Sumário: 1. Introdução – 2. Garantia contratual: 2.1. A garantia contratual no Código Civil de 2002: 2.1.1. Vícios redibitórios; 2.2.2. Garantia legal; 2.3.3. Garantia contratual; 2.2. A garantia contratual no Código de Defesa do Consumidor: 2.2.1. Vícios e defeitos dos produtos e dos serviços; 2.2.2. Garantia legal: o critério da vida útil do bem; 2.2.3. A garantia contratual e o paradoxo da “importação”; 2.2.4. A garantia estendida – 3. Revisão de veículos automotores: 3.1. Concepção mercadológica; 3.2. Concepção ético-social; 3.3. Concepção jurídica: 3.3.1. Natureza jurídica; 3.3.2. A gratuidade como decorrência lógica do sistema consumerista; 3.3.3. O problema da obsolescência programada – 4. Garantia contratual e revisão de veículos automotores: 4.1. A suposta relação de condicionalidade; 4.2. O enquadramento jurídico: venda casada ou cláusula contratual abusiva – 5. Considerações finais.
1. Introdução
Prescinde-se de maior esforço investigativo para se concluir que o Brasil tem uma das maiores frotas de veículos automotores do planeta. Para tanto, é suficiente tentar transitar por algumas das principais cidades brasileiras, a exemplo de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Goiânia, Salvador ou Recife.
Os números também falam por si. Segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito – Denatran, o país fechou 2011 com cerca de 70,5 milhões de veículos, entre automóveis, comerciais leves, caminhões, carretas e motocicletas. Em 2012, o número saltou para pouco mais de 76 milhões, sendo 42 milhões só de automóveis[1].
Não é à toa, portanto, que o Brasil é hoje o quarto maior mercado de carros do mundo, com aquisição pelo consumidor final, só no ano de 2012, de mais de 3,6 milhões de carros de passeio e veículos leves[2]. Com isso, o mercado automobilístico brasileiro está atrás apenas de China, Estados Unidos e Japão e à frente de países como Alemanha, Índia, Rússia, Grã-Bretanha, França e Canadá.
Aliás, o resultado não poderia ser diverso, porque o próprio governo doméstico vem intervindo no setor econômico, a fim de incentivar, com vigor, a aquisição de veículos novos, por meio da redução da alíquota do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados, com o objetivo de alavancar a indústria e impedir o desemprego.
Com isso, além do (i) efeito nefando para o meio ambiente, notadamente em termos de poluição ambiental; (ii) do aumento do número de acidentes de trânsito; (iii) do incremento dos engarrafamentos; e (iv) da intransitabilidade de muitas cidades brasileiras – todas consequências que não serão objeto direto do presente estudo –, concluímos que no Brasil existem dezenas de milhões de consumidores de veículos automotores, especialmente de passeio, os quais, de forma mercadologicamente cíclica, demandarão, por sua vez, outros setores da economia, como os de combustíveis e assistência técnica.
No que diz respeito a esse último aspecto – o da assistência técnica –, especificamente quando prestada pelas próprias concessionárias ou seus autorizados, na modalidade de revisão de veículos automotores, verifica-se uma deletéria relação, no âmbito das relações de consumo, com a garantia contratual. Mas, antes de demonstrá-la, mister bosquejar algo acerca desse secular instituto jurídico.
2. Garantia contratual
2.1. A garantia contratual no Código Civil de 2002
2.1.1. Vícios redibitórios
A garantia contratual ou convencional é categoria jurídica típica do direito civil, onde as relações contratuais ocorrem entre partes presumidamente iguais, ao contrário das relações jurídicas consumeristas, marcadas que são pela nota da desigualdade, já que o consumidor se encontra em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica, fática (socioeconômica) ou informacional, como ensina Cláudia Lima Marques[3].
