseios dos demais seres sencientes que, apesar de não estabelecerem uma linguagem comum com os humanos, exprimem dor e sofrimento através de reações visíveis que só reforçam o cárater especista de atos nossos cujo único escopo é nos proporcionar vantagens sem a devida ponderação de interesses. Seguem discrepantes a essa realidade as experiências vivisseccionistas, o abate de animais, e a própria criação procedida, na maioria das vezes, em condições que desrespeitam o que Peter Singer chama de "as cinco liberdades básicas": Um animal deve dispor, pelo menos, de espaço suficiente para ser capaz de se  voltar, limpar, levantar, deitar e estender os membros sem dificuldade[20]. Em um universo sobremaneira segregacionista, os animais não-humanos não têm sequer um mínimo existencial respeitado, não obstante tutelado por meio de leis- a sua progressiva dignificação é um desafio para aqueles que almejam o alargamento ético da comunidade humana e, simultaneamente, a libertação animal das práticas que os subjugam como coisas, objetos, ou autômatos como considerava Descartes.[21]

A libertação aqui delineada deve ser concretizada através da igual consideração de interesses, esta que não pode se basear em critérios de cognição ou de espécie, mas no critério da sensibilidade, entendida como a capacidade de sofrer ou de sentir prazer - hoje se sabe que a própria evolução do cérebro humano não ocorreu para isolá-lo das leis da sobrevivência e da reprodução, mas para cumpri-las com maior eficácia[22].  Nesse diapasão, não se faz necessário que os mesmos direitos destinados aos seres humanos tenham de  ser estendidos aos animais, uma vez que as necessidades destes últimos nem sempre são semelhantes às nossas; uma igual consideração implica em uma tutela jurisdicional que os reconheça como seres vivos pautada em uma interdisciplinaridade capaz de viabilizar uma aplicação jurídica equânime, fazendo emergir um novo padrão de ética que os inclua em nossa realidade de consideração e, por conseguinte,  que seja condizente com o bem maior resguardado pela própria Contituição, a justiça.

Eis que, ao ressaltar a necessidade da tutela dos animais pelo ordenamento jurídico, surge a indagação de como abarcar os animais nas relações jurídicas e enfim, de como concebê-los enquanto sujeitos de direito.

Sob a égide de uma filosofia utilitarista, é crucial a escolha de meios que possam lograr êxito na proteção destes seres vivos; o discurso aqui desenvolvido se faz em prol da possibilidade de os seres sencientes tornarem-se sujeitos de direitos e adquirirem personalidade jurídica para uma tutela mais eficaz e que faça com que o paradigma ético propalado pelos diversos movimentos sociais  a favor do direito animal ganhe contornos fáticos e jurídicos.

 Não é algo impossível, tampouco que  vai de encontro a uma realidade vigente considerar os animais não humanos como sujeitos de direitos, já que são concebidos como tais  os condomínios, o nascituro, a sociedade de fato, sociedade não personificada, espólio, massa falida, herança jacente e vacante, igrejas, orgãos púlicos despersonalizados (Ministério Público, Procon, Tribunal de Contas, cartórios, a Mesa do Senado Federal, o Governador do Estado), o morto [23]; além do fato de, nesse universo, serem consideradas pessoas, a pessoa física propriamente dita e a pessoa jurídica que muito embora advenha de uma vontade humana, não se constitui como um ser humano de fato.

O ser pessoa no mundo jurídico é todo e qualquer ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações. Sinônimo de sujeito de direitos, como ressalta Maria Helena Diniz, é a pessoa. Francisco Amaral, ainda  faz a importante constatação de que não há sujeitos sem direitos, como não há direitos sem titular.[24] Nessa linha de intelecção, o fato de Lei Maior contemplar os seres sencientes impedindo, proibindo e até promovendo a responsabilização criminal em situações de maus tratos ou outras práticas atrozes é um modo de considerar esses seres como titulares de direitos, sujeitos que podem figurar no pólo passivo ou ativo de uma relação.  Ainda como afirma Heron de Santana Gordilho, toda personalidade - no sentido aqui tratado- é uma criação jurídica, os óbices que impedem a sua extensão aos animais é de cárater meramente moral e condizentes com os intentos especistas dos seres humanos.

