3 A IMUNIDADE DO LIVRO ELETRÔNICO: GARANTIA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DO ACESSO AO CONHECIMENTO
Nesta altura do estudo, depois de considerada a imunidade dos livros, jornais e periódicos, na forma do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal, é necessário demonstrar a função desempenhada por essa regra constitucional que é a garantia da liberdade de expressão e do acesso ao conhecimento.
Através dessas considerações, ao final, será possível demonstrar que os livros eletrônicos também devem ser imunes, exatamente por cumprirem a mesma função querida pela Constituição.
3.1 O aspecto da liberdade de expressão
Trata-se a liberdade de expressão de concepção característica do pensamento liberalista que remonta ao século XVIII e às obras de Montesquieu e Voltaire, quando se perseguia a defesa e a valorização das liberdades individuais em face da onipotência do Estado.
Este direito fundamental, desde a sua origem até a suas facetas atuais, foi definido com o fim de garantir a liberdade de exteriorização de atividades diversas que perpassam o campo do pensamento, da opinião, enfim, de uma informação.
É de ver-se, nada obstante, que a liberdade de expressão não se confunde com a liberdade de opinião, pois esta é fonte primária daquela e significa a faculdade de adotar uma posição de qualquer ordem.
Este é o enfoque que o consagrado mestre José Afonso da Silva[30] concede à liberdade de expressão:
De certo modo esta resume a própria liberdade de pensamento em suas várias formas de expressão. Por isso é que a doutrina a chama de liberdade primária e ponto de partida das outras. Trata-se da liberdade de o indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha: quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se crê verdadeiro. [...] Como aspecto externo, a liberdade de opinião se exterioriza pelo exercício das liberdades de comunicação, de religião, de expressão intelectual, artística, científica e cultural e de transmissão e recepção do conhecimento[...]
Neste particular, é necessário fixar que a liberdade de expressão pressupõe a possibilidade de exteriorizar o conteúdo do que José Afonso da Silva conceitua como liberdade de opinião, na proporção em que se permite a divulgação dessa posição que – querendo ou não – é informativa.
Aliás, a liberdade de expressão é conceito característico do Estado Democrático de Direito, certo que os modelos ditatoriais têm real aversão à pluralidade de pensamentos que fomenta a discussão intelectual e autoriza o acesso ao conhecimento.
No Brasil, a liberdade de expressão é direito fundamental que ganhou nota de primeira geração, com ampla previsão constitucional no 5º, incs. IV e IX, art. 206, inc. II, art. 215 e art. 220, todos da Constituição Federal de 1988. E esta liberdade é gênero que traz consigo inúmeras espécies como a de manifestação do pensamento, a de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o conhecimento, de expressão cultural e de informação.
É desta forma ampla que os constitucionalistas Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco[31] colocam o conteúdo da liberdade de expressão como um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais:
A liberdade de expressão é um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os tempos.[...] Incluem-se na liberdade de expressão faculdades diversas, como a de comunicação de pensamentos, de ideias, de informações, e de expressões não verbais (comportamentais, musicais, por imagem etc.). O grau de proteção que cada uma dessas formas de se exprimir recebe costuma variar, mas, de alguma forma, todas elas estão amparadas pela Lei Maior.
O mesmo grau de generalidade da liberdade de expressão também é realçado por André Ramos Tavares[32], ao dizer que o acesso à informação é direito conexo àquela:
Em síntese, depreende-se que a liberdade de expressão é direito genérico que finda por abarcar um sem-número de formas e direitos conexos e que não pode ser restringido a um singelo externar sensações ou intuições, com a ausência da elementar atividade intelectual, na medida em que a compreende. Dentre os direitos conexos presentes no gênero liberdade de expressão podem ser mencionados, aqui, os seguintes: liberdade de manifestação do pensamento; de comunicação; de informação; de acesso à informação; de opinião; de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão.
Ainda quando se considera o conteúdo da liberdade de expressão, tem-se que salientar que existem duas dimensões da referida liberdade: a substantiva e a instrumental.