O conceito de garantia contratual depende, porém, da compreensão do que seja a garantia legal, sendo que ambas estão intimamente relacionadas com a noção de vícios redibitórios nos contratos comutativos - aqueles onerosos em que as prestações são certas, determinadas e equivalentes e que se opõem aos contratos aleatórios.
Os vícios redibitórios encontram previsão no art. 441 do Código Civil:
“Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor”.
Segundo abalizada abordagem doutrinária de Maria Helena Diniz[4] os vícios redibitórios são:
“defeitos ocultos existentes na coisa alienada, objeto de contrato comutativo, não comuns às congêneres, que a tornam imprópria ao uso a que se destina ou lhe diminuem sensivelmente o valor, de tal modo que o ato negocial não se realizaria se esses defeitos fosses conhecidos, dando ao adquirente ação para redibir o contrato ou para obter abatimento de preço”.
2.1.2. Garantia legal
Já a garantia legal está estampada no art. 445 do mesmo diploma legal:
“Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade. § 1º Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis. § 2º Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais, aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando a matéria”.
Isso significa que o adquirente de um bem, em contrato comutativo, terá, como garantia legal (art. 445 do Código Civil), o prazo decadencial de trinta dias, se a coisa é móvel, e de um ano, se imóvel, a contar em regra da tradição, para fazer uso das ações edilícias – redibitória ou estimatória (quanti minoris), conforme o caso.
Se o vício oculto, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, fixa a lei civil o limite temporal para o seu aparecimento, sendo de cento e oitenta dias para móveis e de um ano para imóveis. Na verdade, para certa corrente[5], essa é a verdadeira garantia legal – não se confundindo, pois, com o prazo decadencial para o exercício das ações edilícias –, consistindo no interstício mínimo, anterior ao lapso decadencial, durante o qual a responsabilidade pelo aparecimento do vício oculto será imputada ao alienante.
Essa diferença seria mais facilmente notada a partir da análise do art. 618 do Código Civil, que cuida do contrato específico de empreitada:
“Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito”.
Alega-se, assim, que a garantia legal é anterior ao prazo decadencial e com este não se confunde, já que o empreiteiro é responsável, durante cinco anos (garantia legal), pelo vício oculto que vulnere a adequação, solidez e segurança da obra, inclusive quanto aos materiais e ao solo, devendo o dono da obra exercer seu direito potestativo no prazo de cento e oitenta dias após o aparecimento do vício (prazo decadencial).
Todavia, parta da doutrina caminha no sentido de que o prazo decadencial, ainda quando não antecedido de prazo especial de garantia, representa, de per si, garantia legal, porquanto a cognição do vício oculto, durante o seu curso, gestaciona igualmente o direito à redibição ou ao abatimento do preço[6].
Vale dizer que o conhecimento do vício não é exigido no momento da tradição, podendo aparecer em qualquer dia do prazo decadencial; afinal, se o fosse – e considerando que a tradição é, em geral, simultânea ao próprio negócio jurídico –, não representaria vício oculto, mas aparente, o qual não dá ensejo às ações edilícias no direito civil.
Desse modo, conclui-se que a garantia legal é o prazo especial ou decadencial mínimo estabelecido pela própria lei durante o qual o lesado por vício redibitório (oculto) poderá fazer uso do seu direito à redibição do contrato ou ao abatimento de preço.
2.1.3. Garantia contratual
Por fim, a garantia contratual recebeu o seguinte tratamento:
“Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”.
Com isso, a par da garantia legal:
“Podem os contraentes, no entanto, ampliar convencionalmente o referido prazo. É comum a oferta de veículos, por exemplo, com prazo de garantia de um, dois ou mais anos. (...) Essa cláusula de garantia é, pois, complementar da garantia obrigatória e legal, e não a exclui. Em síntese, haverá cumulação de prazos, fluindo primeiro o da garantia convencional e, após, o da garantia legal. Se, no entanto, o vício surgir no curso do primeiro, o prazo para reclamar se esgota em trinta dias seguintes ao seu descobrimento. Significa dizer que, mesmo havendo ainda prazo para a garantia, o adquirente é obrigado a denunciar o defeito nos trinta dias seguintes ao em que o descobriu, sob pena de decadência do direito”[7].