Uma outra importante questão a ser citada é a denominada capacidade jurídica, esta que fora concedida pela ordem jurídica aos seus protagonistas, tornando-os aptos a adquirirem direitos e exercê-los, por si mesmo, por representação ou mediante a assistência de outrem.[25]  Sendo assim, os animais devem ser contemplados com a capacidade de direito, que é a aptidão para a titularidade de direitos e deveres, não obstante esta não se confunda com a capacidade de fato, que é a capacidade suscetível de gradação quanto ao exercício pleno e direto dos direitos pelo próprio titular. Em se considerando a ausência de capacidade de fato dos animais, far-se-á necessário que estejam representados legalmente por terceira pessoa, como no Habeas Corpus da Chimpanzé suíça, da Ação Civil pública em face da crueldade praticada pelo centro de controle de zoonoses de Aracajú ( Sergipe)[26], entre outras vias judiciais pelas quais se pode pleitear a tutela dos animais não humanos.

A estrutura ética- possibilista que embasa a defesa dos animais é o utilitarismo e cuja essência é a busca do bem-estar, da felicidade, de resultados factíveis,  é nesse sentido que juristas como Heron de Santana Gordilho, Daniel Lourenço e Fábio de Oliveira defendem a concessão de direitos subjetivos fundamentais para os animais através da teoria dos entes despersonificados-  possuem capacidade de direito, titularizam direitos subjetivos, inobstante não tenham personalidade jurídica- é um meio estratégico de promover direitos e garantias enquanto não ocorrem mudanças significativas na legislação, uma vez que entes despersonificados possuem intrínsecos a sua constituição os caracteres da fugacidade e da transitoriedade não condizentes, obviamente, com a natureza dos animais. E ainda que mudanças ocorram de nada irão adiantar se não forem compatíveis com nossas concepções morais e, sobretudo, com as nossas atitudes, a nossa política, a nossa forma de viver, até com a nossa a nossa dieta.[27]

 O movimento de Libertação Animal vai exigir mais altruísmo por parte dos seres humanos do que qualquer outro movimento de libertação. Os animais são incapazes de exigir a sua própria libertação ou de protestar contra a sua condição através de votações, manifestações ou boicotes. Os seres humanos têm o poder de continuar a oprimir as outras espécies eternamente ou até tomarem este planeta impróprio para seres vivos. Continuará a nossa tirania, provando que a moral de nada vale quando entra em conflito com os interesses próprios, como sempre disseram os mais cínicos poetas e filósofos? Ou mostraremos estar à altura do desafio, provando a nossa capacidade de altruísmo genuíno ao pôr fim à exploração cruel das espécies que estão sob nosso domínio, não por sermos forçados a fazê-lo por rebeldes ou terroristas mas por reconhecermos que a nossa posição é moralmente indefensável? [28]

V. Pós-positivismo: conceito e validade do direito em prol do abolicionismo animal

Século XXI. Pós-positivismo. Pós- Guerra. Eis que a partir de então o novo paradigma se estrutura a partir da ruptura dos precedentes, pela descrença, pelo estigma do "pós" e, sobretudo, pelo advento da pós-modernidade. Nesse interím estabelecem-se as bases do pensamento hodierno, bem como do próprio direito. O liberalismo desfalecera no mito da autossuficiência,  os argumentos utilizados pelos  condenados no julgamento de Nuremberg foram baseados no cumprimento da lei, e a supremacia da racionalidade humana aliada a imobilidade diante dos próprios instintos acabam por consagrarem  o verdadeiro mal- estar na civilização.[29]

As profundas mudanças pelas quais a humanidade passou no último século foram cruciais para o estabelecimento da profunda desconstrução que se procede nos dias atuais. Sob as ruínas de um passado ainda presente, tentamos nos equilibrar na liquidez[30] de nossa realidade e de nossos dilemas. Nesse diapasão emergem novas formas de pensar, de agir, novos meios de concretizar o sentido do "humano" e as nossas novas bases éticas.

Polêmicas e desordem alicerçam os conceitos que (des)norteiam as concepções reinantes. No direito, busca-se incessantemente a institucionalização da razão, a fundamentação racional que o demonstra indissociável a moral. Alexy, ao formular seu conceito de direito faz questão de mencionar que conceitos diversos podem ser erigidos pelos autores, mas para que tenha validade devem ser determinados através de três elementos indispensáveis de definição: a decretação de acordo com a ordem, a eficácia social e correção quanto ao conteúdo[31]. A fórmula Kelseniana de cuja formatação se extrai a possibilidade de qualquer conteúdo ser direito já não mais se adequa a evolução vivenciada através dos processos históricos e suas lições- a legalidade em detrimento da pretensão de correção fora capaz de legitimar regimes totalitários e atrozes como o nazismo na Alemanha, milhões de pessoas mortas no regime stalinista, o regime fascista , além de uma série de outras ditaduras no alvorecer do século pós- belle epoque. [32]