A dimensão substantiva assemelha-se ao que José Afonso da Silva coloca como liberdade de opinião, mas não se encerra nela. Isso porque essa dimensão compreende concomitantemente a atividade de pensar e formar opinião própria e, também, exteriorizar essa ideia.
Note-se que esse ideário de essencialidade apresenta dupla faceta: a primeira – mais óbvia – sobressai no sujeito livre para expressar uma formação opinativa própria; a segunda, não menos importante, está trilhada no livre acesso aos diversos conhecimentos existentes, sejam opinativos, científicos, culturais etc. Enfim, a dimensão substantiva prioriza o direito à educação como sua razão.
Essa ênfase também encontra ressonância no magistério de André Ramos Tavares[33] ao tratar das dimensões da liberdade de expressão:
A liberdade de expressão exige conhecimento, pois, do contrário, não será muito o que se poderá pensar. É liberdade, portanto, que caminha juntamente com o direito à educação. Assim, a liberdade de expressão alcança a possibilidade de adquirir ou de ter acesso aos jornais, periódicos, livros, ao noticiário da imprensa, seja pelo rádio, seja pela televisão, e à educação em geral.
Na dimensão instrumental, o que revela é efetivamente a liberdade de escolha do meio – instrumento – que servirá de suporte material à exteriorização da informação. Nesta diretriz, o que se requer é a amplitude de meios físicos que possibilitem a concretização da liberdade de expressão, considerando o que é adequado ao tipo de comunicação que se pretende estabelecer.
Após visto o conteúdo, é preciso destacar que o exercício dessas liberdades – timbradas com maior força na liberdade de expressão – pressupõe uma inação do Estado que permita o agir do indivíduo na consecução dos seus direitos. Essa é a razão porque a liberdade de expressão não depende de algum ato estatal, mas tão somente da sua omissão em se interferir na vontade individual.
Logo, a liberdade de expressão quer significar mesmo a faculdade de expor, divulgar livremente um pensamento, uma opinião, uma manifestação acerca de fatos, quaisquer que sejam estes (científicos, artísticos, culturais, cotidianos etc.), o que não pode ser obstado por restrições interpretativas.
3.2 O paralelo entre a liberdade de expressão e a imunidade tributária do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal
Colocado, então, o conteúdo da liberdade de expressão, é imprescindível fazer aqui o paralelo necessário que a garantia da liberdade de expressão terá pelo viés da tributação. Veja-se, por oportuno, que a tributação é – ao fim e ao cabo – manifestação do exercício do poder estatal sobre os seus administrados.
Ora, enquanto poder exclusivo do Estado, a tributação poderia, como pode, servir de embaraço à liberdade de expressão – ainda que indireto, como querem alguns – pela simples possibilidade de onerar gravosamente a exteriorização de um determinado pensamento.
Essa sutileza é demonstrada pelo mestre pernambucano José Souto Maior Borges[34] ao defender a imunidade tributária dos livros eletrônicos:
A manipulação do tributo poderá envolver atentados à livre manifestação do pensamento; valor que a CF 88 buscou preservar. Ora, o vertiginoso desenvolvimento tecnológico moderno, particularmente no campo da informática (e contra o qual nós nada podemos) vem provocando o fenômeno da substituição do livro (ou pelo menos de coexistência) por disquetes, CDs etc., que exploram funções tradicionalmente a ele reservadas. [...] Estarão eles fora do campo de aplicação do art. 150, VI, d? A resposta é negativa. [...] Impedir a aplicação do art. 150, VI, d, aos produtos de informática é condená-los a uma esclerose precoce – dado que tudo leva à conclusão de que ele deveria aplicar-se também aos produtos novos, que coexistem com o livro e demanda o mesmo tratamento tributário.
A manipulação do tributo – mencionada por Souto Maior Borges – em atentado à liberdade de expressão é o que calharia ser denominado de censura tributária ou censura onerosa.
Poderia ser adotada essa nomenclatura em virtude da atividade do Estado de tolher a liberdade de expressão do indivíduo através do recolhimento de tributos, ou seja, invadiria o patrimônio particular como forma de desestimular a expressão do pensamento. Tal hipótese constitui verdadeiro atentado contra o Estado Democrático de Direito.
