1. INTRODUÇÃO
O trabalho humano desde muito tem carregado consigo uma carga valorativa negativa, com sentido de penosidade, entretanto, nem sempre foi assim, conforme nos explica Alice Monteiro de Barros (2012, p. 43). Hodiernamente, o trabalho tem significado para as populações como fonte de formação de uma dignidade ímpar, da qual o espírito humano não pode prescindir.
A propósito, Reale (apud FERRARI, 2002, 18) afirma: “Não entendo como se possa dizer que o trabalho não seja criador de valores. Ele já é, por si mesmo, um valor, como uma das formas fundamentais de objetivação do espírito enquanto transformador da realidade física e social [...]”.
Nesse sentido, a humanidade tem buscado no trabalho não apenas a sua fonte de sustento e manutenção, mas também o aperfeiçoamento dos íntimos atributos da pessoa humana, consubstanciados na honra, na dignidade e na formação de uma cultura construtiva do próprio indivíduo, e dos quais decorre toda uma gama de responsabilidades inerentes ao convívio em sociedade.
A legislação ensejadora de direito do trabalhador doméstico foi sendo construída ao longo do tempo, de forma progressiva, mas paulatina, mesmo fruto de uma concepção histórica depreciativa do trabalho no âmbito residencial.
Contudo, recentemente, em 02 de abril de 2013, a Constituição Federal de 1988 sofreu uma paradigmática modificação no que tange a regulamentação das relações de emprego doméstico, que veio a conferir à categoria 16 (dezesseis) novos direitos.
A recém-publicada Emenda Constitucional n.º 72 ganhou grande repercussão econômica e social em nível nacional. Ela representou um significativo avanço legislativo, experimentado até hoje, no sentido de extirpar as injustificáveis discriminações existentes no ordenamento jurídico brasileiro, ensejadora das desigualdades de tratamento entre os empregados domésticos e as demais espécies de empregados urbanos.
Essa distinção no trato desses obreiros deriva de um traço cultural oriundo do período colonial em que os senhores de engenho detinham escravos de sua confiança no interior das Casas Grandes para ocupar-se dos afazeres domésticos (FERRAZ, 2003).
A ideia de que esses serviços eram indignos e, como tal, deveriam ser destinados aos escravos talvez fosse o único fator justificador de o empregado doméstico não dispor dos mesmos direitos que o obreiro urbano comum, a ponto de o legislador o ter excluído, expressamente, da Consolidação das Leis do Trabalho.
A presente pesquisa bibliográfica e documental tem, portanto, por escopo realizar abordagem acerca da evolução da proteção aos empregados domésticos, analisando-se os aspectos inerentes à relação de trabalho e emprego, apresentando o exame, propriamente dito, do empregado doméstico, para, então, observar as recentes ampliações de direitos.
Neste passo, no primeiro tópico faz-se uma abordagem história acerca da criação da figura do empregado doméstico, evidenciando o vínculo da desvalorização desses serviços com a escravidão.
No segundo tópico promove-se um estudo acerca da relação jurídica objeto do Direito do Trabalho e as características da relação de emprego doméstico e os sujeitos do contrato de trabalho.
Por fim, no último tópico, reflete-se acerca da proteção legal ao empregado doméstico, observando-se as recentes alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 72, com enfoque nas possíveis consequências carreadas no âmbito da formulação dos contratos de trabalho.
2. A FORMAÇÃO HISTÓRICA DA FIGURA DO EMPREGADO DOMÉSTICO
É notório que o trabalho doméstico sofre com um desprestígio exacerbado. Visando compreender os reais motivos que influenciam para a desvaloração de uma das relações jurídicas mais antigas da humanidade, é que se passa a pontuar, nas linhas que seguem, seu vínculo com a escravidão e a possível gênese dessa categoria, além de realizar uma abordagem, ao menos, panorâmica, do tratamento diferenciado de seus direitos em relação aos demais trabalhadores.
2.1 O VÍNCULO COM A ESCRAVIDÃO
A figura do empregado doméstico é uma das mais antigas na história da humanidade, posto que sempre esteve correlacionado com a organização familiar e social (PAMPLONA FILHO; VILLATORE, 2001).
Desde as épocas mais longínquas era tido como um trabalho sem prestígio, exercido por escravos ou servos. Assim, como muito bem observou Ferraz (2003), analisar a escravidão é examinar a própria natureza do serviço doméstico.
Promovendo-se uma rápida digressão histórica, observa-se que na Idade Antiga, esta espécie de serviço era prestado, principalmente, por escravas e crianças.
Em Roma os escravos, capturados durante o período das guerras imperialistas, eram destinados à prática do trabalho manual, incluindo-se, neste âmbito, o trabalho doméstico.
Na Idade Média o sistema escravocrata passou a ser substituído pelo sistema servil de produção. É durante o período do Feudalismo que surgem as figuras dos servus rusticus e os servus ministerialis ou famuli.
Neste novo sistema de produção havia uma nítida divisão de tarefas, onde os rusticus realizavam trabalhos na lavoura e pecuária e aos famuli eram destinadas as tarefas domésticas. Nasce, assim, a familiaira, isto é, a mulher reputada como se fosse da família, e o familiairo, homem na mesma condição de inserção.
O patrão, neste momento histórico, mantinha, pois, o escravo para fazer serviços domésticos, obrigando-se, apenas, a mantê-los com o indispensável para que não morresse.
Há de se destacar, ainda, que o trabalho doméstico era notadamente marcado pela predominância do gênero feminino. Essa predileção das mulheres na realização dos sérvios refletia uma situação desejada pelos senhores, porquanto as mulheres servas conservavam-se na casa, ocupavam-se de todos os trabalhos do lar, nutriam os recém-nascidos e faziam companhia às viúvas (FERRAZ, 2003).
No século XVII, diversas pessoas realizavam tais serviços, tais como aias, despenseiros, amas, amas-de-leite, amassecas, cozinheiros, secretários, criados, damas de companhia (MARTINS, 2008).
No que tange à escravidão dos negros africanos pelos europeus, tem-se seu surgimento creditado à necessidade de exploração das colônias na América, posto que realizado o extermínio dos nativos.
No Brasil, os portugueses tentaram, primeiramente, escravizar os índios, sem, contudo, lograr êxito, seja pela resistência dos jesuítas que se dedicavam a catequização dos índios, seja pela dificuldade de sua captura, ou ainda pela devastação desta raça quando em contato com os vírus trazidos pelo homem branco.
Segundo Ferrari (2002, p. 35), no Brasil, a escravidão existiu “[...] Exatamente porque esta foi a maneira encontrada pelos colonizadores portugueses para o usufruto econômico das terras descobertas. Isso, a partir do século XVI, até o XIX”. Isto porque, “Sociologicamente foi, efetivamente assim, sabendo-se que o trabalho era “coisa” de escravos, os quais, no fundo, pagavam seu sustento com o “suor de seus rostos” (FERRARI, 2002, p. 14).
Nesta perspectiva, impulsionou-se, e implementou-se, a escravização dos negros, propiciado pelo alto lucro proveniente do tráfico de escravos do sistema mercantilista. Sistema este que permaneceria mesmo após a proclamação da independência.
A economia era predominantemente rural, latifundiária e patriarcal, dominada pelos senhores de engenho, que detinham um vasto número de escravos.
