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Um monstro esconde-se em casa.

A violência doméstica contra crianças e adolescentes

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A violência doméstica cometida contra a criança e o adolescente possui importantes conseqüências na formação e estruturação de sua personalidade. A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, garantem o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social da infâcia e adolecência de nosso país, sem discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Resumo: Este artigo  tem  por  objetivo  levar o leitor a uma reflexão sobre a violência doméstica cometida contra a criança  e o adolescente e  suas conseqüências  na formação e estruturação da personalidade. Busca-se fazer, ainda, uma análise dos avanços propiciados pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente,  Lei nº 8.069/90, no sentido de garantir o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social  da infâcia e adolecência  de nosso país, sem discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Palavras-chave: criança; adolescente; violência doméstica.


1 -  PRIMEIRAS PALAVRAS                                     

Nos últimos anos, a psicologia juntamente com o direito e outras ciências humanas, vêm se preocupando e refletindo sobre o papel da família na criação e educação de seus filhos e a influência que terá no futuro dos mesmos, analisa o acance das vivências experimentadas dentro do ambiente familiar no decorrer da infância e adolescência.

O recente caso da menina Isabella Nardoni que foi espancada, asfixiada e jogada do sexto andar do edifício London, na Vila Isolina Mazzei, zona norte de São Paulo, no dia 29 de março de 2008, traz à lume a questão da violência provocada por familiares, no interior dos lares. Desde a ocorrência deste  crime, o pai (Alexandre Nardoni) e a madrasta (Ana Carolina Jatobá) figuram como os únicos suspeitos, segundo a polícia. O casal já foi indiciado por homicídio doloso triplamente qualificado

A amplitude e a complexidade do fenômeno da violência doméstica contra a criança e o adolescente demanda uma  análise e também um trabalho bastante complexo que, segundo a nossa perspectiva, foge  aos simples limites deste  artigo. Porém, o que se pretende neste momento, é propiciar uma  reflexão sobre o tema, procurando inserir o debate jurídico e psicossocial  sobre a violência intrafamiliar num panorama mais amplo, com especial enfoque à evolução dos direitos fundamentais dentre os quais encontram-se  os direitos da criança e do adolescente, a fim de  demonstrar as dificuldades da família, da sociedade e do próprio Estado  em lidar com a face fria da violência, em suas mais variadas formas. Tal análise  não pode prescindir de conceitos elaborados através da  Psicologia Social  que  percebe o sujeito como resultado de um processo de  internalização do mundo social, com suas normas, valores e crenças que são assimilados num primeiro momento, no grupo familiar o que lhe possibilitará, num segundo momento, participar de outros grupos sociais e interagir com os mesmos.                            

Dessa forma, objetiva-se através deste  ensaio, refletir sobre a violência cometida contra a criança e o adolescente  dentro do ambiente doméstico, demonstrando que a família não é ontologicamente  inquestionável, nem intocável e que pode, infelizmente, em alguns ou muitos momentos apresentar grandes riscos à integridade física, moral e psicológica de uma  criança ou adolescente, causando-lhes possíveis seqüelas na formação e no desenvolvimento de sua personalidade.

As marcas da violência fermentam dentro do indivíduo agredido, obrigado a conviver com suas chagas. Provoca uma distorção da experiência de vida e, freqüentemente, o desencadeamento de  vários sintomas  que acabam prejudicando seu ser e estar no mundo de forma natural.


2. A VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NO BRASIL: uma breve digressão histórica

A história brasileira da criança e do adolescente vítimas da violência registrada, gera uma discussão que não tem caráter recente, mas remonta aos séculos XVII e XVIII, Brasil Colônia e Brasil Império, reconhecendo a marginalização e a resistência a que são submetidas  aquelas, considerando a violência como uma forma desestruturadora das relações sociais.

