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O exame criminológico como uma barreira aos direitos na execução penal

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Agenda 23/05/2014 às 12:41

CAPÍTULO 2 – DA EXIGÊNCIA DO EXAME CRIMINOLÓGICO PARA A CONCESSÃO DOS DIREITOS NA EXECUÇÃO PENAL À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

O Direito Penal, assim como os demais ramos do direito, para aqueles que acreditam que o ordenamento jurídico ainda comporta tal classificação32, deve ser analisado, interpretado e aplicado de acordo com os princípios e regras constitucionais, pois é no texto da Constituição Federal que encontramos o modelo de Estado Democrático de Direito a ser alcançado por todo o sistema jurídico.

Essa nova dinâmica de interpretação é denominada de “constitucionalização do direito”. Sobre o tema, cumpre transcrever a lição de Aury Lopes Jr.33:

Nossa opção é pela leitura constitucional e, dessa perspectiva, visualizamos o processo penal como instrumento de efetivação das garantias constitucionais.

(...) Atualmente, existe uma inegável crise da teoria das fontes, em que uma lei ordinária acaba valendo mais do que a própria Constituição, não sendo raros aqueles que negam a Constituição como fonte, recusando sua eficácia imediata e executividade. Essa recusa é que deve ser combatida.

Atualmente, estamos diante de um movimento constitucional denominado de “neoconstitucionalismo”, segundo o qual as normas constitucionais devem ter um caráter mais efetivo, principalmente no que tange à concretização dos direitos fundamentais, para tanto, amplia-se a hermenêutica constitucional, a fim de atribuir maior carga valorativa aos princípios constitucionais.

Sobre o tema, cumpre transcrever os ensinamentos de Sebástian Borges de Albuquerque Mello34:

O constitucionalismo vai representar o alicerce do direito penal, pois os princípios penais fundamentais estão postos na categoria de direitos fundamentais apriorísticos, positivados nas constituições como irrenunciáveis e inalienáveis, refratários a qualquer mudança por parte do poder punitivo.

Nessa linha, o juiz passa a ser o protagonista da relação jurídico-processual, uma vez que ele tem como compromisso garantir a aplicação dos direitos fundamentais criados pelo Poder Constituinte. Nesse sentido, temos os ensinamentos de Marcelo Novelino35 e Pedro Lenza36, para este último doutrinador:

Busca-se, dentro dessa nova realidade, não mais apenas atrelar o constitucionalismo à idéia de limitação do poder político, mas acima de tudo, buscar a eficácia da Constituição, deixando o texto de ter um caráter meramente retórico e passando a ser mais efetivo, especialmente diante da expectativa de concretização dos direitos fundamentais.

Portanto, no presente capítulo, com vista em atender a essa nova hermenêutica constitucional, analisaremos se a exigência do exame criminológico para a concessão de direitos em sede do processo de execução penal é compatível com as normas constitucionais, principalmente no que tange aos princípios relacionados ao Direito Penal.

Insta mencionar que tais diretrizes não serão analisadas de forma aprofundada, já que o presente trabalho não visa o esgotamento do tema, mas tão somente a sua relação com uma análise crítica do exame criminológico.

É importante ressaltar a terminologia utilizada na presente pesquisa: “direitos” concedidos em sede do processo de execução penal ao invés de “benefícios”. Isto ocorre porque, presentes os requisitos legais para a concessão de determinado instituto (como a progressão de regime prisional de cumprimento de pena, o livramento condicional etc.), não há discricionariedade do julgador em aplicá-lo, já que a concessão constitui verdadeiro direito subjetivo do condenado.

Assim, a utilização do termo “benefício” deve ser evitada, já que traz a idéia de que a concessão se aproxime da “caridade”, ou mesmo que esteja no âmbito da discricionariedade e subjetividade do magistrado, o que autorizaria decisões arbitrárias e injustas. No mesmo sentido é a lição de Luís Carlos Valois37:

O julgador acredita ser a progressão de regime um benefício concedido pelo Estado. Benefício passa a noção de que o preso está sendo agraciado, ganhando um presente, portanto, não pode reclamar se está sendo beneficiado tardiamente e até se não for beneficiado. Não há Estado de Direito na esfera de concessão de benefícios, mas somente um Estado paternal, autoritário, que age exclusivamente calcado na sua soberania.

A seguir passaremos a análise dos princípios constitucionais que se relacionam com o tema proposto.

