Parafiscalidade judicial
Algo que é reiteradamente trazido à baila, incorporando a fundamentação de diversos julgados, é a comparação do ECAD ao “Sistema S”, que engloba o SENAI, SENAC, etc, pois segundo Sepúlveda Pertence, “é indiscutível que os entes públicos possam criar pessoas jurídicas de direito privado para fins de interesse público [...] O ECAD seria, então, um prestador de serviço público por delegação legislativa”. (STF, 2003, p. 134)
Ora, a questão da parafiscalidade é relativamente simples, ou seja, o Estado exerce seu poder-potestade para impor a alguém a obrigação de pagar determinado tributo, para a seguir delegar a legitimidade para cobrança de uso desta verba para alguma entidade que cumpra uma função essencial para o próprio Estado. É, de fato, uma forma de o Estado transferir verbas sem que estas passem pelo seu caixa. Isto é, de forma muito simplificada, a parafiscalidade.
Um exemplo clássico de parafiscalidade é o caso da OAB. O Estado impôs, por lei, a cobrança das taxas e anuidades pelos advogados e estagiários para a OAB, e é inequívoco que a advocacia é uma função essencial da justiça, conforme disposto na Constituição Federal. Ora, houve grande dissenso, onde esta cobrança por vezes se deslocava para a Justiça Federal, correndo sob os moldes da Lei de Execução Fiscal, Lei nº 6.830, de 22-09-80.
A entidade não se amolda às demais corporações de natureza profissional, e não se caracterizando como autarquia, a cobrança das contribuições ou multas não deverá seguir o procedimento previsto na Lei nº 6.830/80, que rege a execução judicial para a cobrança da dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias. Aliás, para a cobrança de seus créditos, expede apenas certidão passada pela Diretoria do Conselho competente. As anuidades não se constituem em contribuição parafiscal. Tais considerações afastam a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento das execuções de contribuições devidas à OAB, pois tais causas não se amoldam à dicção do art. 109 da CF. (STJ, 2005)
A OAB não é uma entidade parafiscal. Isto é absolutamente relevante para o estudo do caso concreto. A OAB, ao contrário do ECAD, não detém apenas previsão legal, detém regulamentação legal, disposta em lei federal. Destarte a relevância desta entidade, destarte a mesma se destinar exclusivamente a prestar um serviço público, ainda assim a cobrança de seus direitos se amolda nos critérios do Código de Processo Civil. E observe-se que se a OAB não existisse nos moldes previstos na lei, deveria existir como órgão estatal, com todos os custos inerentes afluindo diretamente para ou dos cofres públicos. Ainda assim, no STJ não é reconhecido como entidade parafiscal.
As decisões que comparam o ECAD à entidades particulares prestando serviço público o fazem pretendendo atribuir uma legitimidade ativa nas ações de cobrança equivalentes à parafiscalidade, o que inocorre absolutamente. Se nem uma entidade da importância da OAB pode ser considerada como entidade parafiscal, tanto mais o ECAD que não é regulamentado por lei, tratando-se de mera pessoa jurídica de direito privado, criada e mantida por particulares, e atuando no interesse restrito de seus associados.
DIREITO DE FISCALIZAÇÃO DO AUTOR
Um ponto não muito discutido em decisões, talvez pouco ventiladas pelas partes, é a que se refere ao direito que o titular de direitos autorais detém, de fiscalizar a execução pública de sua obra.
O direito evoluiu para retirar do Estado este controle, retirar de uma entidade intermediária entre o Estado e o titular do direito este controle, até chegar no momento em que o próprio titular do direito assume este ônus. Isto se depreende da leitura da Lei 9.610/98, artigo 30 e parágrafos:
Art. 30. No exercício do direito de reprodução, o titular dos direitos autorais poderá colocar à disposição do público a obra, na forma, local e pelo tempo que desejar, a título oneroso ou gratuito.