Isso porque a tributação porventura existente nos veículos de informação pode minar mesmo a liberdade de expressão, neste ou naquele veículo, impedindo a exteriorização, publicação e divulgação de conhecimentos diversos.
Ainda neste aspecto, poder-se-ia considerar situação pior em que o Estado – através da tributação – não só vulnerasse a liberdade de expressão, mas também direcionasse os vários meios de informação a um interesse específico.
Ou seja, o tributo estaria sendo utilizado para canalizar uma linha de comunicação voltada exclusivamente à orientação estatal, o que é típico de governos autoritários e ditatoriais, a exemplo do que ocorre na Coreia do Norte e na Venezuela.
Tal enfoque é dado por Hugo de Brito Machado e Hugo de Brito Machado Segundo[35] quando colocam a imunidade tributária estudada como garantia da liberdade de expressão:
Analisando especificamente a imunidade positivada no art. 150, VI, d, da CF/88, verificando ser ela garantia às liberdades de pensamento e de expressão, por ser o livro um veículo de divulgação de ideias, da livre manifestação do pensamento. Aliás, no caso dos livros, jornais e periódicos, o tributo poderia ainda ser utilizado não propriamente para destruir, mas para dirigir as atividades dos contribuintes, estimulando-as em alguns casos, e desestimulando-as em outros, o que seria muito pior. A finalidade da imunidade em questão, por isso mesmo, não é, como ingenuamente se pode imaginar, apenas para baratear tais objetos, estimulando a educação e a cultura, mas sim o de excluir o tributo como instrumento de dominação estatal sobre as atividades relacionadas a tais meios de transmissão do pensamento, tão valiosos à preservação da democracia. [...] E, no caso em que se cuida, a imunidade tributária concedida aos livros, jornais e periódicos representa proteção à democracia, como decorrência do exercício das liberdades de pensamento e de expressão, porquanto proíbe o uso do tributo como instrumento oblíquo de censura a esses veículos de propagação de ideias.
Note-se que essas hipóteses de agressão à liberdade de expressão são justamente permitidas quando se propõe uma interpretação restritiva da imunidade tributária encartada no art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição da República, não autorizando a exoneração tributária dos livros eletrônicos.
E isso ocorre porque essa restrição da imunidade aos livros impressos obsta o exercício da liberdade de expressão na sua feição moderna – consubstanciada em meios eletrônicos, até mesmo na sua dimensão instrumental, já que o indivíduo estaria jungido a escolher por meios físicos convencionais.
Inclusive, não é demais salientar que as recentes manifestações populares - que marcaram a história “pós diretas já” do Brasil – tomaram corpo exclusivamente através de meios eletrônicos, a exemplo das redes sociais e dos blogs. O momento atual da sociedade impõe respeito ao poder de comunicação e à rapidez inerentes aos meios eletrônicos.
Ora, como enfrentado no tópico precedente, a liberdade de expressão – ao ser examinada pela dimensão instrumental – deve garantir a livre escolha do meio material mais adequado à divulgação do conhecimento. Veja-se, então, que a liberdade de expressão não permite excluir qualquer meio que a concretize, o que ousa acontecer com os livros eletrônicos.
Por consequente, se a imunidade em exame é ferramenta de garantia da liberdade de expressão, não se pode excluir qualquer meio que sirva de canal ao exercício daquela, razão porque o mesmo raciocínio tem que ser observado na tributação sobre os livros eletrônicos.
3.3 A facilitação do acesso ao conhecimento (científico, popular e cultural)
Certamente a inovação tecnológica que permitiu a criação dos livros eletrônicos em suportes distintos dos convencionais não chegou a cabo com o único objetivo de substituir o papel e a forma impressa. Pelo contrário, pode-se afirmar que o papel e o livro impresso que se conhece terão sempre lugar de destaque na existência humana; enfim, eles têm um futuro necessário.
Na verdade, a justificativa das mudanças verificadas nos hábitos de leitura e de comunicação encontram razões maiores, principalmente a facilidade que este universo eletrônico proporciona aos seus usuários e adeptos.