2.1.– Da violação ao princípio da legalidade

É sabido que o princípio da legalidade é de suma importância ao Direito Penal, já que delimita o direito de punir do Estado, garantindo o direito fundamental à liberdade, sendo considerado essencial ao Estado Democrático de Direito, já que submete não só os indivíduos, mas o próprio Estado ao imperativo legal.

Essa diretriz possui previsão, de forma geral, no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, que dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Portanto, por meio de tal dispositivo é possível afirmar que o executado não está obrigado a realizar o exame criminológico como condição para a obtenção de direitos na fase da execução penal, já que esse instituto não possui previsão legal, sob pena de inconstitucionalidade.

Se não bastasse, a Constituição Federal disciplinou de forma específica o princípio da legalidade no âmbito do Direito Penal, diante da efetiva incidência desse ramo do direito na liberdade individual. Nesse sentido é o seu artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

É importante realizar uma interpretação abrangente do referido dispositivo a fim de alcançar um resultado que não se resuma em mera interpretação literal, com a simples constatação de que, para que uma determinada conduta seja tipificada como crime é necessário a existência de lei anterior.

Assim, esse dispositivo exige que toda a atuação do Direto Penal seja concretizada por meio da lei, logo, o princípio da legalidade se destina não somente à atividade legislativa de tipificar condutas como sendo criminosas, mas também deve respaldar a atuação do Estado quando da aplicação da penalidade, bem como quando da execução da sanção aplicada. Nesse sentido é a lição de Igor Luis Pereira E Silva38:

Além de proteger o indivíduo de sofrer a incidência do poder penal do estado sem previsão legal, o princípio da legalidade também o protege da mudança de interpretação judicial da lei penal e da própria execução da pena. (...) Conforme lição de Nilo Batista: “A abrangência do princípio inclui a pena cominada pelo legislador, a pena aplicada pelo juiz e a pena executada pela administração” (BATISTA, Nilo, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, p. 68, grifos do autor).

Por conseguinte, tal dispositivo constitucional acerca do princípio da legalidade também fundamenta a inconstitucionalidade da exigência do exame criminológico para a concessão de direitos na execução penal, diante da ausência de previsão legal.

Esse também é o entendimento da doutrina de Renato Marcão39:

Por outro vértice, com as mudanças introduzidas pela Lei n. 10.792/2003 já não há o que falar em exame criminológico obrigatório ou facultativo para efeito de progressão de regime, visto que a lei não mais o reclama para a aferição do requisito subjetivo (mérito do executado).

Nesse mesmo sentido, cumpre transcrever o posicionamento de Alexis Couto de Brito40:

Como já tivemos a oportunidade de nos manifestar em outra ocasião, a exigência do exame criminológico sem previsão legal é absolutamente abusiva e inútil. (...) Exigir que alguém se submeta a um capricho na falta de previsão legal é violar o princípio da legalidade constitucional de que ninguém deve fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Trata-se de frontal desrespeito ao direito subjetivo, reconhecido com tal o atendimento completo dos requisitos legais.

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Sobre o tema, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos expediu em 13 de março de 2008 um documento intitulado “Princípios e boas práticas para a proteção das pessoas privadas de liberdade nas Américas”, que prevê:

Princípio de legalidade:

Nenhuma pessoa poderá ser privada da liberdade física, salvo pelas causas e nas condições dispostas anteriormente pelo direito interno, uma vez que sejam compatíveis com as normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos. As ordens de privação de liberdade deverão ser emitidas por autoridade competente por meio de resolução devidamente fundamentada.

As ordens e resoluções judiciais ou administrativas suscetíveis de afetar, limitar ou restringir direitos e garantias das pessoas privadas de liberdade deverão ser compatíveis com o direito interno e internacional. As autoridades administrativas não poderão alterar as garantias e direitos dispostos no Direito Internacional nem limitá-los ou restringi-los além do que nele seja permitido. (grifo nosso)

É importante consignar que a exigência do exame criminológico não encontra fundamento na relativização do princípio da legalidade, com a utilização da “técnica da ponderação”, já que o seu conteúdo é dotado de discricionariedade e subjetividade e, em última análise, afronta o superprincípio da dignidade da pessoa humana. Essa também é a lição de Luís Carlos Valois41:

O princípio da legalidade não pode ser relativizado em nome de argumentos que longe de serem científicos parecem mais encobrir sentimentos vingativos.

Quando isso acontece o réu não é mais parte de um procedimento legal, com direitos e deveres estritamente previstos, mas é um objeto ao qual não se atribui qualquer consideração. E visto desse ângulo, não só o princípio da legalidade é violado, atinge-se igualmente a própria dignidade humana (SARLET, 2002), base e fundamento do Estado Democrático de Direito.

