19- Um retrato do Poder Judiciário
A morosidade da prestação jurisdicional é uma dificuldade cuja busca de soluções está ao alcance do Judiciário, por meio do enfrentamento dos problemas por seus integrantes. O futuro desejado para a prestação jurisdicional, como sinônimo de eficiência e eficácia demanda que aqueles que fazem parte do Judiciário, especialmente os juízes, assumam que é possível, e se comprometam com o dever de enfrentar o problema.
Os procedimentos de mudança e a necessidade da procura incessante de adaptações diante deles, são indispensáveis. Para se chegar ao êxito, a busca por novos saberes e ferramentas capazes de assegurar esta adaptação, com ênfase nos recursos intelectuais da própria instituição e nas práticas e iniciativas inovadoras, parece ser saída mais plausível.
Verifica-se uma constante intenção de se atribuir a morosidade do judiciário a fatores externos, como a falta de infraestrutura e tecnologia. Tais fatores são de grande importância, porém, tal concepção afasta a responsabilidade dos recursos humanos, que na verdade, são os grandes responsáveis pela otimização da estrutura que é oferecida.
Os resultados supracitadas pesquisas realizadas pelo IDESP, juntamente com a manifestação da opinião de alguns membros do Poder Judiciário, normalmente ligados à administração do mesmo, possibilitam a identificação dessa posição. De forma muito evidente, demonstram tal posicionamento por meio da constatação de que há necessidade de mais recursos financeiros e alterações na legislação processual, como ações apropriadas para assegurar a solução para a morosidade da prestação jurisdicional.
Uma vez que é papel do Judiciário a proposição, por exemplo, de projeto de lei para a criação de novas unidades e seus respectivos cargos, bem como o planejamento adequado dos espaços físicos e da estrutura de informática, estas providências têm vinculação mais acentuada com a necessidade de planejamento do que com a questão da eventual carência de recursos. É preciso que, antes de tudo, se compreenda a razão dos gastos, a necessidade efetiva do acréscimo de valores, sempre com base no estudo e planejamento das ações[47].
Logo, primeiramente deve-se verificar se há organização e planejamento na busca de melhorias e soluções por outro meio que não seja o acréscimo de pessoal ou o investimento financeiro em tecnologia, antes de se atribuir a culpa da morosidade a esses fatores. Se não existe tal organização, a ausência de recursos financeiros e tecnológicos é uma causa secundária, simplesmente.
Além das informações já mencionadas, Maria Tereza Sadek foi sagaz ao dizer que:
Como pode ser observado, do ponto de vista da maior parte dos juízes, os obstáculos ao funcionamento adequado do Judiciário localizam-se sobretudo em fatores externos à magistratura; são problemas sobre os quais é baixo o grau de controle ou de responsabilidade dos juízes.[48]
Helena Delgado Moreira, no mesmo entendimento, assevera que:
Observa-se, dessa feita, uma já identificada tendência a visualizar causas externas do próprio Judiciário dentre os fatores ou causas da morosidade, que encontra contrapartida na indicação de soluções cuja responsabilidade igualmente situa-se fora da esfera de competência daquele Poder: primeiramente no âmbito do Executivo, quando à parte orçamentária, e, secundariamente, no do Legislativo, quanto às necessárias reformulações de ordem legal e constitucional[49].
Quanto a questão da legislação processual, muitas vezes apontada como a maior responsável pela lentidão da justiça, há autores que defendem que a sua modificação não seria capaz de isoladamente gerar a diminuição da morosidade.
Nesse sentido, Rogério Correia Dias afirma que:
A crença, porém, de que caberia aos defeitos da legislação processual a maior responsabilidade pela duração excessiva dos pleitos é equívoca, no entanto, na medida em que assentada na concepção de que a culpa [...] seja da norma e que, com a sua alteração, corrigir-se-iam os graves problemas que afetam a prestação jurisdicional. A norma, todavia, conquanto não seja impotente, também não é onipotente[50].
No mesmo sentido, sob o prisma de que a melhoria da lentidão depende de recursos financeiros, com o aumento do número de órgãos judiciais e maior investimento tecnológico, Egas Dirceu Moniz de Aragão diz que “lucraria a distribuição de justiça se os responsáveis adotassem técnicas modernas de administração de pessoal, com metas a serem cumpridas”[51].
E ainda:
(...) não parece razoável subordinar a minoração do problema sob enfoque a grandes alterações de ordem normativa ou ainda ao aporte, pelas instâncias competentes, dos recursos financeiros necessários à modernização da estrutura judiciária nacional. Entende-se, pois, bem mais próximo da realidade a reflexão, livre de amarras do pensamento cartesiano, da forma como seria possível – porque o é – melhorar a administração da justiça do país com os recursos disponíveis, ou seja, dentro do arcabouço político-institucional e da ordem jurídica positiva e com as limitações orçamentárias e humanas (do ponto de vista quantitativo) próprias da conjuntura nacional. Mas se há vontade de mudar, é importante que a mudança – que não depende, em absoluto, de novas leis ou de recursos financeiros – possa começar pelo comportamento dos juristas em geral e de quem administra justiça em particular. A mudança que se propõe é mais do que institucional: alcança as estruturas do pensamento judicial, moldadas para sua adaptação a um modelo de magistratura tipicamente tecno-burocrático, em que transparece certo desestímulo à criatividade, à ousadia e ao arrojo (...)[52].
