1 INTRODUÇÃO
O direito à vida está fundamentado na Constituição Federal, se propagando para os demais ramos do Direito. É considerado o mais fundamental de todos os direitos, pois constitui um pré-requisito à existência e exercício dos demais. Embora seja um direito fundamental, o direito à vida não é absoluto, aliás, todos os direitos admitem relativização, uma vez que precisam conviver de forma harmoniosa no ordenamento jurídico.
O Direito Penal, na sua Parte Especial, possui um dispositivo que vai tratar dos crimes contra à vida. Dentre esses crimes, o mais grave é o homicídio – previsto no artigo 121 do Código Penal – , que pode ser definido, de maneira breve e clara, como a supressão da vida de um ser humano causada por outro.
O homicídio pode ser praticado na modalidade dolosa ou culposa, e quando culposa, a depender do caso, aplica-se o perdão judicial. Surge, então, a questão proposta para a realização deste trabalho: Pode-se aplicar o perdão judicial na hipótese de homicídio culposo na direção de veículo automotor (artigo 302 do Código de Transito Brasileiro)? Será que um pai, que possui o porte legal de arma, e por negligência esquece a arma sobre a mesa, deve ser condenado pelo crime de homicídio caso seu filho se mate? E no caso de acidente de trânsito provocado pelo pai, de forma culposa, resultando na morte do seu filho?
A princípio, parece ser muito fácil resolver essas questões, uma vez que são situações similares, quase que idênticas; um pai, agindo culposamente – com negligência, imperícia ou imprudência–, causando a morte do seu filho. O Direito Penal, no entanto, trata as duas situações de formas distintas em virtude de certas particularidades a serem analisadas ao longo deste trabalho no que diz respeito ao perdão judicial nos casos de homicídio culposo praticados na direção de veículo automotor.
2 PERDÃO JUDICIAL
Antes de mais nada, é preciso entender o que é o perdão judicial, que nada mais é do que uma causa de extinção de punibilidade. Quando há um crime, surge com ele, o direito do Estado em fazer valer o seu jus puniendi, ou seja, surge o direito e o dever do Estado de punir. A punibilidade é uma consequência da prática de uma conduta típica, ilícita e culpável. O perdão judicial, como próprio nome aduz, é consentido pelo juiz. O juiz, no entanto, não concede esse perdão quando bem entender, apenas nos casos em que a lei prevê. Como observa Cezar Roberto Bitencourt: “Trata-se de um direito público subjetivo de liberdade do indivíduo, de forma que, presentes seus requisitos, não poderá deixar de ser concedido." O artigo 107 do Código Penal traz em seus incisos as hipóteses de extinção de punibilidade, dentre elas, o perdão judicial, nos casos previstos em lei.
Muito se discute a natureza da sentença, se seria absolutória, declaratória ou condenatória. Por isso, o ideal seria afirmar que trata-se de uma sentença onde o juiz concede a extinção de punibilidade. Não há a atipicidade do fato; o juiz reconhece que houve um crime, porém, por questões de politica criminal o fato não é punido.
Guilherme de Souza Nucci leciona: “O perdão judicial é a clemência do Estado, que deixa de aplicar a pena prevista para determinados delitos, em hipóteses expressamente previstas em lei. (...) Baseia-se no fato de que a pena tem o caráter aflitivo, preventivo e reeducativo, não sendo cabível a sua aplicação para quem já foi punido pela própria natureza, recebendo com isso, uma reeducação pela vivência própria do mal que causou."
O fato não é punido, pois acredita-se que a pena, em certas hipóteses, como no homicídio culposo do pai que causa a morte do filho, perde a sua função, no caso, a retributiva. A pena, dentre suas funções, serve para imputar dor, para que o agente sofra. Assim, não faz sentido aplicar uma pena ao agente que já está sofrendo, pois a natureza já se encarregou de imputar o sofrimento ao agente.
Importante deixar claro, que não se trata apenas da relação de parentesco entre um ascendente e descendente; a morte da vítima deve causar sofrimento ao autor do fato, devendo ser comprovada a relação entre autor e a vítima. É perfeitamente possível, por exemplo, aplicar o perdão judicial no caso ao agente que esquece sua arma sobre a mesa, e seu sobrinho, ao avistar a arma, se mata.
Antes do advento da Lei 6.416/77, o perdão judicial só era aplicado em situações de reduzida importância para o direito penal, em observância ao princípio da insignificância ou bagatela. Com o advento da Lei, houve a criação da possibilidade da aplicação do perdão judicial aos crimes de homicídio culposo. A lei acrescentou ao artigo 121 do Código Penal o parágrafo 5, que assim expõe: “Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”.