É que o meio eletrônico permite o acesso ao conhecimento de forma mais fácil em diferentes aspectos. Um deles se coloca na portabilidade da informação. Sim, porque a informação não fica circunscrita ao suporte material do livro impresso que – por vezes – está inacessível à ampla população, isolado em alguma biblioteca, pública ou privada.
No sentido inverso, o meio eletrônico não se limita a eternizar o conhecimento, mas também o universaliza ao permitir o amplo acesso a qualquer tipo de informação que se queira veicular, seja ela científica, popular, cultura etc.
O amplo acesso que se cogita com o meio eletrônico – diferente da forma impressa - rompe até mesmo as barreiras geográficas nacionais e internacionais, de forma rápida e menos custosa, uma vez que se tornam desnecessários custos logísticos como a distribuição e o armazenamento.
A única necessidade, para tanto, é a conectividade com o meio eletrônico, o que atualmente é disponibilizado em todas as bibliotecas existentes, porquanto estas não mais subsistem sem um mínimo de conexão com a rede mundial de computadores (internet).
Por oportuno, tem-se que afirmar que as facilidades do meio eletrônico são apontadas pelos estudiosos da linguagem, como se pode aferir das palavras de Eliane Arbusti Fachinetto[36]:
O admirável mundo novo da Internet facilita muito a pesquisa. A comunicação sem distância geográfica entre pessoas, a consulta a milhares de livros no mundo todo e a qualquer hora, a rapidez e a facilidade de acesso, a economia de tempo e dinheiro, as possíveis negociações de valores, estão entre suas grandes vantagens. E os dados revelam que a tendência é aumentar o número de usuários da Web e o tempo que permanecem conectados.
De fato, no atual estado em que se encontram as formas de divulgação e compartilhamento de informação, a distância entre a ignorância e o conhecimento é um simples toque que viabilize a abertura de um amplíssimo leque de informações que hoje encontram publicidade preferencial nos meios eletrônicos.
Sobressai, inclusive, a iteratividade permitida por novas maneiras de escrita e leitura onde a aquisição de conhecimento é uma atividade constante e plural, já que as fontes informativas estão mais disponíveis a seus consumidores intelectuais.
Sem dúvida alguma, o meio eletrônico – nos quais se inserem os livros, jornais e periódicos eletrônicos – facilita sobremaneira o acesso ao conhecimento, seja ele de que espécie for, principalmente por causa da rapidez na troca de informações e da disponibilidade mundial de diversos conteúdos.
Note-se que é justamente por causa dessa facilidade de comunicação e veiculação de ideias que atualmente é possível acessar um artigo científico da Harvard University (Universidade de Harvard/EUA) de qualquer lugar do mundo no qual se tenha acesso à rede mundial de computadores (internet). Ou ainda, o intercâmbio de informações acadêmicas entre universidades do nordeste e do sul do Brasil.
A moderna residência do conhecimento não mais está materializada em bibliotecas e espaços físicos, mas sim no universo democrático do mundo eletrônico onde já se poderia falar da existência de uma biblioteca mundial.
Novamente, é Eliane Arbusti Fachinetto[37] quem considera essa vantajosa mudança provocada pelos meios eletrônicos:
[...] a WWW é a grande mãe de todos os hipertextos, uma biblioteca mundial onde podemos ou poderemos, em breve, pegar todos os livros que quisermos. A digitalização de acervos de todo o mundo é um dos exemplos da democratização do acesso à informação. Na internet, são inúmeros os sites que disponibilizam textos on-line. Milhares de livros, entre eles os das bibliotecas Nacional da França e do Congresso dos Estados Unidos estão disponíveis para a leitura em tela.
Concretamente, pode-se perceber tal fenômeno da biblioteca mundial no sítio eletrônico da Library of Congress[38] (Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos) que traz informações sobre coleções e serviços digitais:
A Biblioteca do Congresso fez versões digitais de coleções disponíveis na rede de computadores desde 1994, focando essa atividade nas coleções mais raras e inacessíveis. Os serviços disponíveis são o caminho para um precioso crescimento de fotografias, manuscritos, mapas, gravações de áudio, filmes e livros digitalizados, bem como materiais digitais como sites. Além disso, a Biblioteca mantém e fornece o uso dos padrões da biblioteca digital e oferece serviços de busca e consulta online. [Tradução livre nossa][39]
Razões como estas levam a crer que “a informação é o único bem realmente globalizado”, conforme a inarredável conclusão de Eliane Arbusti Fachinetto[40].