O empregado doméstico, no Brasil, advém, segundo Platão de Barros, citado por Ferraz (2003 p. 32),
[...] ao que tudo parece, da aia ou da mucama das senhoras de engenho, visceralmente ungidas aos poderosos da terra, as quais recebiam como paga do dedicado e cansativo labor, morada em um recanto da ‘casa grande’, alimentação e escasso vestuário (BARROS apud FERRAZ, 2003 p. 32).
Vê-se, nesse ínterim, que a história propicia concluir-se que, no âmbito pessoal ou familiar, o empregado doméstico sempre existiu, ainda que cada sociedade possuísse sua manifestação própria.
E mais, o fator histórico, o qual demonstra que o labor realizado no interior da residência era eminentemente desenvolvido por escravos e servos, justifica, por si só, o estigma da categoria.
Ainda hoje, tem-se o pensamento de que o trabalho doméstico é indigno, que representa empecilho à realização de outras atividades, que representa um labor escravizante e que tem pouco a oferecer a quem a ele se dedica.
Inegavelmente, o escravagismo deixou profundas marcas na cultura e na sociedade brasileira. Sente-se, até nos dias atuais, sua influência, não só na questão racial, mas também, no modo como a sociedade brasileira valora o trabalho manual, especialmente o prestado no âmbito residencial.
A evidente desvalorização do labor doméstico, seja por partes dos próprios executores do serviço, seja por aqueles que transferem a realização da atividade a outrem, encontra-se arraigada na escravidão.
2.2 A ABOLIÇÃO COMO FOMENTADORA DA CATEGORIA
Conforme se evidencia, o escravismo foi o atributo essencial do Brasil colônia e imperial, perpassando as heranças de desvalorização e discriminação deste período até a atualidade.
Durante o período monárquico a riqueza do país sustentou-se na utilização da mão de obra escrava e na exploração das terras de lavouras, lavouras estas que se concentravam em mãos dos fazendeiros escravocratas (HOLANDA, apud SOARES, 2010).
O escravo constituía propriedade do senhor que sobre ele exercia direitos, explorando-lhe o esforço físico, beneficiando-se do trabalho desempenhado ou, até mesmo, alugando-o a terceiros, apropriando-se, por óbvio, o dono, do valor auferido por esse aluguel.
Nesse cenário, lhes eram destinados o trabalho doméstico, como de lavadeiras, engomadeiras, pajens, amas, mucamas, cozinheiras, ou seja, todas as funções pertinentes aos serviços no âmbito da residência.
No século XVIII, o cenário mundial começa a experimentar uma mudança de paradigma, iniciam-se os movimentos abolicionistas. No Brasil, entretanto, não ocasionam maiores preocupações.
A questão da igualdade e liberdade, não foi sequer ventilada por ocasião da proclamação da independência, em 1822, que se furtou em considerar os direitos dos escravos, não abrangendo a questão abolicionista naquele momento.
Em 1823, muito embora José Bonifácio de Andrade e Silva tenha apresentado suas ideias à Assembleia Nacional Constituinte de 1823, condenando explicitamente a escravidão, não houve tempo hábil à apreciação do problema posto que D. Pedro I promoveu a dissolução dessa assembleia.
Por via de consequência, a Constituição de 1824, apesar de transcrever quase que integralmente a disposição da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ignorou a situação dos cativos e manteve escravizados os negros no país.
Ora,
[...] a elite brasileira, composta predominantemente por grandes proprietários e por comerciantes envolvidos na economia de exportação- importação, estava interessada em manter as estruturas tradicionais. Escolheram cuidadosamente os aspectos da ideologia liberal que se adequassem à sua realidade e atendessem a seus interesses. Purgando o liberalismo de seus aspectos radicais adotaram um liberalismo conservado que admitia a escravidão (COSTA, 1999, p 358).
Deste modo, optou-se pela contradição proveniente da adoção dos princípios iluministas e a servidão. De um lado encontravam-se os princípios liberais infirmados pelo império, os quais pregavam a escravidão como desrespeito à liberdade, e de outro, tinha-se a não utilização dessas ideias como fundamento para romper-se com a ordem escravagista.
O processo abolicionista no país somente teve seu início em 1831, quando o governo, pressionado pela Inglaterra, que condicionou o reconhecimento da independência e a celebração de tratados comerciais ao fim do tráfico, editou a lei contra o tráfico. No entanto, na prática, a lei tornou-se letra morta, jamais sendo cumprida (CARVALHO, 2003).
Em 1839 a Inglaterra voltou a pressionar o Governo brasileiro, realizando apreensões de navios, provocando a reação da imprensa e da população, os quais passaram a defender o fim do tratado antitráfico.
No ano de 1850, motivado pelas ações inglesas de invasão dos portos brasileiros e consequente apreensão e afundamentos de navios, o Governo conservador aprovou a lei Euzébio de Queiroz, abolindo efetivamente o tráfico e punindo seus agentes.
No país fervilhavam os debates em torno da abolição. Em 1866 D. Pedro II, inspirado nas ideias de Perdigão Malheiro, que em 1863 produziu a obra “Da legitimidade da Propriedade Constituída sobre os Escravos”, e Castro Alves apresentou ao Conselho de estado cinco projetos, dentre os quais se destacava o que versava sobre a libertação dos nascituros (SOARES, 2010).
Levada ao parlamento, o qual promoveu longos e intensos debates, em 1871 a Câmara aprovou a Lei do Ventre Livre.
Em 1879 inicia-se o movimento abolicionista propriamente dito, sendo aprovada, em 1885, a Lei dos Sexagenários, em 1886, a Lei 3.310 que extinguiu a pena de açoite, para, então, em 1888, ser aprovada a Lei Áurea.
Todavia, a abolição da escravatura, na prática, não representou a efetiva libertação dos ex-escravos. Os recém-alforriados preferiam suportar a exploração de seus ex-senhores em troca de sua subsistência e de um local para dormir, entretanto, não mais como escravos, e sim como domésticos (PAMPLONA FILHO; VILLATORE, 2001).
A esta nova categoria de trabalho eram destinados todas as espécies de serviços caseiros, tais com lavar e passar roupas, cozinhar, limpar etc.
Não por acaso, nos dias de hoje, forma essa categoria o(a) cozinheiro(a), governanta, mordomo, babá, lavadeira, faxineiro(a), vigia, motorista particular, jardineiro(a), acompanhante de idosos, copeiro(a) etc.
Depreende-se, pois, como muito bem observou José Alberto Couto Maciel (1978), citado por Ferraz (2003), o empregado doméstico representa um resultado do trabalho escravo da antiguidade, com influências democráticas paternalistas oriundas de uma sociedade marcada com fortes e sérios resquícios escravagistas.
2.3 O LEGADO DA ESCRAVIDÃO E A EXCLUSÃO DOS DOMÉSTICOS DA TUTELA GERAL TRABALHISTA
Conforme se pôde observar, com a Lei Áurea, no ano de 1888, os negros tornaram-se livres, sem, contudo, contar com qualquer preparação para enfrentar a sociedade e conseguir ganhar o seu próprio sustento. Continuaram, deste modo, vinculados às mesmas atividades desempenhadas outrora. Essas atividades, em virtude do ínfimo arcabouço jurídico existente à época, eram regidas pelas regras da locação de serviços.
Até o advento da primeira norma, à nível nacional, regulamentadora da locação dos empregados desses serviços a prestação de tal serviço era regida, inicialmente, pelas Ordenações do reino e, posteriormente, embora de forma genérica pelas disposições do Código Civil de 1.916.