(...) o uso do termo ressocialização, incompreensível, impossível, quase ridículo quando se imagina as celas imundas em que são colocados os que deveriam ser cidadãos sujeitos de direito, acaba se tornando um grande obstáculo para a clareza inerente e fundamental aos princípios da legalidade e da dignidade humana.

A seguir, analisaremos o princípio da segurança jurídica, já que tal diretriz se relaciona com o princípio em análise.

2.2.– Da violação ao princípio da segurança jurídica

Como cediço, o princípio da segurança jurídica está previsto como um direito fundamental no caput do artigo 5º da Constituição Federal42. Esse mandamento constitucional também está relacionado com a noção de Estado Democrático de Direito, pois assegura um mínimo de previsibilidade aos indivíduos sobre as suas manifestações, bem como tutela a confiança que estes devem depositar em seu Estado.

Por conseguinte, temos que essa diretriz visa a estabilização das relações jurídicas, com o intuito de evitar que a coletividade se submeta às variações da vontade estatal quando determinada solução se mostre mais conveniente com os seus interesses. Sobre o tema, cumpre transcrever interessante lição da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal43:

Segurança jurídica é o direito da pessoa à estabilidade em suas relações jurídicas. Este direito articula-se com a garantia da tranqüilidade jurídica que as pessoas querem ter, com a sua certeza de que as relações jurídicas não podem ser alteradas numa imprevisibilidade que as deixe instáveis e inseguras quanto ao seu futuro, quanto ao seu presente e até mesmo quanto ao passado.

(...) O princípio da segurança jurídica manifesta-se em variadas confirmações institucionais, comparecendo quer no princípio da não retroatividade das leis e atos normativos, quer na regra que obriga o juiz a atentar ao direito intertemporal (...)

Desta forma, a exigência do exame criminológico como requisito para a concessão dos direitos em sede da execução penal é inconstitucional, por violar o postulado da segurança jurídica, já que constitui em uma análise arbitrária sobre a probabilidade do condenado voltar a delinqüir.

Ademais, temos que essa análise está sujeita à discricionariedade do magistrado que, em alguns casos, poderia exigir o exame criminológico e, em outros casos, não. Assim, a liberdade do executado ficaria à mercê da vontade estatal que agiria da forma mais conveniente aos seus próprios interesses, o que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, pois acarreta sofrimento e angústia diante da incerteza quanto ao futuro da execução e da própria liberdade, bem como desconfiança e perda da credibilidade das decisões judiciais. Esse também é o posicionamento de Luís Carlos Valois44:

O que veremos a seguir é o ideal de ressocialização surgindo como ingrediente nessa equação, enfraquecendo o princípio da legalidade porque, ao invés de trazer certeza, aumenta o grau de arbítrio na aplicação da pena.

(...) Os presos, perplexos, sofrem com a dúvida que semeia no meio penitenciário, sentem medo da investigação de seus comportamentos que poderá distanciá-los da liberdade, “muitos expressam que é mais difícil encarar os procedimentos de avaliação, do que as más condições e os maus tratos da prisão. Como decorrência, surge a certeza de estarem submetidos a um processo carregado de obscuridades” (WOLFE, 2005, p. 164).

 

Por fim, temos que essa situação de incerteza e discricionariedade do magistrado acaba por propiciar situações de desigualdade e injustiça, tema que será abordado no próximo tópico.

2.3.– Da violação ao princípio da igualdade

O princípio da igualdade está previsto no caput do artigo 5º da Constituição Federal e consiste na imposição de tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade, considerando as exigências da justiça social.

Essa diretriz também deve ser aplicada ao Direito Penal. Nesse sentido, temos a lição de Cleber Masson45:

No Direito Penal, importa em dizer que as pessoas em igual situação devem receber idêntico tratamento jurídico, e aquelas que se encontram em posições diferentes merecem um enquadramento diverso, tanto por parte do legislador como também pelo juiz.

Por conseguinte, permitir a discricionariedade do julgador em exigir o exame criminológico para a concessão de direitos no decorrer da execução penal viola tal postulado, sendo inconstitucional, uma vez que estabelece um tratamento desigual e prejudicial em relação a condenados que estão na mesma situação jurídica.