Chaves citado por Guerra noticia que os “diferentes  relatos dos padres em diferentes capitanias comprovam que os índios não se utilizavam de castigos físicos para o disciplinamento dos filhos” .[3]  Segundo relatos do Padre Luís da Grã, também citado por Guerra, “os índios do Brasil nunca batem nos filhos por nenhuma coisa [...] não tem pai que açoite o filho e falar alto e de forma ríspida a criança sente muito mais do que lhe bater”.[4]

A ideia de aplicação de castigos físicos e ameaças contra a criança, inserida no sistema educacional, foi introduzida no Brasil colonial pelos  primeiros padres jesuitas  da Companhia de Jesus em 1549, sendo reservado àqueles que faltavam à escola jesuítica as palmatórias e o tronco. Para os jesuitas, o mimo deveria ser repudiado, os vícios e pecados deveriam ser combatidos com  açoites e castigos, neste cenário os espancamentos tinham como objetivo ensinar às crianças que a obediência aos pais era a única forma de escapar da punição divina. A reação indígena em relação à prática de espancamentos e castigos contra a crianças era de indignação e muitos abandonavam os estudos da doutrina de forma permanente[5]

Nesta época era muito comum a violência sob o manto da escravidão, principalmente quando caracterizada pela violência sofrida por crianças e/ou adolescentes escravos, que passavam pelos mais terríveis castigos físicos e por servícias sexuais (crueldades sexuais), como estupros perpetrados por rapazes brancos.  Muitas crianças nessa época, morreram e outras foram simplesmente devolvidas a seus proprietários, sem nenhuma providência legal[6].

Passando-se do Brasil Colônia ao Brasil Império e ao Brasil República, observamos que as crianças e adolescentes, brancas, negras, ricas, pobres, do sexo feminino ou masculino têm sido disciplinadas por práticas que incluem qualquer forma de violência, sendo que esse disciplinamento era tomado como sinônimo de educação  frente às leis do adulto[7].

O exercício da violência surgiu no Brasil, como em qualquer parte do mundo, como se fosse um instrumento de educação e submissão dos filhos aos pais. Essa  violência institucionalizada no lar vem permeando a história das crianças e dos adolescentes  na sociedade brasileira, através de diferentes práticas, culminando na maioria das vezes, na repressão e no silenciamento dos mesmos.

Observa-se que, de certa forma, a sociedade legitima essa espécie de violência, pois só em 1927, com o advento do Código de Menores, que tal matéria foi disciplinada, sendo que o Código Penal Brasileiro, que data de 1940, tratava  apenas dos castigos exacerbados, vez que a violência contra a criança e o adolescente só era considerada crime quando praticada de forma imoderada, porém quando realizada para a correção era considerada lícita. Segundo, portanto, tal concepção, a família acabava por tornar-se um espaço de violações, sob o comando do “chefe” supremo da casa – o pai. Esta configuração patriarcal foi extremamente lesiva, na qual imperava o exercício da força.

Reproduzida e redimensionada, a prática da violência encontra-se hoje presente na figura do educador que ainda pune, do Estado que ignora, do exterminador que mata e por último e mais cruel, na figura dos pais que agridem física, moral e psicologicamente seus filhos[8]. Violando, portanto, seus direitos  fundamentais, estabelecidos na Convenção  Internacional dos Direitos da Criança, adotada pela Resolução n.º 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de Novembro de 1989, e ratificada pelo Brasil em 20 de Setembro de 1990, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei  n. 8.069, de 1990.

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A sociedade brasileira está habituada a considerar a violência como uma transgressão de regras e leis aceitas pelo todo e das quais depende para continuar existindo. Desta forma, a violência está longe de ser considerada estranha à sociedade, bem pelo contrário, muitas vezes ela é utilizada  como forma de regular as relações sociais e superar conflitos.

O exercício da violência tem-se demonstrado não apenas em relação às classes sociais com interesses antagônicos, mas também nas relações  interpessoais e familiares. Diante desse fato é necessário que se analise a configuração do poder na família, a imagem da criança em seu seio, de acordo com as conjunturas históricas de diferentes épocas, para que assim se possa compreender os vários momentos da violência intrafamiliar, bem como as sérias conseqüências que a mesma poderá  ocasionar na vida das crianças e adolescentes.

