6. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO LITERAL DADA À ALÍNEA “D” DO INCISO I DO ART. 11, DA LEI COMPLEMENTAR 87/96
A circulação física de mercadoria no estabelecimento de qualquer comerciante não é condição para a ocorrência do fato jurídico tributário atinente ao ICMS, seja Operações Mercantis, seja Importação, estando presente na própria Lei Complementar 87/96 a figura da circulação jurídica ou simbólica. Veja-se:
“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
III – da transmissão a terceiro de mercadoria depositada em armazém geral ou em depósito fechado, no Estado do transmitente;
IV – da transmissão de propriedade de mercadoria, ou de título que a represente, quando a mercadoria não tiver transitado pelo estabelecimento transmitente;”
Além do mencionado art. 12, também o art. 20 da Lei Complementar prevê a ocorrência de circulação jurídica (simbólica ou ficta) de mercadorias.
“Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo anterior[23], é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.”
A Lei Complementar prevê, pois, que existe o direito a crédito quando se der a circulação jurídica de bens, independentemente da ocorrência de circulação física, visto ter havido operação mercantil.
Assim, não há como se interpretar o art. 11, I, inciso “d”, literalmente dadas as prescrições contidas na Constituição Federal, e na própria Lei Complementar 87/96, definindo-se que o Estado para o qual deve haver o recolhimento do imposto sempre e inapelavelmente é aquele onde se der a entrada física da mercadoria.
Conforme GERALDO ATALIBA e CLEBER GIARDINO[24], circular, para efeitos de incidência do ICMS, não quer significar movimentação física do bem; “a circulação corresponde a uma traslação de direitos, assim entendida, fundamentalmente, a transmissão de poderes jurídicos de disposição sobre uma mercadoria. Por isso, a circulação juridicamente relevante, para efeito de ICM, é a que consubstancia transferência, ou cessão, de poderes jurídicos entre pessoas privadas, sendo negociante o cedente”.
Realizada uma operação entre as partes, no caso de aquisição de mercadoria, o adquirente passa a ser titular do produto adquirido, tendo sobre ele disponibilidade jurídica, inclusive para transferi-lo a terceiros.
O fato de o bem não ser fisicamente entregue ao adquirente, não afasta a constatação de que este já é o seu novo proprietário, dados os atos jurídicos celebrados.
Assim, a previsão contida no final da alínea “d” do art. 11 da Lei Complementar 87/96, interpretada literalmente, tal como vem sendo realizado, não se coaduna com a estrutura constitucional do ICMS Importação.
A manutenção da interpretação literal de referido comando legal também traz consequências de ordem prática, atinentes à não cumulatividade do ICMS.
6.1 Da ofensa à não cumulatividade constitucionalmente prevista
6.1.1. A estruturação da não cumulatividade no sistema jurídico nacional
A obrigatoriedade de submissão do ICMS à não cumulatividade é preceito constitucional, previsto em seu art. 155, § 2º, II, delimitando a formatação a ser dada ao tributo pelo legislador estadual ou distrital.
Trata-se, pois, de característica essencial do desenho constitucional do ICMS em razão da qual, conforme ROQUE ANTONIO CARRAZZA,[25] “o montante de tributo devido, em cada operação ou prestação, deve ser deduzido nas posteriores, realizada pelo mesmo ou por outros contribuintes”, de tal forma que “o imposto devido em cada operação ou prestação se transforma num ‘crédito fiscal’, a ser abatido do quantum de ICMS a recolher em virtude da celebração de novas operações ou prestações”.
Caracterizando-se como imposição constitucional que de nenhum modo pode ser desafiada por qualquer instrumento normativo, tem ela eficácia plena, não dependendo de qualquer outro comando de hierarquia inferior para emanar os seus efeitos.
Tendo em vista que a não cumulatividade tem lugar por toda a cadeia produtiva e comercial, também é aplicada em face das importações, de tal forma que o imposto recolhido no desembaraço aduaneiro será lançado a título de crédito na escrita fiscal do estabelecimento do contribuinte, sendo utilizado, juntamente com os demais créditos tomados, para compensação do imposto incidente sobre as saídas de mercadorias tributadas.