Nesse período, por não se dispor de um diploma pertinente às regras trabalhistas, o corriqueiro era que editassem leis destinadas a regular as diversas situações. Assim em 1890, no estado do Piauí, editou-se o Decreto 23 e em 1923, o Decreto n.º 16.107, disciplinando o trabalho doméstico no Rio de Janeiro.
A consolidação das Leis do Trabalho (CLT) surgiu, assim, com o propósito de reunir, em um só documento, todas as normas trabalhistas esparsas. Ocorre que quando a CLT entrou em vigor em 1943, a abolição da escravatura tinha ocorrido há apenas 55 (cinquenta e cinco) anos.
Por conclusão lógica, muitos dos trabalhadores domésticos existentes naquela época haviam nascido escravos ou eram filhos de escravos, sem esclarecimento, consciência de seus direitos ou representatividade frente às autoridades capaz de ensejar a inclusão da categoria à proteção legal que se inovava. Tornam-se, assim, meros espectadores deste momento histórico.
Por tais motivos o art. 7º da CLT, apesar de defini-los como àqueles “prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas”, excluiu-os, explicitamente, de sua tutela.
O dispositivo legal revela o quanto essa espécie de serviço era desvalorizada na sociedade brasileira.
De outro lado, a própria definição “serviços de natureza não-econômica” foi desenvolvida ao pressuposto de que o empregador (no caso a família) não tem uma finalidade econômica, de geração de lucro, mas também – implicitamente - de que o trabalho doméstico em si não é um trabalho economicamente comparável aos demais (CASAGRANDE, 2008).
A discriminação do legislador, de igual modo, torna-se visível quando, ao analisar-se a definição de empregador, percebe que se equipara, a este, considerado no diploma como ente produtivo, outras entidades que não possuem finalidade econômica, é o caso das “instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores” (BRASIL, 1943, art. 2º, parágrafo segundo).
Ora, o que se vê é que duas figuras, igualmente sem fins lucrativos, possuem tratamento diferenciado no mesmo ato normativo. O que resta, por óbvio, é que o trabalhado doméstico não possuía qualquer valor frente à sociedade da década de quarenta, a ponto de ser intencionalmente esquecido pelo legislador, o que só se explica pelos resquícios da cultura escravagista.
3. TRABALHO DOMÉSTICO: ESTRUTURA DA RELAÇÃO EMPREGATÍCIA E SEUS SUJEITOS
Antes de adentrar na discussão relativa aos direitos conferidos ao empregado doméstico, propriamente dito, é necessário que se faça algumas considerações preliminares acerca das características dessa relação empregatícia, bem como de seus sujeitos.
3.1 ELEMENTOS CONFIGURADORES DA RELAÇÃO DE EMPREGO
Identificar uma relação jurídica é, no campo do Direito, uma questão primordial para verificação das regras aplicáveis ao negócio/contrato firmado.
Maurício Godinho Delgado (2008) elucida que a relação jurídica, a qual engloba seus sujeitos, objeto e o negócio jurídico vinculante das partes, é o vértice em torno do qual se constroem todos os princípios, institutos e regras que caracterizam o universo jurídico.
No âmbito do direito do trabalho, este núcleo encontra-se justamente na relação de emprego, razão pela qual se torna imprescindível, do ponto de vista jurídico, a compreensão de cada um dos elementos caracterizadores deste vínculo.
Quando se aborda a questão da relação de emprego é imperioso ressaltar que esta não se confunde com a relação de trabalho, onde a primeira é espécie da segunda, que, por óbvio, consubstancia-se em gênero.
Tecnicamente, a relação de emprego é apenas uma das modalidades específicas de relação de trabalho juridicamente configuradas. Corresponde a um tipo legal próprio, o qual não se confunde com as demais espécies de relação de trabalho.
Noutra vertente, a relação de trabalho “corresponde a qualquer vínculo jurídico por meio do qual uma pessoa natural executa uma obra ou serviço para outrem mediante pagamento” (SARAIVA, 2008, p. 38).
Nesse ínterim, o magistério de Delgado é de grande valia para identificação da relação de emprego dos contratos de trabalho em geral, ao elucidar que:
[...] a relação empregatícia, enquanto fenômeno sociojurídico, resulta da síntese de um diversificado conjunto de fatores (ou elementos) reunidos em um dado contexto social ou interpessoal. Desse modo, o fenômeno sociojurídico da relação de emprego deriva da conjugação de certos elementos inarredáveis (elementos fático-jurídicos), sem os quais não se configura a mencionada relação (DELGADO, 2008, p. 290).
Esses requisitos caracterizadores do vínculo empregatício encontram-se legalmente previstos nos arts. 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Em se realizando uma leitura desatenta do art. 2º, poder-se-ia afirmar que o dispositivo cuida da conceituação da figura do empregador. Conforme o art. 2º, “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço” (BRASIL, 1943).
Contudo, a análise do dispositivo proporciona a evidenciação de um dos elementos da relação empregatícia, qual seja a pessoalidade.
O art. 3º, por sua vez, traz a definição de empregado, bem como revela os 04 (quatro) outros requisitos necessários à caracterização da relação de emprego.
Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual. (BRASIL, 1943) (grifos nosso)
O estudo sistemático destas duas normas demonstra que o fenômeno sócio jurídico da relação de emprego surge a partir da existência dos seguintes elementos fático-jurídicos: (1) o trabalho não eventual, (2) prestado “intuitu personae” (pessoalidade), (3) por pessoa física, (4) de forma onerosa, e, (5) efetuado com subordinação ao tomador dos serviços.
O primeiro elemento, qual seja, a não-eventualidade, apesar de traduzir etimologicamente a ideia de permanência, continuidade, não é facilmente conceituado. Doutrina e jurisprudência divergem quanto a sua definição. A doutrina apresenta diversas teorias a fim de determinar o real sentido de trabalho não eventual, dentre as quais sobressaem as teorias da descontinuidade, teoria do evento, teoria dos fins do empreendimento e teoria da fixação jurídica.
Segundo a teoria da descontinuidade eventual é o trabalho descontínuo e interrupto em relação ao tomador enfocado. Para ela, um trabalho que se fracione no tempo perde o caráter de fluidez temporal sistemática, dotando-se, portanto, de eventualidade.
Neste aspecto, cumpre destacar que a referida teoria foi, indubitavelmente, rechaçada pela CLT, que preferiu utilizar-se da expressão negativa “serviços de natureza não-eventual” para se referir ao elemento fático- jurídico caracterizador da relação de emprego.
Sob o manto da teoria dos fins do empreendimento, ou da finalidade da empresa, eventual seria aquele trabalhador chamado a realizar uma tarefa não inserida nos fins normais da empresa, tarefas essas que, pelo mesmo motivo, são tidas como esporádicas e de duração exígua.
Já a teoria da fixação jurídica ao tomador dos serviços defende ser eventual o trabalhador “que não se fixa a uma fonte de trabalho, enquanto Empregado é o trabalhador que se fixa numa fonte de trabalho. Eventual não é fixo. Empregado é fixo. A fixação é jurídica”. (NASCIMENTO apud DELGADO, 2008, p. 296).
Dentre tais formulações teóricas nota-se certa prevalência da Teoria dos Fins do Empreendimento, motivo pelo qual é amplamente aceito na doutrina que o trabalho prestado em caráter contínuo, duradouro, permanente, em que o empregado, em regra, se integra aos fins sociais desenvolvidos pela empresa é considerado como não-eventual (SARAIVA, 2008).