Vale ressaltar, portanto, que o perdão judicial em casos de homicídio culposo, deve ser aplicado em observância ao grau de relação entre autor e vitima e, consequentemente, ao sofrimento do autor em virtude do crime, mais precisamente da perda da vítima. Em virtude disso, o Estado renuncia o seu jus puniendi, já que a pena se torna inútil, uma vez que o sofrimento do agente é, por si só, proporcional ao crime praticado. A título de exemplo, seguem dois acórdãos que fazem menção a esses dois requisitos:
EMENTA: APELAÇAO CRIMINAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇAO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ART. [302]DA LEI Nº 9.503/97. PERDAO JUDICIAL. VÍTIMA CUNHADA DO CONDUTOR. REQUISITOS OBJETIVOS E SUBJETIVOS PREENCHIDOS. REDUÇAO NA APLICAÇAO DA PENA. PREJUDICADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ-ES - Apelação Criminal : ACR 48040119561 ES 048040119561)
EMENTA: PENAL. CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO . HOMICÍDIO CULPOSO PROVOCADO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. LEI N. 9.503 /97, ART. 302 , CAPUT. RÉU CONDENADO À PENA DE 2 ANOS DE DETENÇÃO. CONCESSÃO DE PERDÃO JUDICIAL. RECURSO MINISTERIAL. AUSÊNCIA DE PROVA DE QUE O DESFECHO FATAL TENHA CAUSADO EXTREMO SOFRIMENTO AO RÉU. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PERDÃO JUDICIAL. (TJ-SC - Apelação Criminal APR 20120795649 SC 2012.079564-9.
3 HOMICÍDIO CULPOSO E CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
O homicídio, como dito anteriormente, é um crime contra a vida previsto no artigo 121 do Código Penal. Esse tipo penal pode ser simples, privilegiado, qualificado, doloso e culposo.
Quando se fala em homicídio doloso e culposo refere-se ao elemento subjetivo do tipo penal. Esse elemento subjetivo analisa a vontade do agente. Se o agente age com animus necandi, com a finalidade de realizar a conduta descrita no tipo, fala-se em dolo, mais precisamente o dolo direto. O dolo eventual ocorre quando o agente prevê o resultado e assume o risco de produzi-lo; pouco se importa com a ocorrência deste. Por fim, temos o homicídio culposo, previsto no 121, parágrafo 3. Há o cometimento do crime em razão da não observância do dever de cuidado, podendo ser proveniente da imperícia, imprudência ou da negligência.
Todos os anos, milhares de pessoas morrem em virtude de acidentes provocados no trânsito, por imprudência dos motoristas. Em razão disso, houve a criação do Código de Trânsito, por questão de política criminal e pressão da sociedade.
Trata-se de uma legislação específica para tratar de forma diferente os crimes cometidos diante da condução de um veículo automotor; a punição para esses crimes são mais severas. O homicídio culposo, além de previsto no Código Penal, também está previsto no Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 302, estabelecendo as margens in abstracto entre dois e quatro anos de detenção.
Assim, presume-se que os crimes culposos cometidos na direção de veículo automotor são sempre de maior potencial ofensivo que os crimes culposos descritos no Código Penal, como uma forma de fazer com que a indivíduo tenha um cuidado maior ao conduzir um veículo, pois no Código Penal, essa margem varia entre um e três anos.
Fazendo uma análise do tipo penal do Código de Trânsito Brasileira, o sujeito ativo, ou seja, o autor do fato, pode ser qualquer pessoa – que esteja conduzindo o veículo–, e o sujeito passivo, a vítima, também poderá ser qualquer indivíduo. Ao se analisar os elementos do tipo penal, devemos nos atentar aos objetivos e subjetivos. O elemento objetivo do tipo é a condução do veículo automotor. Assim, se o agente não estava conduzindo um veículo automotor, o fato será atípico diante do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. O elemento subjetivo é a culpa; se o agente não agiu por imprudência, imperícia ou negligencia, o fato também não se encaixará neste artigo. Se o fato, por exemplo, foge completamente da previsão do agente, estaremos diante de um caso fortuito ou força maior.