6.1.2. Da ausência de previsão legislativa para a aplicação da não cumulatividade segundo a interpretação literal do art. 11, I, “d”, da Lei Complementar 87/96
De acordo com o art. 12, IX, da Lei Complementar 87/96, o ICMS Importação há de ser recolhido quando da realização do despacho aduaneiro pelo contribuinte do imposto – sujeito que realiza a operação relativa à circulação de mercadoria importada do exterior[26].
Recolhido o imposto por contribuinte pessoa jurídica, dada a não cumulatividade prevista constitucionalmente, o respectivo montante será considerado crédito a ser abatido em face do ICMS Operações Mercantis incidente nas operações subsequentes.
De acordo com o caput do art. 20 da Lei Complementar 87/96, “para a compensação a que se refere o artigo anterior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento”, esclarecendo o art. 25 que “os débitos e créditos devem ser apurados em cada estabelecimento, compensando-se os saldos credores e devedores entre os estabelecimentos do mesmo sujeito passivo localizados no Estado”.
Como se vê, para fins de apuração do ICMS Operações Mercantis, a não cumulatividade será operacionalizada em face de cada um dos estabelecimentos do contribuinte, havendo a possibilidade de compensação entre estabelecimentos tão-somente quando estiverem localizados em um mesmo Estado.
E aqui se tem o problema ao se exigir, dada a interpretação literal do art. 11, I, “d”, o ICMS Importação no Estado no qual se der a entrada física da mercadoria, a despeito de ali não estar estabelecido o sujeito passivo do imposto.
Para compreensão da questão, imagine-se situação hipotética em que um contribuinte com estabelecimento único, localizado no Estado de Minas Gerais, realiza operação relativa à circulação de mercadoria importada do exterior, tendo esta entrado no Brasil por intermédio do porto de Recife. Concomitantemente à chegada da mercadoria ao País, um cliente estabelecido na Bahia manifesta o interesse de comprar exatamente o bem importado. Pode também tal importação se dar em razão de encomenda realizada pelo contribuinte baiano.
Obviamente, em vez de a mercadoria desembaraçada ser enviada para o estabelecimento do comerciante mineiro, com a consequente realização de sua entrada física no Estado de Minas Gerais para, posteriormente, ser encaminhada para o Estado da Bahia, o comerciante a despacha diretamente do Porto do Recife para o seu cliente baiano.
De acordo com a interpretação sistêmica até aqui realizada, e seguindo-se os desígnios constitucionais, o procedimento a ser adotado seria o seguinte.
a) tendo em vista que o contribuinte do ICMS, nos termos do art. 4º da Lei Complementar 87/96, é a pessoa jurídica que realiza operações relativas à circulação de mercadoria, ainda que as operações se iniciem no exterior, o sujeito passivo, quando do seu desembaraço, recolhe o ICMS Importação ao Estado de Minas Gerais, onde está estabelecido. Ato contínuo, realiza a entrada simbólica dos bens importados em seu estabelecimento, lançando o valor do imposto recolhido em sua escrita fiscal como crédito a ser abatido do tributo incidente em outras operações por ele realizadas;
b) tendo em vista a aquisição da mercadoria importada pelo contribuinte estabelecido no Estado do Bahia, o comerciante mineiro emite, por intermédio de seu estabelecimento localizado em Minas Gerais, nota fiscal de venda da mercadoria contra seu cliente estabelecido no Estado da Bahia, destacando o ICMS devido na operação interestadual. O imposto incidente na operação e destacado em nota fiscal é, igualmente, lançado como débito no Livro de Apuração do ICMS do estabelecimento;
c) o comerciante mineiro, então, emite uma Nota Fiscal de simples remessa que irá acompanhar a mercadoria do Porto de Recife até o estabelecimento do adquirente da mercadoria, localizado no Estado da Bahia, fazendo menção, no corpo da nota fiscal, à operação de compra e venda de mercadoria celebrada entre ele, importador da mercadoria (primeira operação) e o seu adquirente nacional (segunda operação); e
d) por fim, o adquirente da mercadoria comprada junto ao comerciante mineiro, ao recebê-la, toma o crédito do ICMS incidente na operação interestadual destacado na nota fiscal de venda, lançando-o em seu Livro de Apuração de ICMS o qual, seguindo a regra da não cumulatividade, será utilizado como crédito nas futuras operações mercantis a serem por ele realizadas.
