7. Participação do amicus curiae
No julgamento por amostragem da repercussão geral, admitiu o legislador, no art. 543-A, § 6º, do CPC, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado (BRASIL, 1973, p. 1). A medida se justifica em face da eficácia transcendente da decisão, em que, sem se ouvir os argumentos das partes e procuradores de outros feitos, tem-se a imposição, a todos os processos semelhantes, do resultado do julgamento da questão de ordem, considerada a controvérsia jurídica em tese. Logo, mostra-se apropriada a abertura conferida pela lei para a participação da sociedade, interessada na solução dos diversos outros processos com matéria idêntica, no julgamento desse pressuposto que, em verdade, mostra-se como o último entrave de natureza estritamente formal ao acesso da questão jurídica perante o STF, qual instância pacificadora da interpretação constitucional. Daniel Assumpção esclarece o ponto nos seguintes termos:
Reconhecendo que a decisão que nega a existência de repercussão geral extrapola o interesse das partes no recurso, até porque permite a aplicação desse entendimento a outros recursos extraordinários (art. 543-A, § 5º, do CPC e, em especial, o art. 543-B, do CPC), permite-se a admissão pelo Supremo Tribunal Federal de manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado (art. 543-A, § 6º, do CPC). Para que a decisão esteja o mais próximo possível da correção, a lei corretamente admite a intervenção no processo do amicus curiae, como forma de levar aos julgadores todos os conhecimentos técnico-jurídicos necessários para a prolação de uma decisão de qualidade, o que só será admitido até a data da remessa dos autos à mesa para julgamento. (NEVES, 2013, p. 752)
8. Repercussão geral como requisito de “relevância” e “transcendência” subjetiva da causa
No que diz respeito ao conteúdo propriamente dito da nova regra de admissibilidade, tem-se que, nos termos do § 1º, do art. 543-A, do CPC, para efeito da repercussão geral, “será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.” (BRASIL, 1973, p. 1) Utilizou-se o legislador, propositalmente, de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados na indicação dos requisitos. Com isso, buscou-se conferir “maior elasticidade na interpretação dessa exigência, que, afinal, terá sua exata dimensão delimitada pela interpretação constitucional que fizer o Supremo Tribunal Federal” (DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 333). Na prática, pois, caberá ao Supremo, em evidente discricionariedade judicial, decidir, casuisticamente, se as questões postas a julgamento atendem ao critério da “relevância” nos planos econômico, social, jurídico e político.
Não obstante a dificuldade em se estabelecer critérios a priori, a doutrina, em esforço de sistematização, sugere algumas hipóteses: a) por repercussão geral jurídica entender-se-ia o requisito presente nas demandas que exigissem, para seu julgamento, a definição de um instituto básico de nosso direito, de molde a que a decisão recorrida, se subsistisse, “pudesse significar perigoso e relevante precedente”; b) a repercussão geral política ocorreria quando “de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais; c) repercussão geral social seria o caractere presente nos feitos em que a discussão envolvesse temas relacionados “à escola, à moradia, ou mesmo à legitimidade do MP para a propositura de certas ações”; d) a repercussão geral econômica, de sua vez, estaria presente quando se discutissem questões econômicas de envergadura nacional, tais como o sistema financeiro de habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais (MEDINA; WAMBIER; WAMBIER apud DIDIER JÚNIOR; CUNHA, 2009, p. 336).