Fazendo uma análise conjunta do Código Penal e do Código de Trânsito Brasileiro (Lei Geral e Lei Especial), percebe-se que o artigo 121 do Código Penal, parágrafo 5, traz a hipótese de perdão judicial nos casos de homicídio culposo, como é o caso do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Seria um caso simples de ser resolvido, se não fosse o veto Presidencial do artigo 300 do Código de Trânsito Brasileiro, que trazia a hipótese do perdão judicial.
Em virtude do veto, há uma discussão doutrinária se é possível ou não a aplicação do perdão judicial nos casos de homicídio culposo praticados na condução de veiculo automotor. Essa discussão surge em virtude de o artigo 107, parágrafo 5, afirmar que só se pode aplicar o perdão judicial em casos expressos na lei e com o veto do Senhor Presidente da República, não há a previsão legal do perdão judicial.
4 POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PERDÃO JUDICIAL
Há duas teses cabíveis diante desta questão; há dois entendimentos doutrinários divergentes, e, por conseguinte, é possível observar decisões que giram em torno das duas teses, uma pró e outra contra.
Alguns doutrinadores acreditam ser perfeitamente possível a aplicação do perdão judicial, outros não, ambos com argumentos que sustentam tais teses, e os mesmo argumentos, como veremos a seguir, são utilizados para sustentar as decisões na pratica forense.
Para aqueles que defendem a aplicação do perdão judicial, como por exemplo, Rogério Grecco, Luiz Flávio Gomes, Fernando Capez, Damásio de Jesus, há diversos argumentos fortes que sustentem a tese.
O primeiro argumento vem da justificação do veto pelo Presidente: "O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo 129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente". Assim, percebe-se que o veto presidencial visou justamente possibilitar a aplicação do perdão judicial disciplinado no Código Penal aos crimes culposos de trânsito, por entender que essa forma é mais abrangente.
Além disso, o artigo vetado traria um rol taxativo de vítimas (cônjuge ou companheiro, ascendente, descendente, irmão ou afim em linha reta, do condutor do veículo), excluindo algumas hipóteses, que não permitiria o perdão judicial nem mesmo nos casos em que as lesões atingissem o próprio agente. Já, o perdão judicial disciplinado no Código Penal não possui tal desvantagem.
O artigo 291 do Código de Trânsito Brasileiro expõe justamente a aplicação subsidiária das normas gerais do Código Penal aos crimes cometidos na direção de veículos automotores previstos na legislação de trânsito. As normas não se restringem à Parte Geral desse código, havendo normas gerais descritas também na parte especial do Código Penal. O perdão judicial está previsto de forma genérica no art. 107, parágrafo 9, do Código Penal, sendo apenas regulado em situações particulares na Parte Especial.
Fernando Capez ressalta que o veto deste foi “sob o fundamento de que o Código Penal disciplina o tema de forma mais abrangente. As razões do veto, portanto, demonstram que o perdão judicial pode ser aplicado também aos delitos da Lei Especial”.
Um outro argumento que sustenta a tese seria a analogia em bonam partem que deve ser feita, pois seria injusto e ilógico o tratamento diferenciado de duas situações idênticas, como por exemplo, do filho que se mata com a arma do pai que esqueceu à vista, e do filho que morre em um acidente de trânsito provocado pelo pai, que agiu com imprudência. Caso essa analogia não seja feita, não se observa o princípio da igualdade, que norteia todo o ordenamento jurídico.
Aquele que vitima um parente e comete homicídio culposo, na condução de uma aeronave, de uma composição férrea, no metrô, na intervenção médico-cirúrgica, entre outras situações, terá possibilidade de obter o perdão judicial, enquanto que a ocorrência do mesmo fato, nas mesmas circunstâncias, mas na condução de um veículo automotor, não poderá ensejar a obtenção do benefício. Assim, a busca da resposta vem da Constituição Federal, através do princípio da isonomia para um forte argumento para esta tese.
Por fim, um terceiro argumento que sustenta a tese está fundamentado no artigo 12 do Código Penal: “As regras gerais desse Código se aplicam aos fatos incriminadores por lei especial, se esta não dispuser ao contrario”. Em sendo assim, já que o Código de Trânsito Brasileiro não trouxe expresso a inaplicabilidade do perdão judicial na hipótese prevista do 302, será perfeitamente possível a aplicação das regras gerais do Código Penal, que, como exposto acima, não se trata apenas da Parte Geral, e sim das regras gerais que norteiam o Código Penal, incluindo a Parte Especial.