Devemos ter presente que a violência cometida contra a criança e o adolescente deve ser considerada como negação dos valores universais tais como: a liberdade, a igualdade e acima de tudo ao direito primordial do ser humano, que é o direito à vida. A violência apresenta-se como uma manifestação de sujeição e coisificação do ser humano, atentando contra a construção de uma sociedade de homens livres, passando a ser considerada uma ameaça constante  ao direito à vida, como também à dignidade e ao respeito.


3.  FAMILIA, UNIDADE DE AMOR OU DE ÓDIO

A família é a mais antiga das instituições humanas e constitui um elemento chave para a compreensão e funcionamento da sociedade. É a família que, a princípio, se encarrega de preparar seus membros para que cumpram satisfatoriamente o papel social que lhes corresponde[9].

O conceito de família, fundamentado no patriarcalismo, tem sofrido várias mudanças, com reflexos substanciais em nosso ordenamento jurídico. Faz-se necessário, então, compreender a lei natural de que a família se constitui na entidade básica de toda  e qualquer  sociedade, mesmo as mais primitivas.

Vários juristas, em épocas diferentes, conceituaram família.  Para Caio Mário da Silva Pereira, em sentido genérico e biológico, família é um conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum. Em sentido mais estrito, família é considerada como o conjunto de pessoas unidas pelos laços do casamento e da  filiação[10].  Já para Clóvis Beviláqua, “família é o conjunto de pessoas ligadas pelo  vínculo da  consangüinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se por família somente os cônjuges e a respectiva progênie”.[11]

No direito brasileiro a  Idéia  de família era originalmente  aquela constituída de pais e filhos unidos a partir do casamento regulado pelo Estado. Após a Constituição Federal de  1988, houve uma ampliação deste conceito, uma vez que o Estado passou a reconhecer “como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, (art. 226, par. 4º.), bem  como  a união estável entre homem e mulher (art. 226, par. 3º).

Percebe-se  que desta ou daquela forma, o conceito de família atravessa o tempo e o espaço, sempre sinalizando  que a família tem  fins específicos, entre os quais destaca-se a formação de pessoas no seu sentido integral, ou seja, propiciar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, o que denota o verdadeiro zelo, o cuidado com o ser humano.

Diante do exposto surge um questionamento: se a família tem esta importante finalidade, como é possível que nossa sociedade esteja em crise e, que entre todos os problemas sociais, morais, econômicos e políticos, podemos observar  que o mais grave entre eles é a violação da dignidade dos direitos das pessoas, em especial dos direitos da criança e do adolescente, pois em nosso país,  o fenômeno da violência intrafamiliar está presente em todas as idades, sexos, níveis culturais, crenças religiosas e posições econômicas. Estes elementos, nos levam a uma profunda reflexão sobre o país que desejamos construir e qual é a nossa responsabilidade  no que se refere a   esta questão.


4. A IMPORTÂNCIA DO REFERENCIAL FAMILIAR NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A Psicologia Social é uma área de conhecimento da Psicologia que procura aprofundar o conhecimento  da natureza social do fenômeno  psíquico do  indivíduo. Trabalha com a subjetividade humana, isto é, com o mundo interno  que possuímos e suas expressões que são construídas nas relações sociais, ou seja, surge do contato entre os seres humanos e destes  com a natureza.

Na Psicologia Social, cada indivíduo aprende a ser pessoa e constrói a sua forma de ser e estar no mundo através das relações com outros, quando se apropria da realidade criada pelas gerações anteriores, apropriação essa que se dá pelo manuseio dos instrumentos e aprendizado da cultura humana em que o mesmo estiver inserido. Nosso mundo interno se alimenta de conteúdos que vem do mundo externo e, como nossa relação com o mundo externo não cessa, estamos em constante movimento, em processo de transformação.

A criança quando nasce, encontra um mundo de objetos e significados já construídos por outros da sua espécie. Nas relações sociais, ela se apropria  desse mundo cultural e desenvolve o “sentido pessoal”[12].