Aliás, o fenômeno da digitalização do conteúdo do conhecimento não acontece só nos países mais desenvolvidos, pois o Brasil já aponta sinais de estar totalmente inserido nas novas formas de aquisição de conhecimento.
Aqui no Brasil começa a se massificar o comércio de livros eletrônicos em relação ao mesmo empreendimento para os livros impressos, tanto que não é estranho encontrar lojas especializadas na venda de artigos de suporte eletrônico, o que Roque Antonio Carrazza[41] apresenta como livraria do futuro:
Aliás, já estão se tornando comuns, inclusive no Brasil, as cyberlivrarias (ou megastores), um novo tipo de shopping cultural, em que o livro tradicional, feito de papel, ocupa espaço cada vez mais reduzido. O que nelas se encontra, sempre mais, é o CD-ROM, a fita de vídeo, a fita cassete, o videolaser, o CD etc., fazendo as vezes dos livros tradicionais. Os versados no assunto consideram absolutamente certo que nas livrarias do futuro não haverá mais livros do tipo comum. Estes só serão encontráveis em museus e em lojas de antiguidades.
Apesar das razões concretas para tamanha previsão, a prudência aconselha que não se destine os livros impressos exclusivamente aos museus e às lojas de antiguidades, pois talvez eles sempre tenham lugar no mundo do conhecimento.
Na contramão, o que se deve consolidar é a aceitação de uma nova era de acesso ao conhecimento, não mais limitada aos recursos materiais impressos, porém ligadas a meios que potencializam a divulgação de informações diversas e o acesso ao conhecimento produzido pelas mesmas.
3.4 A ampliação da imunidade do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal, aos livros eletrônicos como garantia de acesso ao conhecimento
Por conjugação de tudo quanto foi aprofundado acima, não se pode fugir do óbvio para pensar que os livros eletrônicos – aqui entendidos também os jornais e os periódicos eletrônicos – não estão resguardados pela imunidade tributária do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal.
Muito pelo contrário, a função proposta por esses novos meios de difusão de ideias e conhecimentos atinge justamente a finalidade ínsita à imunidade tributária estudada, qual seja, garantir a plena liberdade de expressão em todas as suas formas e facilitar tanto a divulgação quanto o acesso ao conhecimento.
Em detrimento de uma interpretação exclusivamente literal, é preciso que o direito siga a dinâmica social, notadamente quando esta traga inovações benéficas e enriquecedoras – como o acesso ao conhecimento através dos meios eletrônicos – adaptando as normas jurídicas às novas realidades.
E a realidade contemporânea é justamente a de superação do meio impresso como forma de divulgar o conhecimento, porquanto os meios eletrônicos propiciam muito mais rapidez, facilidade e acesso ao conhecimento.
Logo, fica evidente que a função teleológica da imunidade do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição da República, não pode ser trancafiada na forma material de um livro, em detrimento de finalidades que foram pensadas pelo Legislador Constituinte no momento de confecção da regra maior, até porque “a palavra livros está empregada no Texto Constitucional não no sentido restrito de folhas impressas[...], mas, sim, no de veículos do pensamento, isto é, de meio de difusão da cultura”, conforme o salienta o consagrado Roque Antonio Carrazza[42].
A ênfase do dispositivo constitucional prefere a finalidade em relação à forma, razão porque não se pode fazer uma interpretação literal para restringir o alcance desta imunidade tributária tão democrática somente aos livros impressos, pois “os elevados objetivos da imunidade veiculada no art. 150, VI, d, da Constituição Federal, seriam frustrados com a tributação do livro eletrônico”, novamente no pensamento de Roque Antonio Carrazza[43].
Deve-se, agora, dar o devido lugar constitucional aos livros eletrônicos, garantindo-lhes a imunidade tributária, na medida em que desempenham a finalidade desenhada na Constituição Federal com vistas a proteger valores tão caros quanto a cultura, a educação e a ampla divulgação de ideias, permitidos pela garantia da liberdade de expressão.