Imagine-se, agora, essa mesma operação sendo realizada sob a interpretação literal do art. 11, I, “d”, da Lei Complementar 87/96.
Sob esse enfoque, o contribuinte mineiro, que realiza a operação relativa à circulação de mercadoria importada do exterior, sabedor que o bem importado será remetido para o Estado da Bahia, em decorrência de operação de compra e venda realizada com contribuinte ali localizado, recolhe o ICMS Importação para o Estado nordestino, apesar de não possuir estabelecimento em território baiano.
Lembre-se que é o comerciante mineiro quem deve recolher o dito imposto, uma vez que, de acordo com o art. 4º da Lei Complementar 87/96, “contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” e, não há dúvidas, foi ele quem realizou a operação mercantil que implicou a importação da mercadoria.
Porém, o contribuinte mineiro, que não possui estabelecimento no Estado da Bahia, não tem como tomar o crédito do imposto lá recolhido, de forma a compensá-lo em face das demais operações a serem realizadas na cadeia produtiva, inclusive com a própria operação de venda e compra realizada entre ele e o seu cliente estabelecido no Estado da Bahia, uma vez que, conforme já exposto, o art. 25 da Lei Complementar 87/96 prevê que “os débitos e créditos devem ser apurados em cada estabelecimento” e a sua transferência só é possível entre estabelecimentos localizados no mesmo Estado.
Diante desse quadro, qual o procedimento a ser adotado?
Poder-se-ia imaginar a possibilidade de o contribuinte mineiro, após o recolhimento do ICMS Importação ao Estado da Bahia, emitir nota fiscal de entrada simbólica da mercadoria contra seu próprio estabelecimento, com o destaque do imposto já recolhido, lançando-o em sua escrita fiscal. Neste caso, o Estado de Minas Gerais teria que suportar o crédito de imposto que não foi recolhido aos seus cofres, e que será utilizado para abater do ICMS Operações Mercantis em face das saídas tributadas ocorridas naquele Estado.
Imaginando-se que essa fosse a única operação realizada ao longo de um mês, o Estado de Minas Gerais, além de não ter recebido qualquer valor a título de ICMS Importação, ainda teria um débito escritural com o contribuinte mineiro.
Se dada essa mesma hipótese, não for autorizado ao contribuinte mineiro o creditamento do imposto recolhido para o Estado da Bahia em face de seu estabelecimento, terá ele que pagar o ICMS incidente na importação (18%) e mais aquele incidente na operação interestadual, referente à venda da mercadoria para o Estado da Bahia (4%)[27], arcando, portanto, com um imposto de 22%; ou seja, a não cumulatividade deixará de ser operante.
Deixa-se claro que não se está querendo justificar a inconstitucionalidade da exigência do ICMS Importação pelo Estado do destino final da mercadoria (em decorrência de operação subsequente à que implicou a importação do bem) a partir de questões atinentes a obrigações acessórias ou contábeis. Obviamente que o norte de toda análise é a Constituição Federal e foi isso o que se demonstrou até agora.
Sabe-se, por óbvio que, conforme GERALDO ATALIBA E CLEBER GIARDINO[28], “como norma inaugural e primeira na ordenação jurídica, não pode a Constituição ser interpretada à luz da lei. Pelo contrário, é imperioso abstrair a legislação para corretamente apreender-se o exato conteúdo do texto constitucional. A lei é que deve adequar-se à Constituição, e não esta àquela”.