O bebê, por exemplo, a partir do momento em que chega ao mundo começa a sujeitar-se a horários, hábitos alimentares (mamadeira ou peito); posteriormente, ocorre o treino de higiene, o aprender a andar, a aprendizagem da língua e assim por diante. O que o indivíduo aprende e como aprende caracterizam a peculiaridade de cada grupo, classe social e cultural[13]. Neste sentido a socialização está relacionada às condições objetivas de vida do indivíduo. Assim, num primeiro momento, a educação básica da criança irá ocorrer dentro do grupo familiar, que é responsável pelo modelo de conduta que a mesma terá pelo desempenho de seus papéis sociais e valores que controlam tais papéis.                          

A família vai delimitando determinados papéis ao indivíduo, os quais lhe servirão de direção, de caminho neste nosso processo existencial. À medida  que a criança vai crescendo, as exigências tornam-se cada vez mais  claras e o desempenho dos papéis de menino ou menina cada vez mais controlados. Temos como exemplo uma frase muito antiga, mas ainda muito em voga em nossos dias: “Minha filha, você já está uma mocinha, precisa tomar cuidado com o seu jeito de sentar” ou “Meu filho, menino não brinca de bonecas, isso é coisa de menina”, etc. É nesse processo de socialização intrafamiliar que a criança irá assimilar valores como o da fragilidade feminina e o da superioridade masculina, “comuns” em nossa cultura ocidental.      

  Segundo Freud, a base consciente do psiquismo é o ego, e a criança estrutura o seu ego durante o período de desenvolvimento que vai do nascimento até a puberdade. Portanto, essa formação ocorre justamente no período em que a criança está junto de sua família, tendo os primeiros registros de ser e estar no mundo. Daí a importância da função a ser desempenhada pelo grupo familiar para que a criança possa se desenvolver de forma equilibrada e harmônica. Será neste grupo, na expressão das emoções entre pai, mãe e filhos, que a criança aprenderá a comunicar-se e a conviver com os outros.

 Percebe-se que o processo de formação psíquica ocorre mais no plano afetivo do que no plano racional. Pois a vida afetiva é parte integrante da nossa vida psíquica, são nossos afetos e emoções que dão colorido as nossas vidas e expressam-se nos desejos, nos sonhos e nos sentimentos, é o que nos faz viver[14].

Bock, ressalta a importância da família  no desenvolvimento do ser humano, pois todos os grupos históricos e culturalmente desfavorecidos, seja a criança, o jovem, o idoso, a mulher, iniciam sua formação e, em conseqüência, seu processo de exclusão ou inclusão social pela família[15].                              

A violência que ocorre dentro de casa, consiste  em  um fenômeno degradante,  barbarizante, que anula o ser criança e adolescente reduzindo-os, dessa forma, a simples  objetos de maus-tratos, além de representar  a omissão praticada pelos pais, parentes ou responsáveis, capazes de causar danos físicos, sexuais e/ou psicológicos  às vítimas.

 A referida violência implica na transgressão do poder/dever de proteção do adulto ou responsável pela criança ou adolescente, sendo que por outro lado refletirá na transgressão dos direitos que os mesmos têm de serem tratados  como seres em condição de desenvolvimento[16].

Crianças e adolescentes, vítimas de maus-tratos por parte de seus próprios pais, ou por aqueles que exercem uma certa autoridade sobre elas, se tornam indefesas, inseguras e com grandes possibilidades de tornarem-se agressoras de seus futuros filhos (repetição de papéis). Pois as punições corporais violentas, torturas, palavras agressivas, consomem seus corpos e encurtam suas vidas, levando-as a um comprometimento psíquico, que deixa feridas abertas que não cicatrizam nem mesmo com o passar dos anos, restando-lhes profundas seqüelas  como desequilíbrios psicológicos, frustrações  pessoais e profissionais entre outras.