Rogério Grecco leciona que embora não concorde com o veto Presidencial, visto que as causas de extinção de punibilidade devem estar expressas, por questão de política criminal, é perfeitamente aplicável o perdão judicial nas hipóteses do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro. Segue abaixo duas jurisprudências nesse sentido:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO. ART. 302 DO CTB. PERDÃO JUDICIAL. VIABILIDADE. MATERIALIDADE E AUTORIA. PERDÃO JUDICIAL. PROVERAM EM PARTE O APELO PARA CONCEDER O PERDAO JUDICIAL, DECLARANDO EXTINTA A PUNIBILIDADE DO ACUSADO. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70034903930, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 14/10/2010)
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. HOMICÍDIO CULPOSO EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. ARTIGO 302, CAPUT, DO CTB. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. APLICAÇÃO DE OFÍCIO DO PERDÃO JUDICIAL, COM O RECONHECIMENTO DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE (TJ-PR - ACR: 2973864 PR Apelação Crime - 0297386-4, Relator: Luis Espíndola, Data de Julgamento: 22/09/2005, 4ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 07/10/2005 DJ: 6970)
5 IMPOSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DO PERDÃO JUDICIAL
Há, no entanto, doutrinadores que argumentam contra a aplicação do perdão judicial, como Luiz Regis Prado. Para ele, o obstáculo decisivo para a não aplicabilidade do perdão é a impossibilidade de analogia bonam partem, uma vez que a lei é clara ao mencionar que a extinção de punibilidade só se aplica em casos expressos na lei. Além do que, uma analogia, ainda que em benefício, pressupõe uma lacuna na lei.
O princípio da legalidade rege o Direito Penal, assim, o aplicador da lei adstrito a esse princípio, não poderia aplicar o referido instituto por analogia ou extensão indevida; se não há de forma expressa o perdão judicial, não há que se falar nele.
Outro argumento forte que sustenta essa segunda tese é o de que, se o Senhor Presidente da República vetou o artigo que trata do perdão judicial é porque o objetivo da criação do Código de Trânsito Brasileiro foi dar um tratamento especial aos crimes cometidos no trânsito e fazer com que a punição desses crimes fosse mais severa, apesar de muitos autores discordarem dessa posição, como Rui Stoco, que afirma que nada justifica que para a mesma figura pena,l a pena-base seja diversa.
E, por fim, a questão do cuidado que se deve ter ao aplicar por analogia um perdão judicial. Nas palavras de Fabbrini Mirabete, “a aplicação do perdão judicial deve ser feita com prudência e cuidado para que não se transforme, contra seu espírito, em instrumento de impunidade e, portanto, de injustiça”.
O perdão judicial é uma causa extintiva da punibilidade e de aplicação restrita aos casos legais, não se estendendo a todas as infrações penais, recaindo, pois, somente sobre aquelas especificamente indicadas na lei. Segue abaixo algumas decisões nesse sentido:
EMENTA: EMENTA HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. HOMICÍDIO CULPOSO. PERDÃO JUDICIAL PREVISTO NO CÓDIGO PENAL . ANALOGIA. INAPLICABILIDADE. LACUNA LEGAL EXISTENTE. STF - HABEAS CORPUS HC 116254 SP (STF) 13/08/2013.
EMENTA: CRIME DE TRÂNSITO. FALTA DE HABILITAÇÃO. ART 309 DO CTB . RÉU LESIONADO EM DECORRÊNCIA DO ACIDENTE. PERDÃO JUDICIAL. O perdão judicial só é cabível em caso de expressa previsão legal. RECURSO PROVIDO POR MAIORIA. (Recurso Crime Nº 71002236404, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Volcir Antônio Casal, Julgado em 28/09/2009)
6 CONCLUSÃO
Para aqueles que são contra a admissibilidade do perdão judicial, um forte argumento seria o do veto Presidencial ao artigo 300 do Código de Trânsito Brasileiro. Se o Presidente vetou esse artigo, significa dizer que o entendimento correto é o da não aplicação do perdão por analogia, já que só se aplica o perdão para casos previstos na lei.
Os que são a favor da aplicação do perdão judicial, de forma acertada, contra argumentam essa afirmação, pois o artigo que tratava do perdão judicial, já é consagrado pelo Direito Penal, e esta é a razão pela qual o mesmo recebeu o veto, pois, o Código Penal trata dessa matéria de forma mais ampla. O veto, portanto, não significou a proibição da aplicação do perdão judicial. Assim, foi lógico e juridicamente correto o raciocínio expresso na mensagem de veto.