Apesar da atualidade com que o pós-positivismo se posiciona em defesa do aspecto moral intrínseco a sua concepção jurídica,  as controvérsias que reiteram a coexistência de basicamente duas correntes definidoras de um conceito de direito - a positivista e  a não positivista- datam de mais de dois mil anos, Xenofonte relata em seus escritos o seguinte questionamento feito por Alcibíades a Péricles: "Então, quando um tirano apodera-se de um Estado e impõe aos cidadãos o que eles devem fazer, isso também é uma lei?" [33]

De forma sumária , desde a antiguidade, delineiam-se como verdades inconciliáveis uma estrutura conceitual jurisdicional que abarca a eficácia social e a decretação de acordo com a ordem e uma segunda corrente, não positivista, também denominada jusnaturalista, que vislumbra a valoração e a dimensão moral dos princípios como suficientes, prescindindo da instrumentalidade viabilizada pela positivação.

Imersos em um lamaçal de conceituações, o ponto de vista póspositivista emerge como um contraponto, um paradigma segundo o qual as "ditas verdades inconciliáveis" não só se conciliam quanto são postas como complementares. Chega-se a conclusão de que a ponderação é o melhor caminho para amalgamar tanta complexidade - a ponderação correta e coerente enseja a normatização dos princípios, isto é, a positividade dos direitos naturais para que tenham eficácia e  por fim, tenhamos uma naturalidade dos direitos positivados. Nesse sentido afirma Friedrich Müller:

Para avançar no objeto em questão, precisamos não do antipositivismo, mas de uma teoria póspositivista do direito do direito (esse termo está sendo empregado desde a 1 ª edição da Juristche Methodik, em 1971). Ela foi concebida desde meados dos anos 60 e publicada a partir de 1966 (no livro Normstrukturund Normativität). Ela concebe o trabalho jurídico como um processo a ser realizado no tempo, e os enunciados nas codificações como textos de normas ( no sentido da linguística como "formulários de textos", no sentido da filosofia da linguagem de Chares Sanders Peirce como expressões com " significância", mas ainda não com "significado"), i.é, como pré- formas legislatórias da norma jurídica, que por sua vez está por ser produzida no decurso temporal da decisão é co-constitutivo. O texto da norma no Código Legal é (apenas) um dado de entrada do processo de trabalho chamado "concretização". A norma jurídica está estruturada segundo " programa da norma" e âmbito da norma"; ela é, portanto, um conceito composto que torna o problema tradicionalmente irresolvido de "ser e dever ser" operacional e trabalhável. Com isso os dualismos irresolvido de "ser e dever ser" operacional e trabalhável. Com isso os dualismos irrealistas do passado do direito, tais como "norma/caso", "direito/realidade" podem ser aposentados assim como a ilusão da "aplicação" do direito como subsunção ou silogismo ou como a construção linguisticamente não realizável de um "limite teor literal" definível, coisificado na linguagem. Todos esses dualismos são representações centrais fracassadas do positivismo histórico.[34]

Friedrich Müller, portanto, em sua concepção estruturante não abdica da estrutura concebida pelo modelo positivista e apresenta uma hermenêutica estruturante capaz de abarcar dualidades tradicionalmente irresolvidas.  Ainda nesse sentido, o jurista Fernando de Azêvedo Alves Brito em uma minuciosa análise do posicionamento teórico do autor Eduardo Luis Tinant, bem como das hodiernas formas de compreensão do fenômeno do direito em sua completude, cita:

De certa forma, o Direito Natural, por si só, a menos que pudesse se considerar a sociedade humana perfeita, pura e cumpridora eterna do que é justo e correto, é incapaz de se (auto)materializar e de se tornar efetivo. Em reconhecimento a isso, carece ele, para a sua melhor proteção e cumprimento, de uma associação com a forma positivada, sem, entretanto, renunciar ao seu espírito.

Assim, a ciência do direito não mais se sujeita a uma busca da lógica presente nas ciências naturais, mas de buscar o sentido real e particular das normas jurídicas de modo a conciliá-las à realidade de concretização do direito a realidade social. Em outras palavras a busca se dá pela materialidade do que é erigido no âmbito jurídico, fazendo com que as disposições legais levem o selo de sua própria matéria.