Para melhor visualização da constatação acima, imagine a situação de dois indivíduos que estão cumprindo pena privativa de liberdade, sendo que ambos já implementaram o requisito objetivo (lapso temporal) e subjetivo (bom comportamento carcerário comprovado e atestado pelo diretor do estabelecimento) para a progressão de regime prisional. Ocorre que, em relação a um deles o magistrado exige a realização do exame criminológico que, por meio de uma entrevista simplista, constata que ele possui “probabilidade de voltar a praticar novos delitos” ou mesmo “personalidade voltada para o crime”, ocorrendo a recusa da progressão de regime prisional com relação a este e a concessão em relação ao outro, que não precisou se submeter a tal avaliação.

Veja que há um tratamento desigual despendido pelo magistrado sem que esteja presente uma relação de desigualdade, logo, a exigência do exame criminológico para determinados casos constitui prática discriminatória que viola o postulado em análise.

Por derradeiro, conforme já explanado na presente pesquisa, o exame criminológico vem sendo utilizado como instrumento de seletividade do Direito Penal e precursor da desigualdade social, já que somente é exigido em relação aos crimes praticados pela população vulnerável (furto, roubo, tráfico etc.), e não pela população “elitizada” (peculato, crimes contra o sistema financeiro etc.), o que corrobora com a tese de sua inconstitucionalidade, pois há flagrante violação ao tratamento isonômico que deve ser despendido pelo julgador.

Sobre o tema, esse também é o posicionamento de Igor Luis Pereira e Silva46 ao explicar a lição de José Afonso da Silva:

O constitucionalista José Afonso da Silva chama a atenção para a seletividade do Direito Penal, como um indicador de um sistema desigual. Segundo o autor, “os menos afortunados ficam muito mais sujeitos aos rigores da justiça penal do que os mais aquinhoados de bens materiais”. Os delitos e as penas devem ser aplicados a todos que pratiquem o fato típico. Se o Direito Penal for direcionado apenas a parte mais pobre do povo brasileiro, então o princípio da igualdade restará violado.

Portanto, o exame criminológico como requisito para a concessão dos direitos em sede de execução penal é inconstitucional por violar o princípio da igualdade, diante de seu caráter arbitrário e seletivo.

2.4.Da violação ao princípio da motivação

O princípio da motivação das decisões judiciais está previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal47 e constitui importante instituto para assegurar a racionalidade das decisões judiciais, permitindo o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Sobre o tema, cumpre transcrever aos ensinamentos de Aury Lopes Jr.48:

(...) Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder, principalmente se foram observadas as regras do devido processo legal. Trata-se de uma garantia fundamental e cuja a eficácia e observância legitimam o poder contido no ato decisório.

Em complemento, o Código de Processo Penal49 dispõe, de maneira específica, que as decisões deverão observar, como regra, o sistema do livre convencimento motivado (ou sistema da livre persuasão racional), já que o magistrado é livre para emitir uma decisão, porém, deve fundamentá-la nas provas constantes nos autos e, sobretudo, nas normas do ordenamento jurídico. Essa também é a posição do Juiz de Direito do Estado de Minas Gerais, Vitor Luís de Almeida50, vejamos:

Cabe à fundamentação formular em seu conteúdo qual a regra jurídica abstrata e geral a ser aplicada ao caso concreto. Nela deverá estar formulado o motivo da escolha e a chave da racionalidade da decisão, evitando-se o arbítrio. Saliente-se que uma decisão é tida como arbitrária quando não for suscetível de justificação.

(...) A transparência demonstrada através da motivação permite a verificação da legitimidade da decisão do magistrado, demonstrando que ele agiu corretamente, em consonância com o ordenamento jurídico e com os fins por ele propostos, o que a transforma em um elemento essencial que irá distinguir o legítimo exercício do poder no qual o Judiciário é investido, emanado do povo e exercido em seu nome, da arbitrariedade, fazendo com que o magistrado contribua para a concretização do ideal de Justiça.

Assim, em relação ao conteúdo das decisões judiciais, a legislação estabelece uma “liberdade regrada” ao julgador, a fim de impedir a prática de arbitrariedades e abuso de poder.

Portanto, como a exigência do exame criminológico não encontra amparo legal, tal decisão judicial é nula, por ser inconstitucional e ilegal diante da violação do princípio em análise. Não é crível admitirmos fundamentações meramente formais, baseadas na “gravidade em abstrato do delito’, na “pena longa a cumprir” ou mesmo na “periculosidade do condenado”, conforme será demonstrado no próximo capítulo.

2.5.Da violação ao princípio da presunção de inocência

Como cediço, o princípio da presunção de inocência está previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal e estabelece que todos os indivíduos são presumidamente inocentes independentemente do fato que lhe é imputado, até que haja a sentença penal condenatória transitada em julgado.