Precisa-se se admitir, dentro da própria instituição, que muitos dos motivos da morosidade estão no âmbito do próprio Poder Judiciário. Deve-se aceitar, ainda, que as soluções, da mesma maneira, precisam ser encontradas soluções com ações internas, devendo ser priorizadas aquelas que tenham menor custo e possibilitem resultados rápidos.
Para que surjam as soluções, a partir dos motivos apontados para o problema, é indispensável que, primeiramente, haja uma mudança de mentalidade, mencionada por Dalmo Dallari como sendo “a primeira grande reforma que deve ocorrer no Judiciário.”[53]
Ainda no mesmo entendimento, Helena Delgado Moreira diz que as mudanças devem vir do próprio Judiciário, começando com o reconhecimento de sua responsabilidade em relação aos defeitos do sistema e a quebra dos respectivos paradigmas.
Diz a autora:
(...) se é fato que a reforma não se pode limitar apenas a reformulações estanques do aparelho judiciário, parece evidente, por igual, que a questão não se resume apenas à introdução de inovações em leis, códigos ou na própria Constituição, na medida em que não se pode negar a existência de um campo reservado a urgentes renovações procedimentais e organizacionais, passíveis de serem implantadas dentro do sistema e cuja iniciativa não pertence a ninguém mais do que aos próprios membros do Judiciário. (...) A negação, pela magistratura, de sua margem própria de responsabilidade em um quadro de prestação deficitária de serviços, acaba evidenciando, assim, uma forte diretriz da reforma que os tempos atuais impõem: não uma assistemática reformulação de normas legais ou constitucionais, como a que vem sendo feita ao longo de uma década, mas antes uma reforma de ideias, uma reforma de posições, uma reforma de paradigmas[54].
É a mudança da cultura e da mentalidade é a primeira ação para a solução da morosidade da prestação jurisdicional. São as iniciativas do próprio Judiciário que produzirão a grande alteração no enfrentamento dos seus problemas mais evidentes, especialmente o problema foco do trabalho que é a morosidade.
Assim, é imperioso que a magistratura reconheça sua parte de responsabilidade sobre a morosidade para que possa providenciar soluções, ao invés de imputar somente a fatores externos a culpa pela lentidão da prestação jurisdicional.
O autor Vicente da Paula Ataíde Júnior destaca a importância de uma nova consciência e a criatividade como fator importante:
Não obstante, a responsabilidade do Poder Judiciário pela morosidade na entrega da prestação jurisdicional não pode deixar de ser considerada. Nesse aspecto, torna-se relevante observar que muitos avanços não dependem de reformas legais ou constitucionais, mais da implantação de sistemas de gerenciamento judiciário, em todos os seus setores de funcionamento. Gerir o Judiciário em bases de otimização dos seus serviços é iniciativa das respectivas cúpulas, mas que deve comprometer todas as suas estruturas. [...] Não se trata de transformar o Poder Judiciário em uma grande empresa, mas adotar as experiências positivas que a atividade empresarial pode fornecer para ampliar a qualidade dos serviços prestados pelo poder. Esse gerenciamento merece uma atenção específica e deve resultar de um estudo das necessidades que o poder tem e das dificuldades que ele enfrenta. Significa que em primeiro lugar, as cúpulas diretivas dos tribunais devem ter consciência dessa necessidade. Não se pode mais governar o Judiciário como se ele não envolvesse administração pública. A criatividade do administrador judiciário é o que fará a diferença. As suas iniciativas, bem analisadas e baseadas em dados da realidade, serão fundamentais para construção de um novo judiciário, que não dependa tanto da iniciativa dos outros poderes[55].
É necessária a atuação vinculada do juiz-administrador ao juiz-jurista, do juiz-cidadão e do juiz-moral, como diz Ruy Rosado de Aguiar Júnior:
O mundo contemporâneo necessita do juiz-jurista (o técnico com boa formação profissional, capaz de resolver a causa com propriedade e adequação), o juiz-cidadão (com percepção do mundo que o circunda, de onde veio a causa que vai julgar e para onde retornarão os efeitos de sua decisão), o juiz-moral (com a idéia de que a preservação dos valores éticos é indispensável para a legitimidade de sua ação), do juiz-administrador (que deve dar efetividade aos procedimentos em que está envolvido, com supervisão escalonada sobre os assuntos da sua vara, do foro, do tribunal, dos serviços judiciários como um todo)[56].
Assim, é muito possível que se aplique toda esta mudança rapidamente, desde que os Magistrados e servidores do Judiciário se conscientizem de sua função fundamental de agirem como precursores da mudança, sem esperar que fatores externos tragam a mudança consigo .