O que se demonstra é que, caso seja adotada como válida a determinação contida na Lei Complementar 87/96, com a interpretação literal do seu art. 11, I, “d”, no que tange ao recolhimento do ICMS no local onde se der a entrada física do bem, não há na própria legislação complementar, que tem por fim precípuo resolver questões de conflito de competência, solução para se evitar a quebra do pacto federativo e da não cumulatividade constitucionalmente previstos.
Assim, repita-se: ou se busca uma interpretação sistêmica que harmonize todas as circunstâncias que envolvem o ICMS Importação tratadas na Lei Complementar, ou constata-se que a determinação de que o imposto deverá ser recolhido para o Estado no qual se der a entrada física da mercadoria é inconstitucional, por não guardar consonância com a estruturação possível imposta pela Constituição Federal.
E, conforme se passa a demonstrar, é possível realizar a interpretação do art. 11, I, “d”, da Lei Complementar 87/96 de acordo com as diretrizes da Constituição Federal.
7. DA INTERPRETAÇÃO SISTÊMICA DO ART. 11, I, “D”, DA LEI COMPLEMENTAR 87/96.
A interpretação do art. 11, I, “d”, da Lei Complementar 87/96 de acordo com os desígnios da Constituição Federal passa, necessariamente, pela definição de conceitos contidos nesta própria lei.
Conforme já repisado, o sujeito passivo do ICMS Importação é aquele que realiza a operação relativa à circulação de mercadoria importada do exterior (art. 4º).
Além disso, segundo referida lei complementar, não se exige que, para que se perfaça a operação, a mercadoria comercializada circule fisicamente pelo estabelecimento do vendedor ou do adquirente; ou seja, a circulação de mercadoria pode ocorrer de maneira efetiva – com a sua circulação física – ou de maneira simbólica (art. 12, III e IV e art. 20).
Assim, ainda que a mercadoria objeto de operação de circulação decorrente de importação entre simbolicamente no estabelecimento do adquirente, o ICMS Importação será recolhido ao Estado onde estiver estabelecido aquele que realizou a operação.
Por outro lado, no que tange à incidência do ICMS, os estabelecimentos dos contribuintes são autônomos entre si para fins de se dar efetividade à não cumulatividade (art. 20).
Nesse sentido, é absolutamente factível que uma mesma empresa possua estabelecimentos em vários Estados da Federação e, neste caso, caberia o questionamento sobre para qual Estado o ICMS Importação seria recolhido no caso de a pessoa jurídica realizar a operação de circulação de mercadoria.
E aqui, visando à evitar conflitos de competência, vem o art. 11, I, “d”, da Lei Complementar 87/96 evitar a celeuma, determinando que o ICMS Importação será devido para o Estado onde estiver localizado o estabelecimento do contribuinte onde ocorrer a entrada física do bem.
Poder-se-ia alegar, dada a interpretação ora realizada, que, se a operação mercantil for comprovadamente realizada por intermédio de outro estabelecimento, que não aquele por intermédio do qual ocorreu a entrada física do bem ou mercadoria (aqui se fala “bem”, ou “mercadoria”, já que a pessoa jurídica pode realizar a importação de bens que não se destinam à mercancia), não haveria que se impor a sujeição passiva a outro estabelecimento, localizado em Estado diverso, apenas porque o bem importado foi diretamente para lá remetido.
Porém, não há que se confundir a sociedade, pessoa jurídica sujeito de direitos e de obrigações, com suas unidades autônomas, por intermédio das quais os atos de comércio são praticados.
De acordo com o Código Civil, “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados” (art. 981), começando “a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro” (art. 45), obrigando-se estas por intermédio dos “atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo” (art. 47).
Além disso, tem-se que a sociedade, sujeito de direito com personalidade jurídica que se obriga por intermédio de seus administradores, é constituída para um determinado fim, denominando-se “empresa” a atividade produtiva.
Essa é a conclusão de FÁBIO ULHOA COELHO[29], segundo quem “em termos técnicos, contudo, empresa é a atividade, e não a pessoa que a explora”. E continua: “a empresa pode ser explorada por uma pessoa física ou jurídica. No primeiro caso, o exercente da atividade econômica se chama empresário individual; no segundo, sociedade empresária”.