No que tange ao segundo elemento, a pessoalidade, Souto Maior (2008) esclarece que sua fixação, enquanto elemento essencial de caracterização da relação de emprego, tem o condão de retirar qualquer dúvida acerca de que o empregado, pessoa física, deve ser um sujeito determinado, não podendo, este, ser substituído. Em outras, “a relação de emprego, no que atine ao obreiro, reveste-se de um caráter de infungibilidade, devendo o laborante executar os serviços pessoalmente” (SARAIVA, 2008, p. 42).
O terceiro elemento, pertinente à prestação do labor por pessoa física não exige maiores considerações, a não ser destacar que o obreiro não pode ser pessoa jurídica, devendo, necessariamente, tratar-se de pessoa natural.
Entende-se por onerosidade, quarto elemento caracterizador da relação empregatícia, o recebimento de uma contraprestação de valor econômico em razão do serviço prestado. Essa contraprestação forma o complexo salarial, constituído de distintas verbas marcadas pela mesma natureza jurídica.
Por fim, a subordinação que, dentre os cinco elementos fático-jurídicos que compõem a relação empregatícia, é o de maior ênfase. Trata-se de elemento principal na diferenciação entre a relação de emprego e as diversas modalidades de trabalho autônomo. Sua origem etimológica traduz a noção de dependência ou obediência em relação a uma hierarquia de posição ou de valores. Demonstra uma ideia básica de submissão ao poder de outrem, às ordens de terceiros, uma posição de dependência. Corresponde, neste diapasão,
[...] ao pólo antitético e combinado do poder de direção existente no contexto da relação de emprego. Consiste, assim, na situação jurídica derivada do contrato de trabalho, pela qual o empregado comprometer-se-ia a acolher o poder de direção empresarial no modo de realização de sua prestação de serviços. (DELGADO, 2008, p.302)
Há de se repisar, no entanto, que não se trata, especificamente, de subordinação econômica, posto que pode o empregado ter uma situação financeira superior ao seu empregador, tampouco de subordinação técnica, visto que o obreiro, por vezes, detém a técnica do trabalho, a qual o empregador não possui. Trata-se, na verdade, de uma subordinação jurídica, a qual se faz em razão da atividade exercida (MAIOR, 2008).
É a reunião destes 05 (cinco) requisitos, diga-se, indispensáveis, que constituem uma relação de emprego, considerada de forma geral.
3.2 SUJEITOS DA RELAÇÃO DE EMPREGO
Tão importante quanto examinar aos elementos caracterizadores da relação de emprego é analisar os sujeitos que compõe esta relação jurídica. Neste aspecto, encontram-se a figura do empregado e do empregador.
Como visto a relação empregatícia e a figura do empregado surgem da combinação dos cinco elementos fático-jurídicos outrora examinados.
Em conformidade com o art. 3º da CLT, empregado é “[...] toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário” (BRASIL, 1943).
Analisando-se o conceito constante no diploma legal pode-se identificar a presença de quatro requisitos caracterizadores da relação de emprego, trabalho prestado por pessoa física, não eventualidade, subordinação e onerosidade. Insta avultar que o quinto elemento que encontra-se previsto no art. 2º, é destinado à definição de empregador.
Neste aspecto, não se deve olvidar a existência de outras relações que, inobstante possuam tais elementos, trazem consigo especificidades capazes de diferenciar as espécies, como é o caso da relação de emprego do trabalhador doméstico.
O empregado doméstico surge, pois, como uma modalidade especial da figura jurídica do empregado, a qual seu tipo legal definidor compõe-se dos mesmos elementos fático-jurídicos do empregado comum, acrescidos, contudo, de certos elementos fático-jurídicos especiais, próprios da relação empregatícia doméstica.
3.2.1 Empregado doméstico
Nos termos do art. 1º da Lei nº. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, empregado doméstico é “aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas” (BRASIL, 1972).
Com base neste dispositivo algumas ponderações são relevantes.
A primeira diz respeito à observação feita por Vilhena (apud FERRAZ, 2003), o qual esclarece que a conceituação promovida pelo legislador fundamenta-se no direito alemão, do qual advém a constrição conceitual entabulada.
A segunda, realizada por Barros (2008), elucida que a norma regulamentadora do trabalho doméstico corrigiu o equívoco contido no art. 7º, alínea “a”, da CLT que, ao conceituar o doméstico, definiu-o como aquele presta serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas.
Segundo a autora “tais serviços possuem fins econômicos, pois têm em mira a satisfação de uma necessidade, embora não tenham propósitos de lucro” BARROS, 2008, p. 187). Deste modo, cinge-se à economia de consumo da comunidade familiar.
Por fim, mas de preeminente importância, Delgado (2008) afirma que essa definição legal de empregado doméstico omite três dos cinco elementos característicos à figura do empregado – pessoalidade, subordinação e onerosidade, desde que se considere englobada na expressão “aquele que presta serviços” a figura da pessoa física.
No entanto, há de ressalvar, como muito bem observou o referido jurista, essa omissão é justificada pelo animus do legislador de destacar em seu texto apenas o elemento genérico objeto de conformação sócio jurídica especial, a continuidade, e os elementos específicos à relação empregatícia. Destarte, seria ilógico exigir que a lei especial repetisse os elementos fático-jurídicos óbvios à caracterizar o empregado, para conceituar o doméstico, posto que se tratam de requisitos intrínsecos à categoria, sem qualquer especificidade frente ao padrão empregatício genérico contido na CLT.
Nessa perspectiva, levando-se em consideração os elementos fático-jurídicos básicos à constituição de uma relação empregatícia, a figura jurídica do empregado doméstico deve ser compreendida como “a pessoa física que presta, com pessoalidade, onerosidade e subordinadamente, serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, em função do âmbito residencial destas” (DELGADO, 2008, p. 365).
Da acepção jurídica supra extrai-se, além dos 05 (cinco) elementos fático-jurídicos inerentes à relação empregatícia ordinária, (pessoa física, onerosidade, subordinação pessoalidade e não-eventualidade), elementos fático-jurídicos específicos à relação empregatícia do doméstico: a finalidade não lucrativa dos serviços, apropriação dos serviços apenas por pessoa física ou por família e a efetuação dos serviços em função do âmbito residencial dos tomadores.
O vínculo empregatício doméstico consubstancia, assim, oito elementos fático-jurídicos, dos quais cinco são considerados genéricos a qualquer relação de emprego, ressaltando-se que dentre estes um possui configuração diferenciada, e três próprio da espécie à relação empregatícia em comento.
3.2.1.1 Elementos fático-jurídicos gerais
A relação empregatícia doméstica, enquanto espécie do gênero relação de emprego, é formada pelos cinco componentes fático-jurídicos já abordados em item supra. Entretanto, o elemento definidor “não-eventualidade”, assume uma configuração jurídica distinta na caracterização da sócio jurídica empregado doméstico, posto que, elegendo o legislador a expressão “natureza contínua”, impôs uma compreensão diversa da adotada no diploma celetista.
Neste passo, 04 (quatro) são os componentes integrantes da definição da figura do empregado doméstico tidos como gerais, não exigindo qualquer colocação específica quanto a sua compreensão, tendo em vista que em nada diferem daqueles verificados na relação empregatícia comum, e 01 (um), também geral, mas de conformação especial.
Os elementos, os quais dispensam qualquer especificidade significativa são: a prestação de serviço por pessoa física, pessoalidade, onerosidade e subordinação.
A prestação de trabalho por pessoa física é uma exigência inerente à própria existência do Direito do trabalho, uma vez que os bens jurídicos tutelados por este ramo direito – vida, saúde, integridade moral, bem-estar, lazer etc. – são, por essência, destinados à pessoa física, não se concebendo que uma pessoa jurídica possa usufruí-los.
