O Decreto n° 11.661 de 30 de dezembro de 1974, do Município de São Paulo, dispõe sobre a permissão de exploração, pela Prefeitura, de forma direta ou indireta, de estacionamento em vias e logradouros públicos municipais.
Segundo o decreto, as áreas da permissão seriam aquelas estabelecidas através de sinalização regulamentadora pelo Departamento de Operação do Sistema Viário - DSV, da Secretaria Municipal de Transportes, atribuindo à Empresa Municipal de Urbanização - EMURB a exploração dos estacionamentos, fixando-se preço mínino de período de estacionamento pelo período de duas horas. Mais tarde foi transferida para a Companhia de Engenharia de Tráfego, pelo Decreto n° 21.942 de 25 de fevereiro de 1986, a permissão de exploração, situação que até hoje perdura.
Ambos os decretos, contudo, dispõem expressamente sobre a isenção de responsabilidade da Prefeitura por danos, furtos, prejuízos de qualquer natureza que os veículos ou seus usuários venham a sofrer nos locais de "zona azul" ( art. 9° do Dec. 11.661/74 e art. 6° do Dec. 21.942/86).
Contudo, considero não ser válida tal cláusula de "não-indenizar", ainda que na forma de decreto municipal.
No Estado Democrático ou de Direito, o Poder Público responde por seus atos danosos a particulares, mesmo no exercício da prestação de serviços públicos (art. 37, §6o., da CF), havendo na nossa Carta Constitucional regras que prevêem a responsabilidade do Estado pelo não oferecimento ou oferta irregular do ensino obrigatório (art. 208, §2o.) e por danos nucleares, por exemplo.
Se o serviço é público, os danos sofridos por sua omissão, falha ou deficiência devem ser ressarcidos sem discussão sobre a culpa, em face da adoção, em nosso sistema jurídico, da teoria da responsabilidade civil objetiva, na modalidade do risco administrativo, que até admite mitigação da responsabilidade do poder público em caso de culpa concorrente ou exclusiva da vítima.
Não sendo o serviço público, nenhum privilégio deve merecer o ente público em desfavor do particular.
A tendência de limitar o Estado às suas funções próprias e imputar-lhe responsabilidade pelos seus atos e omissões tem reflexo na aplicação do direito nas Côrtes de Justiça.
Os nossos Tribunais têm afirmado a responsabilidade civil do Estado por danos derivados de defeito ou buraco na pista de rolamento das vias públicas ou nos passeios, por ausência de sinalização e até por inundação agravada por falta ou falha do serviço público. Confira-se nestes julgados: Reexame Necessário e Apel. Civ. 79.379-7 - 3a. Câm. do Trib. de Alçada do Paraná - RT 729/303; Ap. 230.997-1/5 - 8a. C. - J. 18.10.95 - TJSP, RT 723/317; Ap. Sum. 612.993-3 - 3a. c.- J. 29.08.1995, 1o. TACSP, RT 727/206; Ap. 1320-95 - 2a. câm. - j. 13.06.1995 - TJ RJ - RT 730/324.
Também, por exemplo, o Estado tem o dever de garantir a segurança pública, exclusivamente prestada pelas polícias, podendo os municípios constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações ( art. 144, §8o., da CF). A falha na prestação deste serviço é motivo de ressarcimento, podendo surgir hipóteses de responsabilidade civil do Estado por danos causados a lojas comerciais por movimentos baderneiros de vendedores ambulantes, meninos de rua, etc.
No caso das vias e logradouros públicos convém lembrar que tais são bens públicos de uso comum do povo ( art. 66, I, do CC) e, portanto, sujeitas à proteção pela guarda municipal.
Não é justo, pois, que o particular pague pelo estacionamento em "zona azul", na via pública, sob pena de multa pela fiscalização (constantemente mantida), pague as contribuições de melhoria municipais, e, ainda, quando tem o seu veículo furtado ou danificado no referido estacionamento, fique sem ressarcimento, quando o município não vigiou a guarda do veículo.
É máxima jurídica que a todo direito corresponde a uma obrigação e quem aufere vantagem deve suportar o ônus de sua atividade. Configura-se situação de injusta vantagem do poder público, contrariando a tendência já incorporada em nosso sistema (como acima foi mostrado) , a exploração de estacionamento remunerado, com isenção de qualquer responsabilidade por prejuízos que os usuários ou seus veículos venham a sofrer, principalmente pela "culpa in vigilando". Possuindo o município, como é o caso de São Paulo, uma Guarda Municipal e existindo a fiscalização da CET, empresa municipal exploradora da "zona azul", não há escusa para se deixar de ressarcir, quando esses se fazem presentes para multar e engordar as burras do Estado, mas ausentes para garantir a fruição da utilidade disponível a título oneroso.
Por isso, entendo não ser a melhor decisão aquela proferida no período de férias forenses pela Quarta Câmara de Civil de Férias F do Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido da inexistência de obrigação de indenizar dano decorrente de furto de veículo estacionado em local de "zona azul" (Apelação Cível 195.009-1 - S. Caetano do Sul , Lex 152/91). Como fundamento, afirmou-se que ao prejudicado interessou estacionar na "zona azul" (sic) e que o Município procurou, pelo sistema, regular o tempo de estacionamento de veículos nas áreas, propiciando rotatividade , esgotando-se o contrato com a venda do talão e o recebimento do preço.
Sem dúvida, a referida decisão abre absurda possibilidade para a Prefeitura instalar catracas ou pedágios nos parques, praças e vias públicas, garantindo a rotatividade de seu uso mediante cobrança de valor, sem qualquer direito de reclamação por danos decorrentes de falta de segurança ou manutenção, pois, enfim, interessou ao cidadão usar a facilidade...
É pacífica na jurisprudência nacional a responsabilidade do estacionamento por danos em veículos nele guardados, quando violado o dever de guarda,, reconhecendo-se a nulidade de eventual cláusula de não-indenizar. Assim se tem entendido em relação aos estacionamentos particulares, seja de "shoppings" ou de bancos, lojas, casas noturnas, etc., menos em relação à "zona azul", fato que não se justifica, inexistindo amparo moral e de direito para a exclusão da obrigação do mantenedor do estacionamento de reparar os prejuízos eventualmente sofridos pelos usuários.
Não de outra forma, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n°. 8.078/90), que contém normas de ordem pública e de interesse social (art. 1o.), inclui no conceito de fornecedor a pessoa jurídica pública que desenvolve atividade de prestação de serviços (art. 3o.), e assegura o direito básico à prevenção e à reparação de danos patrimoniais e morais (art. 6o., inc. VI). Ora, encaixam-se o Município e as empresas exploradoras dos estacionamentos em áreas de "zona azul" como prestadoras de serviço, sendo direito do prejudicado pleitear judicialmente indenização por danos.
Em conclusão, optando o poder público municipal pela cobrança de remuneração de estacionamento em via pública, de uso comum do povo, tem o dever de vigiar com responsabilidade pelos danos ocorridos nos locais de "zona azul".