O certo, porém, é que a repercussão geral se constitui no atributo dos feitos que versem sobre questões de “extrema relevância”, compreendida esta como a “significativa transcendência” da controvérsia jurídica. Tal transcendência pode ser qualitativa, quando diga respeito à importância da questão para a sistematização e desenvolvimento do Direito, ou quantitativa, quando se relacione ao potencial da tese de aplicar-se a um elevado número de pessoas (NEVES, 2013, p. 750-751). Consoante informa Luiz Guilherme Marinoni,
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que têm repercussão geral as causas envolvendo as limitações constitucionais ao poder de tributar, que são verdadeiros direitos fundamentais dos contribuintes, e aquelas que dizem respeito à extensão do direito fundamental à saúde, notadamente no que concerne à existência ou não de direito a medicamento de alto custo a ser fornecido pelo Estado (STF, Repercussão Geral no RE 566.471/RN, rel. Min. Marco Aurélio, j. 15.11.2007, DJ 07.12.2007, p. 16). Quanto às causas envolvendo as limitações constitucionais ao poder de tributar, o Supremo já decidiu que têm repercussão geral a controvérsia atinente: a) à necessidade ou não de lei complementar para a disciplina da prescrição e decadência em matéria de contribuições previdenciárias (STF, Repercussão Geral no RE 559.943/RS, rel. Min. Carmen Lúcia, j. 23.10.2007, DJ 07.12.2007, p. 16); b) à incidência do imposto de renda pessoa física (STF, Repercussão Geral no RE 561.908/RS, rel. Min. Marco Aurélio j.08.11.2007, DJ 07.12.2007, p. 16); c) ao alcance da imunidade sobre o lucro na exportação em tema de contribuição social (STF, Repercussão Geral no RE 564.413/SC, rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.11.2007, DJ 14.12.2007, p. 20); e d) à existência ou não de responsabilidade solidária do sócio sobre tributo devido pela empresa (STF, Repercussão Geral no RE 567.932/RS, rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.11.2007, DJ 14.12.2007, p. 20) (cf. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil Comentado. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010. art. 543-A). (MARINONI, 2013, p. 472-473)
Não obstante a regra geral seja a questão jurídica ultrapassar o interesse subjetivo das partes, nos termos do art. 543-A, § 3º, do CPC, há uma hipótese de presunção legal absoluta de existência da repercussão geral: é o caso de a decisão recorrida contrariar súmula ou jurisprudência dominante do STF (BRASIL, 1973, p. 1). Trata-se de cláusula de abertura que permite a substituição do acórdão recorrido por um consentâneo com a orientação do Supremo, o qual, na pessoa do relator, com fundamento no art. 557, do CPC, [20] poderá prover liminarmente o recurso, corrigindo, sem grandes custos processuais, a interpretação jurídica distorcida que prevaleceria na espécie caso o extraordinário não fosse admitido.
Incumbe frisar que, consoante o art. 543-A, caput, do CPC, a decisão relativa à repercussão geral no recurso extraordinário é irrecorrível – o que não significa dizer que não caiba agravo interno da decisão do relator que, com base em precedente da corte, negue seguimento ao recurso sob esse fundamento. A irrecorribilidade, à evidência, é da decisão do Supremo, que, em última instância, manifesta-se pelo tribunal pleno. Nesse sentido, Daniel Assumpção esclarece que o art. 327, § 2º, do RISTF [21] prevê expressamente o cabimento de agravo contra decisão monocrática do presidente ou relator que, com fundamento na ausência de repercussão geral, não conhecer do RE (NEVES, 2013, p. 752).
9. Viabilidade da negativa de desistência da demanda recursal no feito representativo da controvérsia. Mitigação do princípio dispositivo e da vedação à reformatio in pejus
Por último, cumpre registrar que o recurso extraordinário, na sistemática de julgamento por amostragem instituída pelo requisito da repercussão geral, restou dotado de evidente interesse público, o que repercute em determinadas prerrogativas das partes (WOLKART, 2013, p. 62). O interesse em ver julgado o RE, que propiciará a formação de precedente aplicável a um vasto número de demandas presentes e a um número indeterminável de demandas futuras, passou a ser da inteira sociedade, e não apenas das partes integrantes do feito representativo da controvérsia. Essa constatação ocasionou, na jurisprudência, o entendimento de que a nova sistemática mitigou a faculdade ordinariamente conferida ao recorrente de desistir do recurso (BRASIL, 2008, p. 1). [22]
De igual forma, a referida objetivação do recurso extraordinário operou mitigação à vedação da reformatio in pejus, que representa a impossibilidade, em regra de piora da situação do recorrente no silêncio da parte contrária. Ante o interesse público presente no controle difuso de constitucionalidade implementado pelo recurso extraordinário, possível é a reforma do acórdão recorrido para pior, pois, além de se prestigiar a supremacia da constituição no caso concreto, está-se a formar precedente aplicável ao inteiro território nacional, cuja corretude jurídica, por óbvio, não pode ceder lugar ao interesse particular do recorrente (WOLKART, 2013, p. 67-69). [23]
10. Conclusão
Instituída no âmbito da reforma introduzida pela EC n.º 45, de 30 de dezembro de 2004, a repercussão geral é o requisito de admissibilidade específico do recurso extraordinário no qual se exige a demonstração da presença de questões “relevantes” do ponto de vista econômico, social, político ou jurídico, que ultrapassem os limites subjetivos da causa. É medida de objetivação e racionalização do processo e da jurisdição do Supremo Tribunal Federal, o qual, pela nova sistemática, nas demandas repetitivas ou de massa, somente aprecia um ou alguns dos feitos representativos da controvérsia, decidindo, preliminarmente, acerca da existência da repercussão geral, e, admitido o recurso, no mérito, produzindo precedente de eficácia vinculante no âmbito do próprio STF (vinculação horizontal) e de eficácia altamente persuasiva para a inteira jurisdição nacional.