A pessoalidade surge como uma obrigação intuitu personae no que diz respeito ao obreiro, com verdadeiro caráter de infungibilidade, não havendo a prerrogativa de o trabalhador fazer-se substituir por outro na prestação dos serviços. Essa exigência ganha ainda mais intensidade no âmbito da relação empregatícia doméstica, na qual se destina maior confiança ao trabalhador, porquanto ser a natureza dos serviços prestados estritamente pessoais e realizados no âmbito familiar.
Evaristo de Moraes Filho (2003, p. 265) aponta que essa característica do trabalho doméstico encontra-se “regulado mais pela amizade e pela benevolência em que o empregado participa diretamente da vida familiar, da hospitalidade do grupo doméstico, no interior do próprio lar, em pleno âmbito residencial”.
Quanto a subordinação instar apenas relembrar que deve-se ser vislumbrada como liame distintivo da relação de emprego e das demais relações de trabalho, necessitando fazer-se presente.
De igual modo, e finalmente, a onerosidade, que denota a reciprocidade existente nas obrigações entre as partes (empregado e empregador), correspondente a uma contraprestação econômico-financeira, consubstanciada nas verbas salariais, ainda que não se verifique o pagamento de parcelas remuneratórias propriamente ditas.
3.2.1.2 Elemento fático-jurídico da não eventualidade
O quinto elemento fático-jurídico da figura sociojurídica em estudo foi infirmado pela lei 8.859/72 com uma conformação jurídica diversa da adotada na Consolidação das Leis do Trabalho.
Acontece que o legislador preferiu não repetir a expressão “serviços de natureza não eventual”, contida no art. 3º, da CLT, para conceituar o empregado doméstico, adotando, para este fim, o termo “continuidade”.
Essa opção legislativa fez surgir uma dicotomia na doutrina acerca da utilização do termo.
A primeira corrente doutrinária, adotada por Octávio Bueno Magano, defende que essa diferença é irrelevante, afirmando ser, os critérios para apreciação do trabalho contínuo, idênticos aos do trabalho não-eventual da CLT, importando, apenas, a necessidade permanente da mão de obra do doméstico, demonstrada através da repetição do trabalho durante todo o contrato (CASSAR, 2012)
Neste panorama, Plá Rodriguez (apud FERRAZ 2003, p. 24), afirma que os serviços podem ser prestados de forma contínua e ininterrupta ou em forma periódica, três vezes por semana, uma vez a cada quinze dias, etc.
Para os defensores desta tese, portanto, seria doméstico tanto o empregado que trabalha de segunda a sexta, durante seis anos para uma família, quanto, àquele que trabalha apenas às segundas-feiras durante seis anos para uma família.
Neste sentido o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da Segunda Região possui firme entendimento jurisprudencial:
DOMÉSTICA - VÍNCULO EMPREGATÍCIO - SERVIÇO DE NATUREZA CONTÍNUA E SERVIÇO DIÁRIO - DISTINÇÃO -Descontinuidade não se confunde com intermitência para os efeitos de incidência da legislação trabalhista. A referência a serviços de natureza contínua, adotada pelo legislador ao esculpir o artigo 1º da lei 5.859 , de 11 de dezembro de 1972, diz respeito à projeção da relação no tempo, ou seja, ao caráter continuado do acordo de vontades (TÁCITO OU EXPRESSO), que lhe confere feição de permanência, em contraponto à ideia de eventualidade, que traz em si acepção oposta, de esporadicidade, do que é fortuito, episódico, ocasional, com manifesta carga de incerteza incompatível com o perfil do vínculo de emprego. Desse modo, enquanto elemento tipificado do contrato de emprego, a continuidade a que alude a legislação que regula o trabalho doméstico não pressupõe ativação diária ou ininterrupta e muito menos afasta a possibilidade que, em se tratando de prestação laboral descontínua (NÃO DIÁRIA), mas sendo contínua a relação, torne-se possível o reconhecimento do liame empregatício. Ademais, a aplicação da pena de confissão à reclamada em audiência, tornou por verdadeiros os fatos articulados na peça inicial, que ademais, foram confirmados pela prova oral, restando patente a existência de vínculo empregatício entre as partes. Recurso da reclamada ao qual se nega provimento. (negritei) (BRASIL, 2013b)
A segunda corrente entende que a distinção foi proposital, porque o conceito de trabalho não eventual previsto no art. 3º da CLT relaciona-se com a atividade empresarial, seus fins e necessidades de funcionamento, enquanto que o empregador doméstico não explora atividade econômica lucrativa. De tal sorte, o trabalho contínuo possuiria relação com o seu conceito, ou seja, vincula-se com o tempo, a repetição com o trabalho sucessivo, seguido, sem interrupção (CASSAR, 2012).
Os ensinamentos de José August Rodrigues Pinto (apud PAMPLONA FILHO e VILLATORE, 2001, p. 22), os quais asseveram que “a continuidade vem a ser a permanência absoluta”, ao passo que a permanência “é a iteratividade ou repetição da prestação do tempo”, coadunam-se, nesse diapasão, com a segunda corrente doutrinária.
Delgado (2008) pondera que:
[...] ao não adotar a expressão celetista consagrada (natureza não-eventual) — que importava no afastamento da teoria da descontinuidade no tocante à caracterização do trabalhador eventual —, elegendo, ao revés, exatamente a expressão rejeitada pela CLT (natureza contínua), a Lei Especial dos Domésticos (5.859/72) fez claramente uma opção doutrinária, firmando o conceito de trabalhador eventual doméstico em conformidade com a teoria da descontinuidade. Essa opção doutrinária não se chocaria com o sistema, não seria com ele incompatível: apenas daria tratamento diferenciado a um elemento fático-jurídico geral, no contexto de uma relação jurídica empregatícia particular [...]. Ou seja: o elemento da não-eventualidade na relação de emprego doméstica deve ser compreendido como efetiva continuidade, por força da ordem jurídica especial regente da categoria. (DELGADO, 2008, p. 369)
Para esse autor, então, configura trabalhador eventual doméstico a diarista que labora em distintas residências, vinculando-se a cada uma delas apenas uma ou duas vezes por semana, quinzena ou mês.