Assim, a garantia contratual consiste no prazo adicional, anterior e complementar à garantia legal que, uma vez convencionado pelas partes, objetiva aumentar a proteção do adquirente de um bem quanto ao aparecimento de vícios redibitórios (ocultos).
2.2. A garantia contratual no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990)
2.2.1. Vícios e defeitos dos produtos e serviços
O direito consumerista apresenta duas ordens de preocupações: a incolumidade físico-psíquica e a incolumidade econômica do consumidor. Daí a possibilidade de dois tipos de vícios: vícios de qualidade por insegurança e vícios de qualidade por inadequação.
Quanto aos vícios de qualidade por insegurança, eles “poderiam ser conceituados como sendo a desconformidade de um produto ou serviço com as expectativas legítimas dos consumidores e que têm a capacidade de provocar acidentes de consumo”[8].
Portanto, o conceito de vício de qualidade por insegurança equivale ao de defeito esboçado pelo CDC:
“Art. 12. (...) § 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera (...)”.
Por seu turno, os vícios de qualidade por inadequação são aqueles em que “o elemento básico é a carência – total ou parcial – de aptidão ou idoneidade do produto ou serviço para a realização do fim a que é destinado”[9]. Significa que não é relevante para o conceito de vício de qualidade por inadequação a aptidão do produto ou serviço para provocar danos à saúde do consumidor – registre-se que, se houver potencialidade de dano à saúde, a hipótese é de vício de qualidade por insegurança.
Os vícios de qualidade por inadequação ou simplesmente vícios – em oposição a defeitos ou vícios de qualidade por insegurança –, são os arrolados no caput do art. 18 do CDC:
“Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas”.
São, assim, de três espécies: i) vício que torne o produto impróprio ao consumo; ii) vício que lhe diminua o valor; iii) vício decorrente da disparidade das características dos produtos com aquelas veiculadas na oferta e publicidade.
Essa última variante de vício de qualidade por inadequação – o da desconformidade com a oferta ou a publicidade –, que encerra inovação do direito do consumidor em relação aos vícios redibitórios do direito civil, é assim analisada por Paulo Luiz Netto Lôbo[10]:
“Nesta espécie de vício, o produto ou o serviço não apresentam defeito intrínseco. O vício é configurado objetivamente pela desconformidade entre os dados do rótulo, da embalagem, ou da mensagem publicitária, e os efetivamente existentes. Não há necessidade de demonstrar a impropriedade ou a inadequação do produto ou serviço ao uso a que se destinam ou mesmo a diminuição de valor. Basta a desconformidade (ou disparidade) entre o anunciado e o existente adquirido ou utilizado”.
Anote-se que, para o sistema consumerista, ao contrário do civil, não se exige que o vício de qualidade por inadequação (ou simplesmente vício) seja grave. É que, conforme o magistério de Odete Novais Carneiro Queiroz[11]:
“Dispensa-se no Código de Defesa do Consumidor a característica da gravidade do vício, uma vez criado um regime de responsabilidade por vício de qualidade, por impropriedade ou inadequação, bastando que tal produto se apresente viciado para ser suscetível de garantia”.
No mesmo sentido, Paulo José Scartezzini Guimarães[12], para quem não “só os vícios graves caracterizarão o cumprimento imperfeito, mas também aqueles de menor importância, desde que não sejam insignificantes”.
2.2.2. Garantia legal: o critério da vida útil do bem
Na sistemática consumerista, a garantia legal está estampada no art. 26 do CDC:
“Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços”.
Se no sistema do Código Civil a matéria acerca da contagem dos prazos da garantia legal e contratual é pacífica – por força do art. 446, segundo o qual o prazo da primeira não corre em havendo cláusula da segunda –, há, todavia, significativa divergência sobre o tema no direito consumerista.