Deixar de aplicar a analogia e se deter apenas ao artigo do Código de Trânsito Brasileiro seria deixar de aplicar o Código partindo da sua perspectiva sistemática, pois uma lei não deve ser aplicada de forma isolada e sim baseada em todo o ordenamento na qual está inserida. A não aplicação do perdão judicial acarretaria em ofensa frontal ao princípio da igualdade, oferecendo tratamento diverso ao mesmo delito, o que é constitucionalmente vedado.
As hipóteses de perdão judicial previstas para o homicídio, no Código Penal, deve ser aplicado ao artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, seja por força do 291 deste, seja por força do próprio veto. Ao meu ver, o argumento de que isso fere o princípio da legalidade é um tanto quanto fraco, uma vez que as situações são idênticas, e deve-se preservar o princípio Constitucional da isonomia, analisando, também a vontade subjetiva do autor em casos similares.
De fato, uma legislação especial surge para dar justamente um tratamento especial a uma determinada situação. Assim, é bem verdade que o Código de Trânsito Brasileiro surgiu para dar um tratamento especial às infrações cometidas pelo individuo que conduz um veiculo automotor.
Há exacerbação da pena no homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor em comparação com o mesmo delito, cometido em outras circunstâncias. Não parece possível, para muitos, esse tratamento distinto e exacerbado, pois o que deveria diferenciar os crimes era o maior ou menor grau de culpabilidade da conduta e não nas circunstâncias em que este foi praticado ou os meios utilizados.
A existência de causas especiais de aumento ou diminuição da pena, circunstâncias atenuantes ou qualificadoras, de natureza objetiva e subjetiva, estão previstas na legislação penal justamente para buscar a correta individualização da pena que melhor se encaixa à conduta praticada pelo réu. Mas nada justifica que, para a mesma figura penal, a pena-base seja diversa.
O que deve se observar, no entanto, é a questão da política criminal. Importante salientar que esse perdão só será aplicado, se, além do crime ser praticado na sua modalidade culposa, a morte da vítima causar ao agente dor maior do que a sanção que seria aplicada; o sofrimento é proporcional ao crime, e é nesse ponto que observamos a política criminal adotada.
O artigo 302 vem trazendo, de fato, um patamar in abstracto de pena para o homicídio culposo mais elevado do que no Código Penal. A admissibilidade do perdão judicial para esse artigo não significa que em todas as hipóteses esse perdão será aplicado; significa, apenas, que em algumas hipóteses, muito bem delimitadas, o perdão judicial poderá ser aplicado.
Se, por exemplo, um indivíduo oferece carona a um desconhecido, e, por imprudência, provoca um acidente grave, resultando da morte deste, não há porque se aplicar o perdão judicial nesse caso, sendo possível a aplicação do artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, com o patamar da pena mais elevado – apesar da discussão relacionada a diferença do patamar da pena base. Nessa situação, me parece correto aplicar a Lei Especial observando o objetivo da sua criação, no caso, a severidade da punição, visto que o motorista deve ter prudência, pois além de colocar sua vida em risco, coloca a dos demais indivíduos ao conduzir um veículo automotor.
Porém, um pai, que por imprudência, ao conduzir um veiculo perde seu filho, certamente conviverá com a culpa e o sofrimento, não sendo necessário a aplicação de uma pena. Assim, é perfeitamente cabível a aplicação do perdão judicial. Além de política criminal, é uma questão de humanização, pois o perdão judicial seria uma forma de abrandar o sofrimento daquele que jamais esquecerá do fato e se culpará pro resto da vida.
Por fim, outro forte argumento a favor da admissibilidade do perdão judicial é que o artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro trata de um crime remetido, como leciona Damásio de Jesus. É uma hipótese em que uma norma penal incriminadora faz menção a outra, que a integra. Assim, torna-se necessário buscar no artigo 121 do Código Penal as normas que complementem o sentido do 302. A remissão ao crime principal traz para o especial não só as elementares do tipo, como as demais causas e circunstâncias que o envolvem, como é o caso do perdão judicial. Sem esta integração, estaria prejudicada a isonomia processual e a intenção do perdão judicial, considerando que a maioria dos casos em que é aplicado se refere a delitos de trânsito.
REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Parte Especial. 6.ed.rev.e atual. São Paulo: Saraiva - 2006.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 24.ed. São Paulo: Atlas – 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial. II. 2006
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. 5. ed. São Paulo: RT, 2006.
JESUS, Damásio. Direito Penal, Parte Especial. 28 ed. São Paulo: Saraiva. 2007