RUBENS REQUIÃO[30] esclarece que “a principal distinção, e a mais didática, entre empresa e sociedade comercial é a que vê na sociedade, o sujeito de direito, e na empresa, mesmo como exercício de atividade, o objeto de direito”, podendo, inclusive, “haver sociedade empresarial sem empresa”, já que, enquanto a sociedade estiver inativa, a empresa não surge.
Nesse contexto, deve ser verificada a natureza jurídica do estabelecimento, definido pelo art. 1.142 do Código Civil como “todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”.
Tal conceito foi esclarecido por FÁBIO ULHOA COELHO[31]: “estabelecimento empresarial é o conjunto de bens que o empresário reúne para exploração de sua atividade econômica. Compreende os bens indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa, como as mercadorias em estoque, máquinas, veículos, marca e outros sinais distintivos, tecnologia etc. Trata-se de elemento indissociável à empresa. Não existe como dar início à exploração de qualquer atividade empresarial, sem a organização do estabelecimento”.
Analisando-se a questão sob enfoque prático, tem-se que uma sociedade, enquanto detentora de personalidade jurídica e, portanto, sujeito de direitos, estabelece com terceiros relações que dizem respeito ao objetivo para o qual foi criada, mediante seus representantes legais. Já o desenvolvimento da atividade social da pessoa jurídica – empresa –, decorrente das relações firmadas com terceiros, se dá por intermédio de seus estabelecimentos.
Trazendo-se essa constatação ao tema sob análise, tem-se que o ICMS Operações Mercantis ou Importação possui como hipótese de incidência a realização de uma operação de circulação de mercadorias ou bens em geral.
Tal operação é celebrada pela pessoa jurídica que, por meio de seus estabelecimentos, complexo organizado para o exercício da empresa, realiza a circulação de bens.
Portanto, não é o estabelecimento que celebra a operação, mas a pessoa jurídica, sendo que é a circulação de bens que é efetivada via estabelecimentos. Trata-se, pois, de materialidades distintas.
Assim, está-se diante de uma sobreposição de conceitos, quais sejam, de sociedade e de estabelecimento, possuindo cada qual significação distinta e que deve ser considerada pelo direito tributário na instituição e interpretação de suas regras, sendo que a legislação tributária, no caso, a legislação complementar, não pode desconsiderar ditos conceitos, inerentes a outros ramos do direito.
Conforme RUBENS GOMES DE SOUSA[32] “o objeto do direito tributário (...) é regular a cobrança de tributos. Ora, para que um tributo possa ser cobrado, é evidentemente necessário que a lei que o institui defina claramente as hipóteses em que ele seja devido. Essas hipóteses configurarão, necessariamente, fatos naturais (p. ex. o falecimento) ou atos jurídicos (p. ex. os contratos), ou ainda fenômenos econômicos (p. ex. a renda). Ora, esses fatos, atos ou fenômenos, naturais, jurídicos ou econômicos, já estão todos, ou praticamente todos, regulados pelo direito privado, isto é, pelo direito civil ou pelo direito comercial: de modo que o direito tributário, quando queira adotar um dentre eles como base de tributação, fará simplesmente referência à denominação do conceito ou instituto, que o regula no direito privado. Desta forma, o direito tributário entra em relação com o direito privado, adotando os mesmo institutos já regulados por este, para deles fazer a base da tributação”.
Nesse sentido, não há que se olvidar os termos do art. 110 do Código Tributário Nacional, segundo o qual “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.
Sob esse enfoque e dado o critério material do ICMS é que se deve analisar o § 3º do art. 11 da Lei Complementar 87/96, segundo o qual, “para efeito desta Lei Complementar, estabelecimento é o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias”.
Adotadas tais premissas, volta-se novamente ao ICMS Importação.