Nesse sentido, vejam como o Tribunal Regional do Trabalho da Décima Quinta Região se posiciona:
VÍNCULO DE EMPREGO - TRABALHADOR DIARISTA - DOMÉSTICO - INTERMITÊNCIA E DESCONTINUIDADE - TRABALHO EM 2 DIAS POR SEMANA - NÃO-CARACTERIZAÇÃO - Se a atividade desenvolvida pela demandante, em prol da reclamada, caracteriza-se pela intermitência e descontinuidade, configura-se a mera prestação autônoma de serviços, sendo impossível o reconhecimento do liame perseguido. O simples fato de se estipular determinados dias da semana, para a realização dos serviços de limpeza de uma residência, em nada altera tal convicção, na medida em que se faz necessário um planejamento de atividades, ainda que em âmbito estritamente familiar. VÍNCULO DE EMPREGO - TRABALHADOR DOMÉSTICO - NÃO-EVENTUALIDADE E NATUREZA CONTÍNUA - DISTINÇÃO DOUTRINÁRIA - Como esclarece com propriedade Mauricio Godinho Delgado, in Curso de direito do trabalho, 4ª edição, São Paulo: LTr, 2005 (págs. 369/370), "... No instante em que a ordem jurídica quis colocar sob regência de algumas normas jus trabalhistas a categoria doméstica (através da Lei nº 5.859, de 1972 ), veio, expressamente, efetuar a distinção omitida no texto celetista anterior - Referindo-se a serviços de natureza contínua. Ora, ao não adotar a expressão celetista consagrada (natureza não-eventual) - Que importava no afastamento da teoria da descontinuidade no tocante à caracterização do trabalhador eventual -, elegendo, ao revés, exatamente a expressão rejeitada pela CLT (natureza contínua), a Lei Especial dos Domésticos (5.859/72) fez claramente uma opção doutrinária, firmando o conceito de trabalhador eventual doméstico em conformidade com a teoria da descontinuidade. Essa opção doutrinária não se chocaria com o sistema, não seria com ele incompatível: apenas daria tratamento diferenciado a um elemento fático-jurídico geral, no contexto de uma relação jurídica empregatícia particular (tratamento diferenciado, aliás, que a ordem jurídica confere ao doméstico em quase tudo: jornada, adicionais legais, FGTS, etc.). Ou seja: o elemento da não-eventualidade na relação de emprego doméstica deve ser compreendido como efetiva continuidade, por força da ordem jurídica especial regente da categoria." Ou seja: no caso presente, de trabalho em 2 dias por semana, não há essa efetiva continuidade, que exige o trabalho durante toda a semana, à exceção do descanso semanal remunerado. VÍNCULO DE EMPREGO - TRABALHADOR DOMÉSTICO - REQUISITO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE NATUREZA CONTÍNUA - ART. 1º DA LEI Nº 5.859/72 - Tratando-se de empregado doméstico, pressuposto fundamental para o reconhecimento do liame empregatício é a continuidade na prestação de serviços (de 2ª a 6ª ou de 2ª a sábado), termo que não se confunde com a permanência ou não-eventualidade do empregado comum, regido pela CLT. (BRASIL, 2011a, p. 453)
Alice Monteiro de Barros (2005), adotando o modelo contido na legislação argentina, defende que o trabalho doméstico deve se dar por mais de quatro dias na semana, por mais de quatro horas por dia, por um período não inferior a um mês para ser considerado como empregado, caso contrário será considerado diarista, sem vínculo de emprego.
Moraes Filho (2003, p. 268) afirma que “não será considerado empregado doméstico o prestador de serviços a várias famílias, sob a forma de diaristas ou avulsos”.
O TRT da Primeira Região editou a súmula de nº 19, com o seguinte teor:
TRABALHADOR DOMÉSTICO. DIARISTA. PRESTAÇÃO LABORAL DESCONTÍNUA. INEXISTÊNCIA DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO. A prestação laboral doméstica realizada até três vezes por semana não enseja a configuração do vínculo empregatício, por ausente o requisito da continuidade previsto no art. 1º da Lei 5.859/72 (BRASIL, 2011).
O Tribunal Superior do Trabalho (TST), por sua vez, em julgamento do Recurso de Revista (RR) definiu o que vinha a ser trabalho contínuo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - VÍNCULO DE EMPREGO - EMPREGADA DOMÉSTICA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TRÊS VEZES POR SEMANA - Demonstrada a divergência jurisprudencial, há de ser dado provimento ao Agravo de Instrumento para determinar o processamento do Recurso de Revista. Agravo de Instrumento provido. RECURSO DE REVISTA - VÍNCULO DE EMPREGO - EMPREGADA DOMÉSTICA - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TRÊS VEZES POR SEMANA - NÃO CARACTERIZAÇÃO - Empregado doméstico é a pessoa física que presta, com pessoalidade, onerosidade e subordinadamente, serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, em função do âmbito residencial destas. Evidenciando-se o labor por somente três vezes por semana, configura-se o caráter descontínuo da prestação de trabalho, fora, portanto, do pressuposto específico da Lei nº 5859/72. Recurso de Revista conhecido e provido. (BRASIL 2013a, p. 1218)
RECURSO DE REVISTA - DOMÉSTICO - VÍNCULO EMPREGATÍCIO - CARACTERIZAÇÃO - EXIGÊNCIA DE CONTINUIDADE NA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS. I - O trabalho contínuo é aquele realizado de forma sistemática, em que as tarefas diárias se complementam ao longo da semana, não tendo sido por outro motivo que a Constituição Federal estendeu aos domésticos o Repouso Semanal Remunerado, pelo que, constatada a prestação de serviços em apenas dois dias por semana, impõe-se o afastamento do vínculo empregatício doméstico, ante a ausência do requisito indispensável da continuidade. Precedentes desta Corte. II - Recurso provido. (BRASIL, 2009)
De igual sorte, também em sede de Recurso, processo nº 17.179/01.006.09.04.07, negou o reconhecimento do vínculo empregatício à diarista que alegava a prestação de serviço três vezes em casa de família, sob o argumento de que, além de comprovado o trabalho em apenas dois dias semanais, recebia pagamento por semana e prestava serviços para outras famílias do mesmo condomínio.
Sob este prisma, conclui-se que a repetição dos trabalhos domésticos deve ser analisada por semana, desprezando-se o tempo de duração do contrato, de forma que o trabalhador doméstico preste seus serviços três ou mais vezes por semana, por mais de quatro horas por dia, em um período não inferior a 30 (trinta) dias (CASSAR, 2012).
Repare-se, entretanto, que, com a tramitação em voga do Projeto de Lei do Senado nº 224/2013, relatado pelo Senador Romero Jucá, tal incerteza deixaria de existir visto que, conforme o texto do art. 1º, a própria definição de empregado doméstico já evidenciaria o período mínimo de labor para que se configure a relação empregatícia doméstica, nesses termos:
Art. 1º. Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas por mais de dois dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei.
3.2.1.3 Elementos fático-jurídicos especiais
Revistos os elementos fático-jurídicos gerais e esclarecida a questão da continuidade e sua convalidação especial, há de se examinar os elementos específicos da relação empregatícia doméstica. Esses componentes privativos do empregado doméstico dizem respeito à finalidade não lucrativa do labor, à prestação desses serviços à pessoa ou à família e o âmbito residencial de prestação do trabalho.
a) finalidade não lucrativa dos serviços
O primeiro elemento específico da relação empregatícia doméstica é uma imposição legal de que os serviços desempenhados pelo doméstico não podem gerar benefícios para terceiros, tampouco pode gerar lucro para o empregador doméstico.
Assim, sob a ótica do tomador dos serviços, o trabalho exercido pelo obreiro não pode ter objetivo de auferir ganho ou vantagem, restringindo-se ao interesse do tomador e/ou sua família.
Importa esclarecer que o critério em comento é analisado sob a ótica do empregador porque, para o empregado, todo trabalho tem evidente conteúdo econômico, o que encontra-se umbilicalmente correlato ao critério fático-jurídico da onerosidade.
Dessa maneira, o empregador não pode realizar negócios com o resultado do trabalho do empregado, posto que o doméstico produz, exclusivamente, valor de uso, jamais valor de troca (DELGADO, 2008).
Trata-se de uma atividade de mero consumo, não produtiva, não podendo o labor do trabalhador ter como finalidade o lucro do patrão (CASSAR, 2012).
Logo, se o empregador doméstico passa a se valer de seu empregado para auferir uma vantagem econômica, descaracterizado estará o vínculo doméstico, passando a ser o obreiro empregado comum.