Diante das explanações expostas acerca dos novos paradigmas que cerceiam o direito e dos que tornaram-se obsoletos pela sua incompletude, ficou demonstrado o valor que a realidade concreta assume no âmbito das colocações presentes, uma vez que a ética que deve se colocada em prática e não posta como um sistema utópico, irrealizável. Por conseguinte, o direito dos animais insere-se plenamente nesse contexto de completa revolução axiológica e que já encontra no ordenamento jurídico brasileiro respaldo legislativo. O artigo 225 da Constituição Federal, por exemplo, em seu §1º, inciso VII, ressalta a necessidade de proteção da fauna e da flora, sendo vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade, o direito ao meio ambiente, sob uma ótica antropocentrista e condizente com a Lei Maior, é taxativo quanto ao fato de ele ser um direito fundamental e, portanto, goza do status de princípio se formos seguir o posicionamento do  jurista alemão, Robert Alexy.

Outros artigos também são taxativos no que refere a proteção dos animais não-humanos, insuficiente é verdade, mas que não possuem concretude nem mesmo na medida de sua mediocridade. Isto posto, como arguir em meio a revolução do póspositivisto a fundamentabilidade da garantia de direitos aos demais animais sencientes? Esta é uma questão moral ou jurídica?

No tocante a primeira pergunta, é preciso que se esclareça brevemente o significado da fundamentabilidade aqui indagada: é o que impõe respeito, como afirma Walter Claudius Rothenburg, ao seu conteúdo básico e mínimo, aquém do qual não se tolera contenções, além de ser composta essencialmente pelo conteúdo do direito (critério material) e pela posição normativa (critério formal)[35]. Nessa linha de intelecção, se há em torno da tutela de direitos e garantias dos animais uma discussão intelectual tão incisiva acerca da tutela do direito da liberdade animal baseando-se no direito a uma igual consideração - liberdade e igualdade, essenciais a garantia de um mínimo existencial-, e que aglomera cada vez mais filósofos, juristas e movimentos sociais, sobretudo a partir da década de 70, é porque há conteúdo, fundamentação, um lastro contundente na filosofia utilitarista, e faz referência a uma série de valores supremos que por ora passaram a permear a consciência humana. Portanto, o critério da materialidade é suprido, já o critério formal, muito embora ainda requeira profundas reformulações, também é contemplado através de leis e tratados internacionais que pleiteiam um processo mais contundente de dignificação dos animais não humanos.

A segunda pergunta já foi respondida anteriormente através da argumentação inerente ao póspositivismo, segundo a qual não se tem como dissociar a questão moral da jurídica, estão entrelaçadas, formam um inteiro que só permite fracionamento em ordem teórica por razões de didatismo, mas que na realidade fática e na realidade das possibilidade jurídicas acabam por constituir uma existência única. Sendo assim, as circunstâncias que amalgamam o direito animal em sua extensão requer uma moralidade mais altruísta do que nunca,  uma ética que ultrapasse os limites impostos pelo senso comum, concebendo-a como um sistema meramente teórico, fazendo-se valer como instrumento de mudança, de universalização contra os atos especistas, com reflexos jurisdicionais suficientes para se fazer integrante da insigne configuração do chamado Estado Democrático de Direito.

V. Considerações Finais

Liberdade, igualdade, acesso à justiça, indubitavelmente alguns dos mais básicos direitos humanos, imanentes à um sistema moderno e igualitário que tenha o intuito de ir além da mera proclamação de direitos e os garanta de acordo às possibilidades fáticas e jurídicas. Relatados os núcleos dos direitos fundamentais humanos, no decorrer da dissertação apresentada pretendeu-se apresentá-los também como núcleo dos direitos dos animais, já que as nossas diferenças para com os seres sencientes é apenas de grau e não de essência e o mesmo se estende ao núcleo dos direitos pleiteados. O texto até aqui exposto foi uma tentativa de abarcar em uma medida tão alta quanto possível os seres sencientes em nossa realidade de consideração, através de uma ponderação de interesses, quando conflituantes com os nossos, com base em uma concepção ética que adota a sensibilidade como critério necessário a uma igual consideração, e não a similitude de cor, raça, sexo ou espécie.

Sendo assim, racismo, sexismo e uma série de ortodoxias que permeiam discursos segregacionistas foram colocados como semelhantes ao discurso que subjuga os animais a uma condição desfavorável, de humilhação, desigualdade e cuja dignidade é relegada ao plano do nada. A vida basta-se a si mesma, por que negá-la a quem possui? Se negamos renegamos o seu sentido, e se isso não for suficiente, como garantir a eficácia do princípio da proteção intergeracional cuja conceituação embasa-se em um enunciado constitucionalmente instituído que determina o direito das futuras gerações aos bens ambientais existentes?