A propósito, é possível identificar pelos menos quatro correntes:
1ª corrente: primeiro corre o prazo da garantia legal e depois da garantia contratual. Referida teoria se baseia em interpretação literal do art. 50 do CDC, de acordo com o qual a garantia contratual é complementar à legal.
2ª corrente: ambos os prazos correm simultaneamente. É que, consoante Cláudia Limas Marques[13]:
“se há garantia contratual (express warranty) e esta foi estipulada para vigorar a partir da data do contrato (termo de garantia), as garantias começam a correr juntas, pois a garantia legal nasce necessariamente com o contrato de consumo, com a entrega do produto, sua colocação no mercado de consumo. Ao consumidor é que cabe escolher de qual delas fará uso. Pode usar a garantia contratual, porque lhe é mais vantajosa, no sentido de não ter de arguir que o vício já existia à época do fornecimento. Mas pode usar a garantia legal, porque, por exemplo, o vício se localiza no motor do produto (geladeira), que não está incluído na garantia contratual, ou porque o consumidor se interessa em redibir o contrato e adquirir outro produto de marca diferente”.
3ª corrente: primeiro corre o prazo da garantia contratual e depois o da garantia legal. É a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual:
“O prazo de decadência para a reclamação de vícios do produto (art. 26 do CDC) não corre durante o período de garantia contratual, em cujo curso o veículo foi, desde o primeiro mês de compra, reiteradamente apresentado à concessionária com defeitos. Precedentes”[14].
4ª corrente: utiliza apenas a garantia legal, negando utilidade à garantia contratual, com base no critério da vida útil do bem, no atinente aos vícios ocultos. Para seus defensores, como Leonardo Roscoe Bessa[15]:
“o art. 50 do CDC não deve ser interpretado no sentido de que os prazos de garantia legal e contratual devem ser somados. Para proteger os interesses patrimoniais e morais do consumidor em relação a vícios ocultos dos produtos, basta utilizar o critério da vida útil dos produtos”.
No mesmo sentido é o escólio de José Carlos Maldonado de Carvalho[16]:
“De fato, dúvidas não há de que o critério de vida útil do produto ou do serviço, cujo prazo venha a ser fixado, no caso concreto, pelo juiz, de acordo com as regras ordinárias de experiência, melhor atende aos interesses dos consumidores, sempre a parte mais fraca na relação de consumo”.
De certo modo, é também o pensamento em ascensão no Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 984.106, já citado), muito embora ainda sem a posição radical de desconsiderar por completo o instituto da garantia contratual.
Veja-se trecho do voto do relator:
“Nesse passo, os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto existente desde sempre, mas que somente veio a se manifestar depois de expirada a garantia, como é o caso de edifícios de estruturas frágeis que ruínam a partir de certo tempo de uso, mas muito antes do que normalmente se esperaria de um empreendimento imobiliário, de modo a ficar contrariada a própria essência do que seja um "bem durável". Nessa categoria de vício intrínseco certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, mas que, todavia, não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma característica oculta que esteve latente até então. Um eletroeletrônico, por exemplo, mesmo depois do seu prazo contratual de garantia, não é feito para explodir, de modo que se tal acidente ocorrer por um erro de concepção nascido ainda na fabricação do produto - e não em razão do desgaste natural decorrente do uso -, é ele defeituoso, independentemente do término do prazo de garantia”.
Essa última corrente – a da garantia legal a partir do critério da vida útil do bem – assenta-se na interpretação sistemática das normas sobre o consumidor.
De início, parte-se do pressuposto de que a proteção do consumidor tem sede constitucional, configurando verdadeiro direito fundamental (art. 5º, XXXII, da Constituição Federal).