Nesse sentido Orlando Gomes e Elson Gottshalk, citados por Pamplona Filho e Villatore, ensinam que
[...] o trabalho doméstico, sendo uma atividade não lucrativa, por excelência, não se deve mesclar com operação de fins lucrativos, que beneficiem o empregador. A mescla com tais atividades o desnatura. Tem-se considerado não doméstica a cozinheira de uma “república” ou de “pensão”, que atenda apenas aos empregados de um estabelecimento comercial. (PAMPLONA FILHO; VILATORE, 2001 P. 24)
Desta forma, o caseiro de sítio de lazer do empregador, por exemplo, que, além de exercer suas funções, é encarregado de colocação de venda de bens a terceiros, deixa de figurar como doméstico, caracterizando-se como empregado urbano comum.
Impõe dizer, no âmbito da natureza dos serviços prestados, que a espécie de serviço prestado não é elemento fático-jurídico da relação empregatícia doméstica, em outras palavras, não se presta à definir a qualidade de doméstico. Assim, um cozinheiro pode servir tanto a uma residência como a um restaurante.
b) prestação laboral à pessoa ou família
O enquadramento legal do doméstico evidencia a impossibilidade de pessoa jurídica ser tomadora do serviço. Apenas a pessoa física ou a família pode sê-lo.
Este elemento fático-jurídico da relação de emprego doméstico evidencia a necessidade de se analisar para quem se exerce a atividade. Assim, se uma empregada exerce a função de cozinheira, por exemplo, este fato não é suficiente para enquadrá-la como doméstica. É preciso que se pesquisem quem é o empregador. Se seu empregador for uma pessoa física, ou família, que não explore atividade lucrativa, aí sim estará caracterizada a mencionada relação de emprego.
Por outro lado, se o empregador for um restaurante hotel ou loja comercial (pessoas jurídicas), será empregada urbana. Nessa perspectiva, não são considerados domésticos os empregados em atividades assistenciais, beneficentes, comerciais ou industriais, por exemplo.
Na elucidação do tema os repositórios jurisprudenciais são de grande valia.
TRABALHO DOMÉSTICO - CARACTERIZAÇÃO - IRRELEVÂNCIA DA FUNÇÃO DESEMPENHADA - Nos termos do art. 1º da Lei nº 5.859/72, o que define o empregado doméstico não é a sua qualificação profissional, mas a circunstância de prestar 'serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas'. Tendo a autora sido contratada para prestar serviços laborais como enfermeira na residência da reclamada, pessoa idosa e que necessitava de cuidados especiais, ficou caracterizada a sua condição de empregada doméstica. (BRASIL, 2002 p. 41) (Destaques acrescidos)
Delgado (2008), neste aspecto, defende que, além da pessoa natural, um grupo unitário de pessoas físicas, por exemplo, um grupo de estudantes que dividem um imóvel, atuando em função de interesses individuais de consumo pessoal, pode também tomar trabalho doméstico.
Tal especialidade acarreta uma atenuação, ou até uma exceção, à despersonalização do empregador. Tal princípio, nunca é demais relembrar, possibilita a alteração do sujeito passivo da relação trabalhista – o empregador -, sem que para tanto o contrato de trabalho sofra qualquer alteração.
Na relação doméstica, por expressa impossibilidade de as pessoas jurídicas figurarem como tomadora desta espécie de serviços, essa despersonalização é afastada ou, ao menos, expressivamente atenuada.
Como consequência lógica, as alterações fático-pessoais do empregador interferem diretamente no contrato de trabalho. É o que ocorre quando observada à morte do tomador dos serviços, a qual extingue imediatamente a relação empregatícia.
Nesse diapasão, poder-se-ia afirmar que há certa pessoalidade à figura do empregador doméstico, que se contrapõe à regra da impessoalidade vigorante quanto aos demais empregadores (DELGADO, 2008).
c) âmbito residencial de prestação dos serviços
A expressão utilizada pela lei regulamentadora do trabalho doméstico designa que os serviços devem ser prestados no âmbito residencial do empregador.
Vólia Bomfim Cassar (2012) pontua que a redação do art. 1º, da Lei 5.859/72 apresenta um equívoco quando se refere que ao trabalho executado “no” âmbito residencial, quando deveria conter a preposição “para”, designando que o trabalho deve ser prestado para a família, para o âmbito residencial, para o consumo da pessoa física, e não para terceiros. Ou, se prevalece o entendimento contrário, estaria descaracterizado a condição de doméstico do motorista, por exemplo.
Ainda neste aspecto, Fernando Basto Ferraz, valendo-se dos ensinamentos de Teixeira, realiza uma importante observação. O autor esclarece que
A caracterização do “âmbito residencial”, às vezes, apresenta alguns obstáculos na zona rural, pois como adverte Orlando Teixeira da Costa, “nem sempre a propriedade utilizada pela família no interior guarda sua feição de moradia”. Em vista disto já podemos afirmar que, por prudência, convém estudar, isoladamente, cada caso que se lhe nos for permitido apreciar no que diz respeito ao empregado doméstico rural, de modo que não haja risco de considerarmos como doméstico o trabalhador rural, que não se enquadra nos termos da Lei n. 5.859/72. (FERRAZ, 2003, p. 28-29)
O autor, arrematando seu raciocínio, elucida que, de tal forma, estão compreendidos também no âmbito residencial os empregados de sítios, casas ou chácaras de recreio e veraneio, posto que representam uma extensão da residência (FERRAZ, 2003).
No mesmo sentido Delgado (2008, p. 373) complementa articulando que “a noção de âmbito residencial abrange não somente a específica moradia do empregador, como, também, unidades estritamente familiares que estejam distantes da residência principal da pessoa ou família que toma o serviço doméstico”.
Destarte, conclui-se que esse deslocamento para fora da residência principal, no exercício das funções domésticas, não possui o condão de descaracterizar a relação empregatícia.
Nesse sentido, há muito já se posiciona a jurisprudência pátria.
JARDINEIRO QUE PRESTA SERVIÇOS NA RESIDÊNCIA DO EMPREGADOR - ENQUADRAMENTO COMO DOMÉSTICO - Consoante a dicção do artigo 1º da Lei nº 5.859/72, enquadra-se como doméstico o empregado que presta serviços como jardineiro no âmbito residencial do empregador, cuja atividade não se destina a proporcionar-lhe lucros, mas simplesmente à conservação do jardim. Na precisa lição de DÉLIO MARANHÃO ("in" Instituições de Direito do Trabalho, Vol. 1, 14ª ed., p. 179): "...âmbito residencial não é de ser entendido, apenas, o interior da casa em que reside o empregador. Tal conceito abrange todo o ambiente que esteja diretamente ligado à vida de família. O jardineiro e o chofer particular são domésticos. Residência, por outro lado, não tem, aqui, o sentido restrito que lhe empresta o Direito Civil, distinguindo-a da morada e da habitação. Não é necessário, para a caracterização do trabalho doméstico, que se trate de residência 'definitiva'. O empregado que presta serviços em uma casa de veraneio, onde a família do empregador passa alguns dias durante o ano, não deixa, por isso, de ser, tipicamente, doméstico." (BRASIL, 1999)
SERVIÇOS DOMÉSTICOS. CARACTERIZAÇÃO – Para ser caracterizado como “doméstico” o serviço não precisa ser prestado, necessariamente, na residência do empregador. O que importa é que a atividade desempenhada esteja voltada para o âmbito familiar, não gerando, pois, lucro ao empregador. (BRASIL, 2005)
MOTORISTA PARTICULAR - ENQUADRAMENTO NA CATEGORIA DOS EMPREGADOS DOMÉSTICOS - Considera-se empregado doméstico aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial (art. 1º da Lei nº 5.859/72). Assim, para caracterização de vínculo dessa natureza além dos requisitos da pessoalidade, onerosidade, subordinação, não-eventualidade (arts. 2º e 3º da CLT), também devem estar presentes os requisitos de finalidade não lucrativa dos serviços, prestados a pessoa física ou família no âmbito residencial, sendo irrelevante a qualificação profissional ou natureza intelectual do empregado, bem como o caráter das atribuições exercidas, ainda que externas. No caso, evidenciado que o trabalhador, na condição de motorista particular, realizava atividades externas em prol da pessoa ou família, conduzindo a então patroa para as missas e para outros locais, ficando à disposição da residência nos demais períodos, enquadra-se na categoria dos empregados domésticos. Recurso improvido. (BRASIL, 2011)
Nessa perspectiva, tem-se por certo que o empregado doméstico prestará seu trabalho aonde se desenvolva o círculo de vida familiar, desde que a prestação não tenha o intuito proporcionar lucro. Havendo a realização de qualquer tarefa cujo aproveitamento gere resultados pecuniários ao empregador promover-se-á a descaracterização do contrato de emprego doméstico.