Mais uma vez, é o culto professor Roque Antonio Carraza[44] que assim conclui ao justificar que os livros eletrônicos devem ser exonerados, pois são os fins que justificam a imunidade tributária:
São os fins a que se destinam os livros e equivalentes – e não sua forma – que os tornam imunes a impostos. Livros, na acepção da alínea d, do inc. VI, do art. 150, da CF, são os veículos do pensamento, vale dizer, os que se prestam para difundir ideias, informações, conhecimentos, etc. Pouco importam o suporte material de tais veículos (papel, celuloide, plástico etc.) e a forma de transmissão (caracteres alfabéticos, símbolos musicais, signos Braille, impulsos magnéticos etc.). Esta interpretação, a nosso ver, é a única que atende a ratio constitutionis de salvaguardar a cultura, a liberdade de imprensa, a livre difusão do pensamento e, por extensão, o próprio regime democrático.
Ora, uma vez verificado que os livros impressos e os eletrônicos desempenham a mesma função – divulgar conhecimento – não há qualquer lógica jurídica razoável que justifique a restrição da imunidade tributária ao formato impresso, sob pena de renegar a própria finalidade da norma constitucional.
Desta sorte, é inegável que o livro eletrônico desempenha o papel de meio facilitador de acesso ao conhecimento na atual conjuntura da sociedade moderna e que autoriza a crescente disseminação de informações e ideias variadas, razão porque deve ser consagrada a ampliação da ampliação da imunidade tributária do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal, aos livros eletrônicos.
3.5 Recurso Extraordinário 330.817/RJ: a repercussão geral sobre a imunidade tributária do livro eletrônico
Neste tópico, depois de bastante discutido o tema, importa salientar que o Supremo Tribunal Federal não está alheio à discussão sobre a possível imunidade dos livros eletrônicos, na forma do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal, embora ainda não tenha se pronunciado especificamente sobre a matéria.
Isso porque o pleno da Corte Suprema reconheceu existente a repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 330.817/RJ, que versa, no mérito, exatamente sobre a interpretação extensiva do art. 150, inc. VI, alínea ‘d’, da Constituição da República, para atingir os livros eletrônicos.
Observe-se a ementa da decisão sobre a repercussão geral, de relatoria do Ministro Dias Toffoli[45]:
DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. PRETENDIDA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA A RECAIR SOBRE O LIVRO ELETRÔNICO. NECESSIDADE DE CORRETA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL DE CUIDA DO TEMA (ART. 150, INC. VI, ALÍNEA D). MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DE INTERESSE DE TODA A SOCIEDADE. TEMA COM REPERCURSSÃO GERAL.
Este reconhecimento da repercussão geral quer significar um grande avanço no sentido da consolidação da exegese que estende aos livros eletrônicos a imunidade tributária que é concedida aos livros convencionais, impressos, portanto.
O que se coloca com a repercussão geral é a oportunidade do Supremo Tribunal Federal – na condição de intérprete maior da Constituição Federal – construir um precedente que prestigie a finalidade da imunidade tributária veiculada no art. 150, inc. VI, alínea ‘d, da Lei Maior, consolidando a sua função de garantir a liberdade de expressão e o acesso ao conhecimento, seja através do livro eletrônico, seja do impresso.
Aliás, com base na jurisprudência consolidada na Corte Suprema, o que se espera é justamente o reconhecimento da imunidade tributária aos livros eletrônicos, na medida em que o Supremo Tribunal Federal tem prestigiado a linha teleológica da norma constitucional.
Se prolatada neste sentido, a futura decisão do Supremo Tribunal Federal representará um marco histórico a partir do qual se poderá afirmar que o livro eletrônico – em que pese não banindo o impresso – efetivamente ganhou relevância sócio-jurídica, com especial tratamento fiscal.
Fica, então, a esperança do mundo jurídico de que o Supremo Tribunal Federal possa, enfim, reconhecer a imunidade tributária dos livros eletrônicos, por meio de uma interpretação teleológica do art. 150, inc. VI, alínea d, da Constituição da República.