Segundo Alexandre de Moraes[17]:
“Tratando-se de novidade constitucional em termos de direitos individuais, o inciso XXXII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 demonstra a preocupação do legislador constituinte com as modernas relações de consumo e com a necessidade de proteção do hipossuficiente economicamente”.
Em seguida, constata-se que o CDC blindou os consumidores contra os vícios de qualidade por insegurança (art. 12) e os vícios de qualidade por inadequação (art. 18), constituindo o fornecimento de produto ou serviço que não atenda aos requisitos de qualidade ou quantidade dos produtos ou serviços verdadeiro inadimplemento contratual, não só pela transgressão da literalidade da lei, como também por inobservância dos deveres anexos da cláusula geral de boa-fé objetiva, notadamente em termos de informação e lealdade[18]. É o que, hodiernamente, se nomina violação positiva do contrato[19].
Assim é que observa Cláudia Lima Marques[20]:
“Se o vício é oculto, porque se manifesta somente com o uso, experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo após a tradição, o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo inicial, segundo o § 3º do art. 26, é a descoberta do vício. Somente a partir da descoberta do vício (talvez meses ou anos após o contrato) é que passarão a correr os 30 ou 90 dias. Será, então, a nova garantia eterna? Não, os bens de consumo possuem uma durabilidade determinada. É a chamada vida útil do produto”.
Semelhantemente, ensina Antônio Herman Benjamin[21] que, diante “de um vício oculto, qualquer juiz vai sempre atuar casuisticamente. Aliás, como faz em outros sistemas legislativos. A vida útil do produto ou serviço será um dado relevante na apreciação da garantia”.
E fecha o ciclo constitucional o professor Leonardo Roscoe Bessa[22]:
“O critério da vida útil confere coerência ao ordenamento jurídico e prestigia o projeto constitucional de defesa do consumidor, considerando sua vulnerabilidade no mercado de consumo. O diálogo das fontes, na hipótese, aponta para a necessidade de congruência entre o CC/2002 e o CDC, o que conduz a uma proteção maior do consumidor, ao projeto constitucional de defesa do sujeito frágil (vulnerável). Esta tutela mais intensa, em relação aos prazos decadenciais, só é possível pelo critério da vida útil dos produtos e serviços. Desse modo, mantém-se a desejada e necessária coerência do ordenamento jurídico, prestigiando-se, em última análise, o princípio da isonomia, o qual, como se sabe, rejeita o tratamento igualitário para situações diferentes. O consumidor, sujeito concreto e diferente (frágil), requer tratamento mais favorável”.
2.2.3. A garantia contratual e o paradoxo da “importação”
A garantia contratual foi incorporada às relações consumeristas – nas quais o produto ou serviço são adquiridos por destinatário final ou por alguém em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica, fática (socioeconômica) ou informacional, nesse caso na perspectiva da teoria do finalismo aprofundado –, com o presumido objetivo de ser mais um mecanismo em favor do consumidor.
Com efeito, dispõe o art. 50 do CDC:
“Art. 50. A garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito. Parágrafo único. O termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada em que consiste a mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instrução, de instalação e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações”.
Aliás, tamanha a força da ideia incorporadora, que o CDC tipifica como crime deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia adequadamente preenchido e com especificação clara de seu conteúdo, cominando pena de um a seis meses de detenção e multa (art. 74).
Contudo, os resultados não são alvissareiros. Primeiro porque o prazo da garantia contratual é fixado de modo unilateral pelo fornecedor, inexoravelmente no bojo de contrato de adesão, sem qualquer possibilidade de interferência do consumidor; segundo porque o fornecedor não vem cumprindo o seu dever legal de correta informação (art. 6º, III, CDC), no sentido de esclarecer o consumidor sobre a circunstância de que a garantia contratual não se confunde com a garantia legal.