A violência intrafamiliar é motivo de preocupação e indignação das nações  do mundo todo, incluindo a nossa. Houve períodos históricos que esse tipo de violência era considerada como um assunto de interesse privado, que só competia a  própria família resolver. Atualmente, como resultado de todo um esforço que  resultou nas convenções internacionais e conferências  sobre direitos humanos, a violência intrafamiliar, não está mais confinada a  esfera privada. Passou a ser uma questão pública que se estende pelas academias, pelos sindicatos, pelos partidos políticos, pelas organizações de base, pelos movimentos urbanos e está incluída na política de Estado. 

Podemos estimar que pela violência intrafamiliar se afetam os direitos humanos, a liberdade pessoal, a convivência familiar, a saúde física e psíquica do indivíduo. A falta de afeto “adequado” com as figuras parentais, principalmente no  desenvolvimento emocional  da criança e do adolescente, em especial com a figura materna (ou de quem faz/realiza esta função), é  fator contribuinte para ocorrência da conduta agressiva do indivíduo. Podendo até mesmo ser fator decisivo para o desenvolvimento de personalidade entendida como “anti-social”. Distúrbio este que se caracteriza, principalmente, por atitudes  de extrema violência, as quais encobrem sentimentos vinculados  à recuperação dos objetos amorosos perdidos, bem como uma intensa necessidade de punição pela culpa gerada pela agressão voltada, em fantasia, aos pais[17].

Os fatores ambientais ocupam espaço marcante para o desenvolvimento da conduta agressiva nos indivíduos, e sendo a família o principal ambiente de  vivências e experiência dos mesmos, como alguém cujas vivências foram sempre negativas, de privações, violências e frustrações  poderá na vida adulta ter outro comportamento se não a própria agressão nas suas formas mais destrutivas?

No que é configurado por certos estudiosos como personalidade  “anti-social”, entre os sinais precoces típicos – cuja origem é na infância – tem-se  a mentira, o roubo, a briga, a irresponsabilidade e a resistência às autoridades. Na adolescência acabam por se tornarem  habituais o comportamento sexual agressivo ou  precoce, o consumo de álcool e a utilização  de drogas. Na idade adulta, prosseguem estes tipos de comportamentos que acabam por resultar, muitas vezes, num rendimento profissional insuficiente, ou ainda, na incapacidade de assumir o papel de um elemento parental responsável e de respeitar as normas sociais. Quase invariavelmente, ocorre uma insuficiência na capacidade para manter relações íntimas  duradouras, afetuosas e responsáveis com a própria família, amigos ou parceiros sexuais[18]

Segundo Kolb, a criança vítima de maus-tratos poderá ser vítima  da ausência de ideais de ego e superego socializados, o que culminará com a  sua deficiência  emocional, que vai procurar  manter o controle e o domínio dos outros para obter prazer e satisfação  imediata para seus impulsos, não possuindo  consciência crítica de seus atos e não sendo capaz de se colocar no lugar do outro, estando satisfeito com sua conduta hostil e demonstrando poucos sentimentos de culpa ou remorso. Possuem dificuldades para  utilizar seus impulsos agressivos de modo aceitável e construtivo. Caracterizam-se, ainda, por serem irritadiços, arrogantes, inflexíveis e egoístas[19].

Kalina, da mesma forma que Kolb afirma que as crianças   vítimas de maus-tratos e privações severas na infância, quando adolescentes, exibem falta de controle e afeição. Apresentam ainda uma inacessibilidade emocional, relacionamentos superficiais e ausência de tensão e ansiedade normais, bem como a falta de maturidade social  e, caso não seja “cuidada”  de forma adequada e em tempo ábil, perdurará por toda a vida do sujeito[20].

  Kaplan e Sadock afirmam a importância dos fatores ambientais: o descuidado  de uma mãe  ou sua substituta evidenciados   por um lar  sem coesão, falta de disciplina materna consistente e falta de afeição, principalmente até os 6 (seis) anos de idade, influenciam decisivamente na conduta  anti-social  do indivíduo[21].