Abdicando do antropocentrismo reinante ou não, é possível encontrar fundamentações corretas e coerentes para a defesa do abolicionismo animal, mas neste artigo ficou explicitado o intuito de que a nossa civilização humana permita a expansão do conceito de civilização para além das conveniências e cerimoniais e a estabeleça no âmbito da ética, das abrangentes concepções morais hodiernas que entendem a humanização dos nossos atos para com seres de outras espécies como um passo importante para os seres sencientes, para o homem e para  planeta em sua totalidade. É uma forma de fazer com que a escravidão,abolida no Brasil em 1888, deixe de existir em sua plenitude pelos meandros constitucionais, até então somente capazes de resguardar os interesses humanos, através da legitimação dos demais seres sencientes como sujeitos de direitos e, por conseguinte, como pessoas na órbita jurídica.

A promoção do Abolicionismo Animal é um meio de abolir o próprio homem das obscuridades que o impedem de evoluir moralmente. Richard Ryder criara o termo especismo na década de 70, Darwin elaborara a teoria da evolução no século XIX, até quando estas realidades conflituantes-especismo e evolução- irão permear o cerne humano? Na ausência de respostas plausíveis, um breve passeio pela história nos permitiu encontrar as raízes de nossos intentos especistas, bem como as origens do pensamento que tenta expurgá-lo, e em consonância com o posicionamento de Heron de Santana Gordilho, proeminente autor no vanguardismo baiano no direito animal, em sua abordagem pós-moderna do direito ambiental, valores foram afirmados no decorrer da presente elaboração com o fulcro da dispersão, pois mais do que analisar questões de fato e de direito, é preciso sugerir, provocar e negociar soluções entre os interessados, através de sujeitos jurídicos e não de papéis sociais.[36]

VI. Bibliografia

Alexy, Robert. Constitucionalismo Discursivo; org.trad. Luís Afonso Heck.-3.ed.rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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Alexy, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais; org, trad. Virgílio Afonso da Silva.- 2ª edição. São Paulo. Editora: Malheiros Editores LTDA, 2011.

De Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito Civil. 10ª Edição, rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPODIVM, 2012.

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Kumpel, Vitor Frederico. História da Cultura jurídica: o direito em Roma- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO,2009.

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Santana, Heron José. Direito Ambiental pós-moderno, 1. ed, Juruá Editora, 2009

Santana, Heron José; De Almeida, Tagore Trajano. Animais em juízo: direito, personalidade jurídica e capacidade processual

Singer, Peter. Ética Prática; Tradução Jeferson Luis Camargo- 3ed.- São Paulo: Martins Fontes, 2002- (Coleção Biblioteca Universal).

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Rothenburg, Walter Claudius. Direitos Fundamentais e suas características. Artigo publicado pela Revista dos Tribunais- Cadernos de Direito Tributário e finanças públicas- nº29- outubro, dezembro de 2009.

Tinant, Eduardo Luis. Bioética Jurídica, dignidade de la persona y derechos humanos. 2ª ed.- Buenos Aires: Dunken, 2010.

wwww.abolicionismoanimal.org.br

Sobre os autores
Fernando de Azevedo Alves Brito

Advogado, Escritor, Professor EBTT, área de Direito, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), Campus Vitória da Conquista. Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP). Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Graduado em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT). Professor responsável pela linha de Educação Ambiental no Grupo de Pesquisa Saberes Transdisciplinares (IFBA). Membro da Associação de Professores de Direito Ambiental do Brasil (APRODAB). Autor dos livros "Ação Popular Ambiental: uma abordagem crítica" (1ª e 2ª edições, Nelpa, 2007 e 2010) e "O que é Meio Ambiente? Divagações sobre o seu conceito e a sua classificação" (1ª edição, Honoris Causa, 2010). Autor de diversos artigos nas áreas do Direito Ambiental, da Cidadania e do Meio Ambiente.

Bianca Silva Oliveira

Graduanda de Direito na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Integrante do Grupo de Pesquisa, Saberes da Experiência Pedagógica de Profissionais dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na Educação de Pessoas Jovens, Adultas e Idosas: Construção e Vivência. Bolsista FAPESB. Estagiária da Justiça Federal de Primeiro Grau na Bahia- Subseção Judiciária de Vitória da Conquista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Fernando Azevedo Alves; OLIVEIRA, Bianca Silva. Personalidade e persuasão: ética prática, história e constitucionalismo em um discurso sobre a personificação jurídica dos animais não humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4019, 3 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28537. Acesso em: 22 nov. 2024.

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