§ 1º O direito de exclusividade de reprodução não será aplicável quando ela for temporária e apenas tiver o propósito de tornar a obra, fonograma ou interpretação perceptível em meio eletrônico ou quando for de natureza transitória e incidental, desde que ocorra no curso do uso devidamente autorizado da obra, pelo titular.
§ 2º Em qualquer modalidade de reprodução, a quantidade de exemplares será informada e controlada, cabendo a quem reproduzir a obra a responsabilidade de manter os registros que permitam, ao autor, a fiscalização do aproveitamento econômico da exploração.
Porque a lei permite a execução gratuita? Simples. Ao autor pode interessar DIVULGAR a sua obra, e neste caso ele mesmo divulga sua obra de forma gratuita. O compositor contemporâneo Heber Schünemann, recentemente disponibilizou no “Youtube” uma de suas mais importantes obras, que havia sido recentemente apresentada, em multimedia, no Centro Cultural “Oi Futuro”, na cidade do Rio de Janeiro. Este vídeo, com a música em sua íntegra, encontra-se disponível no endereço http://www.youtube.com/watch?v=meHo_2aMxMg , mas não pode ser aqui incorporado por limitações desta media.
O que pretende se demonstrar é que, o ECAD, ao oprimir todos os usuários que utilizam execução pública de música, estão violando não apenas o direito de o titular de direitos autorais receber, mas também estão violando o direito de ter sua obra divulgada, ainda que gratuitamente.
Hodiernamente, talvez este seja o maior de todos os prejuízos.
Segundo costuma se comentar no meio da informática, Bill Gates ficou rico graças à pirataria.
Explica-se. Primeiramente, até por uma questão de coerência, protesta-se contra a pirataria. A seguir, é necessário esclarecer que aqui no Brasil, durante o período em que a tecnologia era restritamente controlada pelo governo, a base de microcomputadores que se instalou foi, em grande parte, a partir de máquinas contrabandeadas, e todas essas continham o sistema operacional “Windows” da Microsoft, descaradamente pirateado.
Isto é fato de conhecimento geral, logo não é necessário aprofundar-se sobre este ponto.
A questão é que estes usuários, que tiveram seu primeiro contato com um computador com o “Windows” instalado, formaram uma larga base de usuários, suplantando em centenas ou milhares de vezes o número de usuários que compraram um “Mac”, que já vinha com sistema operacional licenciado instalado, só para mencionar um exemplo.
Quando a própria IBM conseguiu oferecer seus PCs no mercado brasileiro, ninguém aceitou o “OS2/Warp”, não porque não fosse um bom sistema operacional, mas porque era diferente do “Windows”.
Nem o Linux, que a princípio era um sistema operacional para “Nerds”, e que atualmente é superior a qualquer versão do “Windows”, consegue competir com este, apesar de ser totalmente gratuito.
Esta força da Microsoft no mercado brasileiro de computadores pessoais, absolutamente impressionante, começou graças ao fato de os primeiros usuários terem se utilizados gratuitamente do sistema operacional.
Hoje já é possível, até para a própria Microsoft, organizar medidas de combate à pirataria, e se ela não o faz com efetividade, é apenas em comprovação de que esta teoria é bastante conhecida deles.
Reitera-se a posição contra a pirataria, pois é evidente o prejuízo que é gerado em toda sociedade pela sua prática, quando autores, empresas e até o Estado deixam de arrecadar o que lhes é de direito, no entanto, este exemplo aqui se coloca apenas para evidenciar que, por vezes, é um bom negócio ter a divulgação da obra.
De fato, músicos que estão iniciando a carreira fazer romaria pelas rádios, oferecendo gratuitamente suas músicas, e torcendo para que alguém as divulgue.
A publicidade é uma das coisas mais caras do mundo. Em todos os eventos, a maior verba tem sempre ligação com publicidade. Logo, ter sua obra divulgada e popularizada é algo que traz benefícios para os titulares de direitos autorais.