O instituto alterou significativamente a finalidade e o alcance do recurso extraordinário, que deixou de representar instrumento de acesso ao Supremo Tribunal Federal enquanto instância regular para questões de natureza constitucional para, efetivamente, permiti-lo cumprir o papel de corte constitucional, voltada à formação de precedentes e à fixação de teses jurídicas aplicáveis ao inteiro território nacional. Ante o caráter vinculante, salvo revisão de tese (overruling), da decisão do RE para o próprio STF, tornou-se absolutamente inútil que os tribunais inferiores mantenham acórdão em sentido diverso, vez que, caso o Presidente ou Vice-Presidente do tribunal a quo deixe de negar seguimento ao extraordinário, remetendo os autos à Corte Maior, esta, necessariamente, teria de cassar ou reformar o acórdão recorrido. Logo, não obstante a opção do legislador por não implementar formalmente uma limitação à autonomia funcional de magistrados e tribunais de segunda instância – algo no que avança o Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil (PLNCPC) – por medida de ordem prática, e ressalvados os indesejáveis casos de flagrante desconhecimento da jurisprudência superior, as cortes de apelação passaram a seguir a orientação do STF, como se se houvesse sido instituído, efetivamente, um sistema de precedentes vinculantes no Brasil. A medida proporcionou significativa redução na quantidade de processos distribuídos no Supremo Tribunal Federal, sendo essa uma das razões pelas quais é contemplada e aprimorada no projeto do Novo Código de Processo Civil, atualmente em trâmite no Congresso Nacional.
A tabela abaixo demonstra a drástica redução no número de processos encaminhados ao Supremo Tribunal Federal desde a regulamentação por norma infraconstitucional do instituto da repercussão geral, no ano de 2006. No ápice da crise, o STF recebeu em seu protocolo 127.535 processos em um ano. Em 2012, decorridos seis anos de repercussão geral, o número caiu 43,4%, alcançando a soma de 72.148 feitos submetidos à apreciação da Suprema Corte brasileira. Trata-se de diminuição altamente significativa, que revela o sucesso da iniciativa enquanto estratégia de redução na taxa de congestionamento do tribunal.
Na proposta constante do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, sendo o caso de demandas repetitivas, autoriza-se a remessa do feito representativo da controvérsia ao STF “independentemente de juízo de admissibilidade” (BRASIL, 2010, p. 1). O Supremo, admitindo o recurso por reconhecer a repercussão geral da questão jurídica (art. 989, do PLNCPC), formará precedente de observância obrigatória pelos tribunais locais e juízos de primeira instância. A tendência, pois, é a de que, sob a égide do Novo -Código, verifique-se redução ainda maior na quantidade de feitos submetidos ao crivo do STF, o que constitui inegável avanço em termos de racionalidade, economicidade e celeridade no processo judicial brasileiro.
Tabela 1 – Movimento processual no STF
Ano |
Processos Protocolados |
Processos Distribuídos |
Julgamentos |
Acórdãos Publicados |
1980 |
9.555 |
9.308 |
9.007 |
3.366 |
1990 |
18.564 |
16.226 |
16.449 |
1.067 |
2000 |
105.307 |
90.839 |
86.138 |
10.770 |
2006 |
127.535 |
116.216 |
110.284 |
11.421 |
2007 |
119.324 |
112.938 |
159.522 |
22.257 |
2008 |
100.781 |
66.873 |
130.747 |
19.377 |
2009 |
84.369 |
42.729 |
95.524 |
17.704 |
2010 |
71.670 |
41.014 |
103.869 |
10.814 |
2011 |
64.018 |
38.019 |
97.380 |
14.105 |
2012 |
72.148 |
46.392 |
87.784 |
11.794 |
Fonte: Supremo Tribunal Federal, 2014 [24]