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do que foi apresentado, percebe-se que a legislação processual, a falta de estrutura e organização institucional e o planejamento de ações, as carências orçamentárias e a necessidade de transformar os juízes em gestores de suas unidades e seus tribunais, são entendidos como causas da morosidade da prestação jurisdicional no Brasil. Cada qual, na medida de sua intensidade, sem dúvida, contribui para o problema. Pode-se dizer que uma das grandes causas da vagarosidade da justiça é a ampliação do número de processos, que são consequência do fato de que quanto mais se aguça a cidadania, mais as pessoas procuram os tribunais.
Percebe-se que o Poder Judiciário no Brasil deixou de ser órgão de exceção, passando a ser utilizado como primeira e única instância de mediação e solução de conflitos entre o cidadão e o poder público, evidenciando a crescente judicialização das relações sociais.
Todos os mecanismos criados pela própria Constituição da República, bem como as reformas empreendidas no sentido de simplificar as leis processuais e buscar a eficiência e eficácia da prestação jurisdicional e, ainda, projetos disseminados a incentivar a conciliação, não surtiram e não surtirão os efeitos desejados. Para aqueles que acreditavam que as reformas seriam a única solução, é um exemplo claro que a criação dos Juizados Especiais, hoje uma realidade em todo o país, não conseguiu resolver e muito menos acelerar a prestação jurisdicional.
A presença constante e maciça do próprio poder público como litigante, omisso no cumprimento de suas obrigações e desestruturado para tratar dessas questões sem a intervenção do Judiciário, mesmo que relevante o seu papel no processo democrático a partir da Constituição de 1988, acaba por sufocar as boas iniciativas e perpetuar o problema da morosidade. A demanda gerada desnecessariamente, frustrando as legítimas expectativas dos cidadãos, contribui seriamente para a lentidão da prestação jurisdicional.
A lentidão do sistema judicial, estabelecido o quadro de omissão do poder público no cumprimento de suas obrigações e na garantia de direitos sociais, acaba sendo fomentada ainda por práticas protelatórias. Exemplo que, merece destaque, parte do próprio Estado e acaba fixando a cultura de litigiosidade também entre os particulares, ou seja, a cultura no sentido de que as obrigações somente serão cumpridas por força de decisão judicial e, pior, ao tempo da decisão judicial.
A cultura da litigiosidade, traduzida pela má utilização do Judiciário, em virtude de falhas estruturais e legislativas vem como um meio de retardar o cumprimento de obrigações a partir da convicção de que a resposta será morosa, beneficiando aquele litigante que não tem o direito. Daí a ideia de que a violação da ordem jurídica é um negócio interessante, fomentada a lentidão também com este interesse.
O número excessivo de recursos, a viabilizar quatro graus de jurisdição passíveis de serem percorridos até a solução de controvérsias simples, é um exemplo que merece atenção. Com ele, se estabelece a consequente desvalorização do juízo de primeiro grau, apesar de ser aquele que tem contato direto com a realidade das partes e condições de solucionar grande parte das causas.
Todas essas circunstâncias, seja a judicialização das políticas e obrigações públicas, seja a utilização da máquina judiciária e sua lentidão como meio de retardar o cumprimento de obrigações de forma generalizada no país, bem demonstram que a morosidade não tem apenas causas conjunturais ou processuais.
Depreende-se ainda do estudo, que o aspecto cultural é o principal problema que acarreta a morosidade no judiciário. O Brasil possui número suficiente de juízes para promover respostas às demandas propostas perante o judiciário. Porém, falta gestão estratégica e otimização do tempo, logo, prolonga-se demasiadamente as relações processuais com objetivos outros que não de obter justiça.
Assim, pode-se dizer que a morosidade processual no Brasil decorre de uma somatória de problemas, porém, todas essas dificuldades são oriundas da falta de planejamento e de uma gestão adequada primeiramente por parte do governo, e, principalmente, pelas próprias pessoas que compõem o corpo do judiciário.
A celeridade deve ser buscada pelas pessoas que compõe o judiciário e pelas partes que o suscitam, cada um contribuindo à medida de sua responsabilidade, que é definida pela lei. O tempo ideal para a solução de um litígio é aquele que traga a pacificação social. Sendo este um termo muito subjetivo, pode-se dizer que um processo é célere quando respeita os prazos processuais, sem extrapolá-los. Nos casos em que se torna impossível o cumprimento dos prazos estabelecidos em lei para os atos imprescindíveis ao deslinde do processo, é necessário que se atente ao caso concreto, às particularidades de cada demanda, estabelecendo prioridades àquelas que não podem esperar muito tempo, como as que tratam de interesses de idosos, crianças, questões alimentares, e ainda que envolvam direitos fundamentais.
Os juízes, servidores e a população não podem se conformar com a situação que se apresenta, e simplesmente deixar que o ritmo das atividades e do sistema persista do mesmo jeito. Assim, o problema não é do judiciário, e sim, “das pessoas que compõe o judiciário”, necessitando então que haja uma reforma na maneira de agir desses indivíduos. Uma postura ativa, que busque melhorias certamente vai ocasionar uma revolução dentro do judiciário brasileiro, de tal maneira que o pesadelo da morosidade que não traz pacificação social passe a fazer parte do passado do país.