Tal diretriz se relaciona com a regra do ônus da prova no processo penal, de que compete à acusação comprovar a culpabilidade do fato, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não for suficientemente demonstrada.

Porém o princípio da presunção de inocência deve ser “maximizado”, conforme ensina a doutrina de Aury Lopes Jr.51, já que confere verdadeira regra de tratamento ao imputado, colocando limites às prisões cautelares, à publicidade midiática (que cada vez mais visa a estagmatização abusiva e precoce do réu), bem como ao arbítrio do magistrado em sede da execução penal.

É necessário esclarecer que, a sentença condenatória transitada em julgado somente afasta a presunção de inocência em relação ao fato específico que fora verificado mediante as regras do devido processo legal, persistindo a sua incidência em relação a todos os outros fatos “supostamente” praticados pelo executado.

Essa também é a constatação de Luís Carlos Valois52:

Como dito antes, a sentença criminal passou a ser o divisor de águas. Ora a única diferença entre um cidadão que cometeu um delito e outro que não cometeu é o próprio delito praticado, e do qual já resultou uma sanção legalmente prevista em lei, portanto, no mais, o cidadão condenado é também presumidamente inocente. O futuro deste cidadão condenado não pode igualmente ser investigado, porque somente o seu passado não é mais presumidamente inocente.

Portanto, esse postulado impede, em sede de execução penal, a adoção pelo magistrado de qualquer medida que afete a liberdade ou restrinja direitos do executado quando não tenham relação com o fato disposto na sentença condenatória transitada em julgado.

Assim, a exigência do exame criminológico para a concessão de direitos em sede de execução penal é inconstitucional, por violar o postulado da presunção de inocência, pois, conforme já explanado na presente pesquisa, tal exame recai sobre a probabilidade do indivíduo voltar a praticar novos crimes, ou seja, permite a restrição da liberdade do condenado (já que ele será mantido em um regime de cumprimento de pena mais gravoso) por um fato que sequer ocorreu, logo, que não permite a incidência do devido processo legal e da sentença penal condenatória transitada em julgado, aptos a afastar essa diretriz.

2.6.Da violação ao princípio da culpabilidade

O princípio da culpabilidade encontra amparo na Constituição Federal, pois decorre do princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1º), já que visa afastar a responsabilidade objetiva em sede do Direito Penal, exigindo que o indivíduo seja criminalmente responsabilizado somente quando pratique uma conduta típica, ilícita e reprovável (culpável).

Sobre o tema, cumpre transcrever os ensinamentos de Sebástian Borges de Albuquerque Mello53:

A missão da culpabilidade não é evitar a prática de novos delitos, mas definir, à luz dos princípios constitucionais que regem um Estado Democrático de Direito, os critérios pelos quais se atribui a alguém a condição de sujeito responsável pela prática de uma infração penal. Cabe à culpabilidade definir os pressupostos formais e materiais da imputação do crime a um indivíduo determinado.

Como conseqüência, tal diretriz estabelece a “responsabilidade penal do fato”, isto significa que o agente deve ser punido pela conduta efetivamente praticada, não havendo a possibilidade da adoção da teoria do “direito penal do autor” que, por sua vez, pune o agente pelo que ele é, ou seja, características físicas, condição social, estilo de vida etc.

Por conseguinte, o princípio da culpabilidade constitui importante limite à aplicação da pena, conforme determina o artigo 59 do Código Penal54, uma vez que a sanção não poderá exceder à reprovabilidade da conduta criminosa praticada.

Assim, a exigência do exame criminológico para a concessão de direitos em sede da execução penal também viola tal diretriz, pois o agente receberá uma maior punição (como a não progressão de regime prisional, por exemplo) em decorrência do que ele é: um indivíduo que se encontra cumprindo pena privativa de liberdade, “supostamente” perigoso, geralmente sem recursos financeiros; e não pelo que ele fez, já que não foi praticado nenhum fato que justificasse tal reprimenda.

Essa também é a lição de Alexis Couto de Brito55:

Ainda que criminoso contumaz, o condenado imputável receberá a pena conforme o fato praticado, que se pressupõe suficiente para a prevenção da reincidência. A cada fato cometido, receberá sua pena. Os rigores da execução também estarão ligados à culpabilidade, com a determinação do regime inicial, redução de benefícios etc., mas pautados na sentença concreta e penal aplicada, e não pela personalidade do criminoso.