Desse último aspecto resulta que o consumidor, em seu estágio quase invariável de vulnerabilidade, tem por ética ou jurídica a convenção mercadológica segundo a qual os vícios ou defeitos de produtos ou serviços fornecidos em relação de consumo são imputáveis ao fornecedor tão somente na exata medida em que verificados no curso do prazo de garantia contratual. É dizer, ignorando inclusive a garantia legal (art. 26, CDC), a massa de consumidores foi educada, condicionada e instrumentalizada pelo mercado, que aspira por inculcar-lhes a falsa ideia de que a única garantia possível e imaginável é aquela entabulada no respectivo contrato de consumo. Ultrapassado o prazo desta, deduz o consumidor, automaticamente, que a única solução possível que se lhe afigura é arcar sozinho com o ônus, mesmo que ainda em curso a garantia legal.
Veja-se este exemplo, que muito provavelmente está ocorrendo neste momento em alguma loja país afora: o consumidor compra uma roupa no departamento físico da empresa e é informado de que o prazo de troca da mercadoria é de sete dias (espécie de garantia contratual). Ao chegar a casa, ele guarda a vestimenta e, após dez dias, torna a pegá-la para fins de uso. Então, ao vesti-la, descobre que está rasgada. Ao procurar o fornecedor, é comunicado de que seu prazo expirara há três dias. Ademais, não é de todo improvável que o atendente lhe atribua a falha na veste ou afirme que o consumidor é que foi negligente na escolha, por não ter detectado o vício, em completa inversão do sentido da vulnerabilidade. Como isso é a praxe do mercado e muitos vizinhos – também vítimas – já o haviam avisado de que não seria possível a troca em razão da perda do prazo da garantia contratual, é significativa a chance de que o consumidor em questão assuma solitariamente os prejuízos, muito embora ainda esteja em curso o prazo da garantia legal de noventa dias (art. 26, II, CDC). Tudo isso sem sequer adentrar-se o mérito da possibilidade de soma das garantias (art. 50, CDC).
E o que dizer da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem? Ora, se o consumidor mal conhece a garantia legal expressa na lei (art. 26, I e II, CDC), a fortiori, desconhecerá por completo a garantia legal implícita (art. 26, § 1º, CDC), só cognoscível por efeito de elaborada construção doutrinária e vagaroso assentamento jurisprudencial. Aliás, segundo Boaventura de Sousa Santos (Introdução à Sociologia da Administração da Justiça, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 21, novembro de 1986):
"Caplowitz (1963), por exemplo, concluiu que quanto mais baixo é estrato social do consumidor maior é a probabilidade que desconheça os seus direitos no caso de compra de um produto defeituoso".
Some-se a isso uma terceira causa – talvez a mais preocupante – para o insucesso da garantia contratual como instrumento de proteção do consumidor. Trata-se do fato de aquela garantia ter se convolado, em certos setores do mercado – como o automotivo, por exemplo –, em eficiente (como meio) e eficaz (quanto ao resultado) instrumento de intimidação do consumidor, obrigando-o a submeter-se rotineiramente, a título de alegada manutenção do produto ou serviço, a procedimentos de assistência técnica – não raro desnecessários, mas cujos preços são sabidamente escorchantes –, como conditio sine qua non para a vigência da garantia contratual. Essa temática, por representar mesmo o nosso próprio objeto de estudo, será aprofundada adiante.
Assim, a aplicação da garantia contratual no direito consumerista conspira contra aquilo que foi inicialmente almejado pelo legislador, seja porque seu prazo de vigência é fixado unilateralmente pelo fornecedor; seja porque o consumidor, à míngua da correta informação do fornecedor, ver nela a única garantia possível, desprezando, por consequência, a garantia legal explícita ou implícita; seja ainda porque a garantia contratual se transformou em poderoso instrumento de coerção da parte vulnerável das relações de consumo, nesse caso atrelada umbilicalmente à assistência técnica periódica, notadamente no setor automobilístico da economia. Em tudo isso consiste o paradoxo da “importação” precipitada da garantia contratual do seio do direito civil – que regula relações entre iguais – para o campo do direito do consumidor – aplicável que é a partes inquestionavelmente desiguais. O instituto, em vez de proteger, desprotege, vulnerando ainda mais o já combalido consumidor.