A operação relativa à circulação de bens importados do exterior é realizada por uma pessoa jurídica que, para o desenvolvimento de sua atividade, pode possuir um único ou vários estabelecimentos. Porém, conforme demonstrado, há de se deixar claro: a operação não é realizada por um ou por outro estabelecimento, mas sim pela pessoa jurídica.
Portanto, para fins de incidência do ICMS Importação, que tem por objeto a operação relativa à circulação de mercadoria ou bens, duas são as variantes a serem consideradas: (a) a existência de uma pessoa jurídica que celebra o contrato, estabelecendo uma relação jurídica com terceiro visando à circulação de um bem; e (b) a própria circulação do bem, que pode ocorrer por intermédio de qualquer estabelecimento da pessoa jurídica.
Tratando-se de um imposto de natureza Estadual, a definição do local por intermédio do qual se realizou a circulação é essencial para definição, também, do sujeito ativo do imposto.
Nesse momento é que se tem a manifestação pura do papel da lei complementar, qual seja, o de dirimir conflitos de competência, a qual, nesse papel, deve determinar, nos casos em que a pessoa jurídica, detentora de personalidade jurídica e, portanto, de capacidade para celebração de negócios jurídicos, possuir vários estabelecimentos, para qual Estado deverá ser recolhido o imposto.
E a eleição do legislador complementar, sob o amparo constitucional, foi o de definir que o imposto será devido, nestes casos, ao Estado no qual se der a entrada física do bem, tratando-se, pois, de regra de exceção ante a regra geral segundo a qual o ICMS Importação é devido ao Estado no qual estiver estabelecida a pessoa jurídica que realizar a operação relativa à circulação de bem importado do exterior.
Eis a interpretação sistêmica a ser dada ao art. 11, I, “d” da Lei Complementar 86/97: realizada a importação por contribuinte (pessoa jurídica) que possua estabelecimentos localizados em mais de um Estado Federativo, o ICMS será devido para aquele onde se der a entrada física do bem ou da mercadoria, evitando-se, assim, o conflito de competência entre os vários Estados nos quais a pessoa jurídica tem estabelecimento
Conclui-se, pois, que uma pessoa jurídica que possui vários estabelecimentos em diversas unidades da federação, realizando uma operação relativa à circulação de bens advindo do exterior, deverá recolher o ICMS Importação ao Estado no qual se der a sua entrada física.
Esclarecida a celeuma que por intermédio do presente trabalho se pretende dissipar, resta necessário o enfrentamento de outra questão correlata, sendo prudente, para tal, a análise de caso hipotético.
Imaginando-se que uma pessoa jurídica tenha estabelecimentos em vários Estados da Federação, onde deverá ser recolhido o ICMS Importação no caso de a mercadoria importada não transitar por nenhum de seus estabelecimentos e ser enviada diretamente para um adquirente que, em segunda operação mercantil, adquire o bem importado?
Seguindo-se a interpretação sistêmica até aqui adotada, a conclusão é a de que, possuindo a pessoa jurídica estabelecimento no mesmo Estado em que o adquirente dos bens importados (segunda operação jurídica) esteja estabelecido, para aquele Estado deverá ser recolhido o tributo. Isso porque, se naquele Estado possui estrutura por intermédio da qual exerce sua atividade empresarial, há de se considerar que por ali realizou as negociações[33].
No caso de a pessoa jurídica não possuir estabelecimento no mesmo Estado em que o adquirente dos bens importados (segunda operação jurídica) esteja estabelecido, o imposto deverá ser recolhido para o Estado onde esteja localizado o estabelecimento por intermédio do qual efetivamente se realizaram os atos que deram ensejo à operação mercantil.
Isso porque, de acordo com o art. 11. § 3º, I da Lei Complementar 87/96, “na impossibilidade de determinação do estabelecimento, considera-se como tal o local em que tenha sido efetuada a operação ou prestação, encontrada a mercadoria ou constatada a prestação”; além disso, o art. 75 do Código Civil prevê que, “tendo a pessoa jurídica diversos estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados”.
Por fim, caso restem dúvidas quanto à realização do ato, esta deve ser dissipada por intermédio de provas.