Ao final o autor conclui56:

A pena concretizada na sentença deve ser suficiente para a repressão da conduta e sua assimilação aos recursos disponibilizados pela execução da pena deve orientar sua progressão e concessão de benefícios. Nesse sentido, deve-se evitar a utilização de critérios de aferição da periculosidade, como “não voltará a delinqüir”, quando se trata do agente imputável. Embora a não reincidência seja um efeito esperado da execução penal, deve ser atingida através da concretização das finalidades premiais contidas nos institutos previstos na Lei de Execução Penal, e não ser convertida em fundamento a priori para a aplicação destes institutos.

Portanto, o exame criminológico deve ser abolido por violar o postulado do princípio da culpabilidade, da dignidade da pessoa humana e, em última análise, o Estado Democrático de Direito.

2.7.Da violação aos princípios da lesividade e da alteridade

Os princípios da lesividade e da alteridade serão abordados em conjunto, já que ambos visam uma atuação do Estado por meio do Direito Penal dissociada da moral.

De acordo com o princípio da lesividade, somente poderão ser criminalizadas as condutas que efetivamente lesionarem ou causarem perigo concreto de lesão a bem jurídico constitucionalmente protegido.

Em complemento, o princípio da alteridade impede a criminalização de atitudes internas, que, por sua vez, são incapazes de lesionar bens jurídicos. Assim, não pode haver punição quando a conduta causar um mal exclusivamente ao seu autor.

Portanto, temos que o Direito Penal é limitado à tutela de bens jurídicos relevantes, devendo incidir ultima ratio para reprimir comportamentos tipificados como infração penal que lesionem direitos de outrem.

É importante registrar que esses postulados também asseguram a responsabilidade penal do fato, pois proíbem a incriminação de simples estados ou condições existenciais.

Quanto à previsão constitucional, a doutrina de Igor Luis57 esclarece que os princípios da lesividade e da alteridade estão previstos no artigo 98, inciso I, da Constituição Federal58, tendo em vista que esse dispositivo estabelece, a contrario sensu que as infrações penais mais brandas precisam ter um “mínimo de potencial ofensivo” para importarem ao Estado Democrático de Direito.

Diante do exposto, temos que a exigência do exame criminológico para concessão de direitos em sede da execução penal é inconstitucional, já que o Estado, por meio desse instituto, busca alterar a vontade íntima do agente em praticar novas infrações, porém, conforme já mencionado, essa constatação e alteração é impossível, já que pertence ao futuro.

Ademais, tal alteração na personalidade do agente com vista a impedir a reincidência não interessa ao “Direito Penal dos Fatos”, o qual é compatível com o modelo garantista estabelecido pela Constituição Federal, já que ainda não foi praticado nenhuma conduta pelo agente, logo, meros pensamentos ou propensões ao delito devem ser desprezados pelo magistrado, já que pertencem ao campo da moralidade e da sua intimidade. Nesse sentido é a lição de Rafael Barcelos Tristão59:

Mesmo que fosse possível mapear a personalidade do indivíduo, não pode o Direito atuar no sentido de modificar moralmente a pessoa e muito menos tratá-la de forma mais rígida se não estiver subjetivamente inserida nos “parâmetros éticos da sociedade”. Essa atuação viola o direito constitucional à intimidade (o Estado não pode interferir neste âmbito da personalidade do indivíduo) e o princípio da alteridade (o direito penal só pune o que se torna externo ao agente). Todos têm o direito de serem maus interiormente;

Sobre o tema, Zaffaroni e Pierangelli60 também adotam esse posicionamento:

(...) seja qual for a perspectiva a partir da qual se queira fundamentar o direito penal de autor (culpabilidade de autor ou periculosidade), o certo é que um direito que reconheça, mas que também respeite a autonomia moral da pessoa, jamais pode penalizar o “ser” de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o direito é uma ordem reguladora de conduta humana. Não se pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que nisso violente a sua esfera de autodeterminação.

Portanto, o exame criminológico é incompatível com tais diretrizes, já que constitui barreira à implementação dos direitos previstos na Lei de Execução Penal, pois busca perpetuar a sanção imposta pelo Estado sem que haja qualquer conduta que viole efetivamente bem jurídico constitucionalmente protegido.

Sobre a autora
Aline Munhoz Seixas

Advogada. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário de Rio Preto - UNIRP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEIXAS, Aline Munhoz. O exame criminológico como uma barreira aos direitos na execução penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3978, 23 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28747. Acesso em: 22 dez. 2024.

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