2.2.4. A garantia estendida
Além da garantia contratual tradicional, o tino mercadológico irrompeu ainda com a já propalada garantia estendida ou adicional.
Nas palavras de Leonardo Roscoe Bessa[23]:
“Tem sido cada vez mais frequente no comércio, no momento de aquisição de bens duráveis, principalmente eletrodomésticos e eletroeletrônicos, o oferecimento do que se tem denominado garantia estendida. Pagando-se determinado valor, o estabelecimento comercial estende a garantia de fábrica, normalmente de um ano, para dois ou três anos”.
Não obstante, apesar do atrativo nome, a natureza jurídica da garantia estendida se aproxima mais do conceito de serviço securitário de assistência técnica (seguro), inclusive com pagamento de prêmio pelo consumidor, do que propriamente da ideia inicial do instituto da garantia contratual, que se apresenta, no direito civil, como cláusula negocial inerente ao próprio contrato de alienação, não raro o condicionando – ou seja, o adquirente só realiza o contrato se o alienante comprometer-se a garantir o seu objeto por tempo maior do que o previsto a título de garantia legal dos vícios redibitórios; e mais: geralmente sem preço extra.
A propósito, ambos os instrumentos – a garantia contratual e a garantia estendida – são ontologicamente antagônicos, uma vez que o aumento do prazo de uma acarretará, em tese, a diminuição do prazo da outra. Significa dizer que, se a garantia contratual tiver prazo dilatado, não haverá razão para a contratação da garantia estendida; por outro lado, se a garantia contratual contiver átimo menor, então será interessante para o consumidor, nessa hipótese, aderir à garantia adicional. Não precisa ir longe, todavia, para perceber que, sendo essa última garantia de natureza lucrativa – porque há contraprestação do consumidor, ou seja, o pagamento de preço –, a tendência do mercado será cada vez mais no sentido de diminuir o prazo da garantia contratual, sempre unilateral, para forçar a aquisição, como serviço de seguro, da garantia estendida.
Para quem acredita que a garantia legal baseada no critério da vida útil do bem é suficiente para proteger o consumidor, negando importância inclusive para a garantia contratual tradicional, não existe dúvida de que a garantia estendida ou adicional lhe é também de todo desnecessária.
Nesse norte, arremata o mesmo Leonardo Roscoe Bessa[24]:
“Realmente, como já esclarecido, o CDC, independentemente de garantia do fabricante (denominada, também, de garantia contratual), obriga solidariamente todos os fornecedores (tanto o fabricante como o comerciante), em caso de vícios de qualidade (aparentes ou ocultos), a realizarem o reparo do bem, promoverem a substituição do produto por outro (em perfeitas condições de uso), ou darem abatimento proporcional do preço, em razão de eventual diminuição do valor da coisa decorre do defeito, além de indenização por perdas e danos (art. 18, § 1º, do CDC). (...) Ora, justamente em razão do critério da vida útil, a garantia legal, ou seja, aquela que decorre do CDC, pode chegar a dois ou três anos após a data de aquisição do bem, sem necessidade de pagamento de qualquer valor adicional. Portanto, não se vê qualquer vantagem em adquirir a garantia estendida. Se a contagem do prazo para reclamar dos vícios do produto for realizada corretamente – considerando o critério da vida útil –, o CDC já oferece proteção adequada e suficiente aos interesses do consumidor. É incorreto, inclusive, falar-se em extensão de garantia”.
Do exposto, constata-se que a garantia estendida limita-se a ser mais um serviço posto à venda no mercado de consumo, sobre o qual atua poderoso marketing, porém nada tendo que ver com o instituto da garantia contratual, este mesmo despiciendo no seio das relações consumeristas, como decorrência lógica do sistema do CDC.