Winnicott, a propósito da tendência “anti-social”, entende que uma criança normal – se possui  a confiança do pai e da mãe – usa de todos os meios possíveis para se impor. Com o passar do tempo, põe à prova  o seu poder de desintegrar, destruir, assustar, cansar, manobrar, consumir, apropriar-se. Se o lar consegue suportar tudo que a criança pode fazer para desorganizá-lo, ela sossega e vai brincar; mas primeiro os testes têm que ser feitos – especialmente se a criança tiver alguma dúvida quanto à estabilidade da instituição parental  e do lar[22].

O que acontece se o lar falta à criança antes dela ter adquirido uma idEia  de um quadro de referência como parte de sua própria natureza?

Para Trindade, a criança  cujo lar não lhe ofereceu um sentimento de segurança , vai procurar “proteção e aconchego” fora das quatro paredes de sua casa. Ainda tem esperança e recorre aos avós, tios, tias, amigos da família, escola. Procura estabilidade externa sem a qual poderá enlouquecer. É freqüente a criança obter em suas relações e na escola o que lhes faltou em casa. O comportamento “anti-social”, segundo o autor, nada mais é  do que um grito de socorro, pedindo o controle de pessoas fortes, amorosas e confiantes, pois o sentimento de segurança não chegou à vida da criança a tempo   de ser incorporado às suas crenças e sua formação[23].

É com os pais que a criança aprende a lidar com suas próprias angústias. Se os pais são continentes ela irá se tranqüilizar. Se eles são permissivos, agressivos e sádicos, ela  irá se identificar com estes aspectos deles.

Goldemberg sustenta que existem famílias que se reproduzem biologicamente, mas não conseguem se reproduzir socialmente, ou seja, não conseguem manter uma dinâmica familiar articulada.  Segundo o autor citado, há geralmente duas alternativas para as pessoas que passam por violência doméstica: uma é o caminho da delinqüência, do crime, por acreditar que poderá contrapor-se à força de coerção da sociedade. A outra é tornar-se um profissional de controle e repressão, como por exemplo, entrar para a polícia[24].  No entanto, não podemos aceitar passivamente estes dois tipos de  caminhos apontados. Primeiro, porque o ser humano é bastante complexo, sua capacidade de resiliência é por demais ativa e, além do que, acreditamos nas redes de solidariedade, no compromisso com o outro, capaz de, efetivamente, resgatar pessoas, alterando histórias de vidas já marcadas com tantas contradições, violência, enfim, desamor.

Sobre as autoras
Marli Marlene Moraes da Costa

Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha, com Bolsa Capes. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, professora da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Professora da Graduação em Direito na FEMA – Fundação Educacional Machado de Assis de Santa Rosa, Coordenadora do Grupo de Estudos “Direito, Cidadania e Políticas Públicas” da UNISC. Psicóloga com Especialização em Terapia Familiar – CRP n. 07/08955, autora de livros e artigos em revistas especializadas. Coordenadora do Projeto de Extensão financiado pelo PAPEDS, “O brincar e a construção da cidadania nas escolas”. Integrante do projeto CNPq (PUC/RS) Relações de Gênero e Sistema Penal: violência e conflitualidade nos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Sub-coordenadora do Projeto de Implementação do CIEPP – Centro Integrado de Políticas Públicas na Universidade de Santa Cruz do Sul –RS – com verba do FINEP. Coordenadora do Projeto “O Direito de proteção contra a exploração do Trabalho Infantil e as Políticas Públicas de Saúde no Brasil”, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Instituto Ócio Criativo.

Josiane Rose Petry Veronese

Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente, da Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora em Direito. Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUC/RS. Coordenadora do Curso de Direito da UFSC. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente e sub-coordenadora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade CCJ/UFSC. Autora de vários livros e artigos na área do Direito da Criança e do Adolescente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Marli Marlene Moraes; VERONESE, Josiane Rose Petry. Um monstro esconde-se em casa.: A violência doméstica contra crianças e adolescentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4089, 11 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29443. Acesso em: 26 dez. 2024.

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