Voltando à questão da pirataria, sob uma ótica oposta, pode se imaginar que a pessoa que ouviu diversas vezes uma música pelo rádio se interesse em comprar um CD ou DVD. Então a execução pública da obra, a critério do titular do direito, pode ocorrer a título gratuito – ele estará, na verdade, fazendo uma permuta. Se o ECAD, no entanto, cobrar por esta execução gratuita, estará frustrando um direito basilar do titular de direitos autorais sobre esta obra.
QUESTÃO MORAL – inidoneidade reconhecida do ECAD
Em 1995 houve uma CPI, que ficou conhecida como CPI do ECAD, que terminou, como infelizmente é comum, “em pizza”.
Quase dez anos depois, em 30 de Março de 2005 o Deputado Federal Hidekazu Takayama (PMDB/PR) apresentou o projeto de resolução que recebeu o nº 223/2005, e que continha o seguinte texto:
Em novembro de 1995, foram concluídas as investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito que ficou conhecida como a CPI do ECAD. Foram encaminhadas à Polícia Federal e aos Ministérios Públicos federal e estaduais cópias do relatório final onde existem veementes indícios de ilícitos penais como: Falsidade Ideológica, Sonegação Fiscal, Apropriação Indébita, Enriquecimento Ilícito, Formação de Quadrilha, Formação de Cartel e Abuso do Poder Econômico, entre outros, com indigitamento dos seus autores e farta documentação.
Passados quase dez anos, a sociedade brasileira ainda não foi totalmente informada das providências tomadas. A situação dos autores e usuários do Direito Autoral continua praticamente a mesma. Estes, os usuários, pagam preços exorbitantes, sem qualquer critério racional; aqueles, os autores, recebem importâncias ridículas, sem qualquer possibilidade de fiscalização e aferição do valores que lhe são devidos. Na época, aproveitando o descontentamento generalizado, deputados de diversos partidos faturaram alto prestígio político entre os autores e as entidades que utilizam as obras musicais. Em suas palestras pelo interior do país, costumavam afirmar que a CPI do ECAD cumpriu bem seu papel, mas que a Polícia Federal e o Ministério Público pouco fizeram para solucionar os problemas apontados.
Em 1996, uma comissão formada por entidades de autores gaúchos em parceria com o Deputado Federal Luiz Mainardi apresentou o Projeto de Lei n.º 2.571 que pretendia estabelecer normas gerais sobre a arrecadação e distribuição de direitos autorais relativos à execução pública de obras musicais ou lítero-musicais. Tal projeto previa a criação da Curadoria da Propriedade Intelectual, com poderes de fiscalização efetiva, inclusive pela instauração de inquéritos civis e auditorias contábeis para apurar crimes e irregularidades cometidos pelas entidades arrecadadoras e distribuidoras dos direitos autorais.
O projeto em questão enfrentou forte lobby das corporações interessadas na manutenção do status quo, sendo substituído por um outro que dormia havia muitos anos nas gavetas do Congresso Nacional e que resultou na Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que manteve o ECAD com todos os seus vícios.
Muitas das relações que ocorrem sob a égide do direito autoral transcendem a órbita dos interesses individuais para inscreverem-se na órbita dos interesses difusos, reclamando, por isto, a intervenção do Ministério Público. Sejam as relações que se travam entre autores e as grandes gravadoras de obras musicais, sejam as relações que se travam entre autores e as entidades encarregadas da gestão dos direitos autorais de execução, sejam as relações que se travam entre estas entidades e os consumidores em geral, são todas elas perpassadas pelo PRINCÍPIO DA VULNERABILIDADE, em que uma das partes é totalmente submetida ao arbítrio da outra. Nas relações entre autores e gravadoras não são raros os crimes contra a propriedade intelectual. Os mais comuns são a utilização de obras sem autorização do autor e o plágio estimulado e acobertado por algumas gravadoras.