O elemento principal, característico da condição de domesticidade é, portanto, a ausência, por parte do empregador, do propósito de lucro econômico (MORAES FILHO apud FERRAZ, 2003).
3.2.2 Empregador doméstico
A conceituação de empregador da relação empregatícia lato sensu é definida no art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, e complementada pelo seu § 1. Os dispositivos dispõem:
Art. 2º - considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
§ 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados. (BRASIL, 1943)
Segundo Maurício Godinho Delgado (2008), o enunciado celetista é, tecnicamente, falho, tendo em vista que a “empresa”, no ordenamento jurídico brasileiro, não é sujeito de direitos. Empregador, em suas palavras, seria a pessoa física, jurídica ou ente despersonificado, titular da empresa ou estabelecimento, que contrata a uma pessoa física para a prestação de serviços, efetuados com pessoalidade, onerosidade, não-eventualidade e sob sua subordinação.
Segundo o jurista:
[...] a eleição do termo empresa, pela CLT, para designar a figura do empregador apenas denuncia, mais uma vez, a forte influência institucionalista e da teoria da relação de trabalho que se fez presente no contexto histórico de elaboração desse diploma jus trabalhista. A propósito, a Lei do Trabalho Rural (n. 5.889, de 1973), construída em período histórico em que já não vigorava significativa influência dessas velhas correntes teóricas trabalhistas, não define empregador rural como empresa, porém como pessoa física ou jurídica (caput do art. 3º da Lei n. 5.889, de 1973). (DELGADO, 2008, p. 378)
Já Vólia Bomfim Cassar, ao contrário, defende a acepção utilizada pelo diploma celetista. Para a doutrinadora não há “qualquer absurdo no fato de legislador celetista ter considerado como empregador a empresa e não a pessoa jurídica ou física que contrata, assalaria e toma os serviços do trabalhador”. (CASSAR, 2012, p. 409).
Tal jurista, utilizando-se dos ensinamentos de Arnaldo Süssekind (apud CASSAR, 2012, p. 410), avaliou que a intenção do legislador era de firmar um conceito capaz de refletir a despersonalização do empregador, de forma a proteger os empregados. Deste modo, ela disciplinou que:
Sendo a empresa um modo de operar de um sujeito de direito, ela assume uma “cor subjetiva”. Logo, o contrato de trabalho leva mais em consideração a empresa (atividade econômica organizada, o empreendimento) que a pessoa que a explora (empresário).
Vinculando o empregado à atividade econômica (empresa) e não à pessoa física ou jurídica que a explora, o legislador protegeu o empregado das variações das pessoas que exploram o empreendimento e das manobras fraudulentas que visam impedir a aplicação da lei trabalhista [...] (CASSAR, 2012, p. 410)
Fato é que a noção de empregador denota a ideia de entidade que se utiliza de trabalhadores subordinados, objetivando, na maior parte das vezes, de desenvolvimento de uma atividade com finalidade lucrativa (MAGANO, apud CARRION, 2009).
Por tais razões, resta inaplicável ao empregador doméstico o artigo 2º da CLT.
Ora, a figura sociojurídica do empregador doméstico, cuja definição encontra-se explicitada no Decreto nº 71.885, de 09 de março de 1973, que regulamentou a Lei do Doméstico, o considera como toda “pessoa ou família que admita a seu serviço empregado doméstico”. (BRASIL, 1973).
O artigo 15, inciso II, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio e dá outras providências, por sua vez assevera que empregador doméstico é “a pessoa ou família que admite a seu serviço, sem finalidade lucrativa, empregado doméstico”.
Deste modo, estando a noção jurídica de empresa relacionada a produção de lucro e à concepção de empregador doméstico ser vedada a finalidade lucrativa, não há possibilidade de pessoa jurídica ser tomadora de serviço doméstico. Tal condição está, exclusivamente, reservada a pessoa física, individualmente ou em grupo unitário.
No que tange à essa acepção trazida pelo decreto regulamentador, Orlando Teixeira (apud FERRAZ, 2003) considera que o legislador foi infeliz ao afirmar que a família pode ser sujeito passivo da relação, posto que não representa uma coisa nem outra.
O jurista pontua que
[...] a lei teria sido mais sensata se, cuidando de não ignorar a realidade familiar, mas também se opor ao tratamento a ela dispensado pelo Direito de Família, considerasse como empregador doméstico a pessoa que admitisse a seu serviço ou de sua família empregado doméstico. (TEIXEIRA, apud FERRAZ, 2003, p. 87)
Villatore e Pamplona Filho (2001), noutra vertente, analisando a incompatibilidade da pessoa jurídica e do empregador doméstico, consideram razoável a definição legal, não necessitando, na visão destes, qualquer reparo.
Ainda segundo os autores, a expressão “família” deve ser entendida como núcleo familiar que reside no mesmo local da prestação de serviços (VILLATORE; PAMPLONA FILHO, 2001).
Neste sentido as exegeses jurisprudenciais não vacilam ao reconhecer a legitimidade da família.
TRABALHO DOMÉSTICO – LEGITIMIDADE PASSIVA – CONFIGURADA – Como se vislumbra da Lei nº 5859/72, o trabalho doméstico possui os mesmos elementos da relação de emprego genérica, descrita no artigo 3º, Consolidado (pessoa física, pessoalidade, subordinação, continuidade e onerosidade) sendo acrescidos de requisitos específicos concernentes à finalidade não lucrativa dos serviços, prestação laboral à pessoa ou família e o fato dessa prestação se desenvolver no âmbito residencial do tomador dos serviços. A Lei 5.859/72 conceitua o empregado doméstico "assim considerado aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas". Por sua vez, o art. 15, inciso II, da Lei nº 8.212/91, define como empregador doméstico - "a pessoa ou família que admite a seu serviço, sem finalidade lucrativa, empregado doméstico". Assim o empregador na relação de trabalho doméstico é a família, podendo ser representada por quaisquer dos cônjuges ou seus descendentes. Recurso ordinário improvido. (BRASIL, 2010, p. 111)
Desse modo, não restam dúvidas que, inobstante exista minoritário entendimento doutrinário em contrário, a família pode ocupar o polo passivo da relação de trabalho doméstico, mormente porque a própria lei aplicável à esta relação prevê.