Nas relações entre o ECAD e os consumidores, também são comuns os abusos. Não se cogita aqui das grandes emissoras de rádio e televisão que podem e sabem se defender do ECAD, mas dos pequenos consumidores (barzinhos, bancas de revistas e até mesmo espetáculos beneficentes) aos quais são impostos preços exorbitantes, calculados sem qualquer critério técnico, com possibilidade de acordos "por fora", em detrimento tanto dos autores, que não recebem seus direitos, quanto dos consumidores, que são coagidos por um poder de polícia que ninguém sabe de onde vem.
Nas relações entre o ECAD e a sociedade como um todo, esta tem estado desamparada por falta de quem a defenda ou garanta seu acesso aos bens culturais. (CONGRESSO NACIONAL, 2005, inicial)
Apesar de cumprir o requisito de obter as assinaturas de mais de um terço dos deputados (houve 237 adesões), a nova CPI não se instalou.
Conquanto não tenha se instalado, é digno de nota o protesto veemente levantado pelo eminente deputado federal, Sr. Jefferson Campos, do PMDB/SP:
O que se tem ouvido, no entanto, é que a entidade criada para proteger os artistas brasileiros não tem cumprido seu objetivo primordial. Recebemos, freqüentemente, no Estado de São Paulo, diversas denúncias de que, efetivamente, os recursos cobrados pelo ECAD não são devidamente repassados aos autores. São esses artistas que, ao se sentirem lesados, exigem desta Casa, por meio dos representantes que elegeram, que seja investigada a aplicação dos recursos recolhidos pelo ECAD.
A atuação muitas vezes arbitrária do ECAD tem, ainda, afastado o cidadão brasileiro do exercício pleno dos seus direitos culturais, impedido a livre expressão da atividade artística e interferido no livre exercício dos cultos religiosos, numa ação contrária a algumas das mais importantes garantias constitucionais. A ação do ECAD em cultos evangélicos, católicos e ecumênicos e em shows beneficentes ou gratuitos – eventos sem qualquer intuito de exploração econômica – muitas vezes inviabiliza a sua realização. Os artistas, por sua vez, queixam-se de que os altos valores recolhidos em tais eventos não chegam às suas mãos.
Sabemos que esta Câmara dos Deputados tem sido cautelosa ao analisar os vários projetos de resolução que instituem Comissão Parlamentar de Inquérito. No entanto, acreditamos ser necessária e urgente uma investigação em torno da atuação do ECAD neste País, pelo bem da manutenção dos direitos do autor, do direito à livre expressão da atividade artística, do livre exercício dos cultos religiosos e da garantia ao pleno exercício dos direitos culturais, assegurados pela Constituição Federal, nos termos do art. 5º, XXVII, IX e VI e do art. 215, respectivamente.
Pelas razões expostas, adotamos posição contrária ao parecer e favorável à aprovação da matéria constante do Projeto de Resolução nº 223, de 2005.” (CONGRESSO NACIONAL, 2005, voto na Comissão de Educação e Cultura)
Observa-se o conhecimento de mérito, constante da afirmação das reiteradas denúncias recebidas de quem é extorquido pelo ECAD, e dos artistas que não conseguem receber seus direitos.
Aqui não se pretende colacionar os inúmeros casos em que o Estado se vê obrigado a recolher taxas para o ECAD, a fim de se realizar eventos públicos. Eventos tais como festas juninas, com cantigas de roda tradicionais, e músicas caídas em domínio público desde antes de nascermos.
Apesar de a composição das próprias associações que integram o ECAD estar viralmente contaminada, a partir da entrada dos mega-grupos de gravadoras internacionais que na prática assumiram seu controle, nada se faz a respeito.
Apesar de o órgão de controle superior ao ECAD ter sido extinto, apesar de ter sido criado um órgão público para cumprir exatamente a função do ECAD, nada se faz.