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Direito, sociedade e cultura na chamada Idade Média

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Agenda 06/09/2014 às 14:18

Trata da evolução e historicidade do Direito, da sociedade e da cultura na "Idade Média", desfazendo mitos sobre vários aspectos relevantes.

Este trabalho tem por finalidade contribuir para o desmascaramento da mitificação ideológica produzida inclusive por meio de livros, especialmente dos graus de ensino básico e médio, supostamente “didáticos” e “professores” de história, dentre outros indivíduos ignorantes ou mal intencionados, sobre a chamada “Idade Média”, frequentemente ligada a atrocidades, trevas do intelecto, das humanidades (entre elas o Direito), travamento das ciências e das artes etc.

Em primeiro lugar é preciso salientar que nem todas as obras são viciadas pela mentira ou pela suposta “pesquisa” histórica que ao invés de se sustentar cientificamente no exame minucioso de documentos, se baseia em historietas e lugares-comuns confortáveis, frequentemente a serviço de ideologias que mascaram a realidade. Mais que isso, é preciso deixar claro que não se está falando de todos os professores de história, aliás, não se está falando propriamente de professores de história, por isso o uso das aspas na palavra “professores” acima. Deixe-se esclarecido que não há aqui referência aos historiadores e professores sérios, mas a indivíduos e grupos que não passam de simuladores, muitas vezes dotados de diplomas e títulos. É dessa espécie de indivíduos que se está falando doravante quando são usadas entre aspas as palavras “professores” e “historiadores”.

O referencial teórico que norteará este trabalho é o livro “O Mito da Idade Média”, de Régine Pernoud, [1] muito embora a pesquisa séria sobre essa fase histórica seja dotada de muitas outras referências valorosas da própria autora e de outros pesquisadores de qualidade. [2]

Na realidade uma resenha do trabalho de Pernoud acima destacado será mais que suficiente para indicar os mitos, ignorâncias, mentiras deslavadas e anacronismos, afora a má fé da desinformação existente sobre o tema e, infelizmente, inculcados nas mentes da maioria das pessoas, inclusive das supostamente cultas.

Essas distorções são responsáveis pela prodigalização de expressões pejorativas como “voltamos à Idade Média”, “mentalidade medieval”, “idade das trevas” etc.

Uma primeira dessas distorções é apresentada por Pernoud quanto a uma frase atribuída ao líder do chamado “Massacre de Béziers”, de 1209. Numa cruzada contra os chamados cátaros abrigados na localidade de Béziers (uma comuna francesa) [3], afirma-se que, na dificuldade de identificar entre os habitantes quais seriam adeptos do catarismo, foi expedida uma ordem pelo líder da cruzada com a seguinte frase emblemática: “Matem-nos todos, Deus reconhecerá os seus” (sic). Pois bem, essa contrafação histórica é repetida há muito tempo (o leitor curioso faça uma pesquisa no Google e comprovará a avalanche de desinformação existente sobre o tema). Por que se trata de uma contrafação repetida acriticamente? Porque hoje, há bem mais de 100 anos (mais especificamente em 1866) foi demonstrado que a frase sobredita não poderia ter sido pronunciada, já que não há fontes históricas da época que a indiquem. Sua citação é baseada, pasmem, no chamado “Livro dos Milagres”, que não é de forma alguma um documento histórico, mas obra ficcional e, ademais, foi produzido aproximadamente 60 anos depois dos acontecimentos por um monge alemão de nome Cesário de Heisterbach, conhecido por sua imaginação prodigiosa e total falta de escrúpulos em termos de “autenticidade histórica”. É esse o “documento” que dá base à “pesquisa” (sic) “histórica” (sic) sobre o suposto acontecimento. A partir de 1866 nenhum historiador sério faz referência à frase sobredita, mas muitos que se arvoram em escrever sobre história sem uma pesquisa correta ainda a utilizam. [4]

Mas, isso é apenas um aperitivo quanto às bobagens alardeadas como se fossem fruto de uma genuína pesquisa histórica.

Certamente uma das maiores manobras de desinformação [5] encontra-se na divisão arbitrária das “idades” históricas em “Antiguidade ou Idade Antiga”, “Idade Média”, “Renascimento”, “Idade Moderna ou Modernidade” e agora quando alguns falam no chamado “Pós – Modernismo”.

Logo se percebe que o período nominado como “Idade Média”, uma faixa bem considerável de ao menos mil anos, passa uma mensagem inglória de um tempo intermediário onde possivelmente nada de relevante teria acontecido. Apenas um lapso temporal na história da humanidade entre a Antiguidade e o Renascimento. Uma “Idade Média”, um nome sem sabor, nulo, insignificante, mero intervalo tedioso senão torturante.

Sem a necessidade de estudos profundos ou sequer superficiais da história da humanidade, qualquer pessoa com um mínimo de visão crítica, desde que não embotada por uma avalanche de desinformação, perceberia logo que é praticamente impossível que num período tão espaçoso de mil anos nada de relevante ou bom se tenha produzido nas várias atividades humanas e se tenha vivido numa estagnação total, num entrevamento sem trégua para, repentinamente, ocorrer um “renascimento” do espírito humano. A contrafação é nítida demais para passar despercebida, não fosse tão ingente o esforço de desinformação perpetrado ao longo do tempo pela própria autodenominada “ciência histórica” (sic).

Como bem ressalta Pernoud:

“Pode conceber-se mil anos sem produção poética ou literária digna desse nome? Mil anos vividos pelo homem sem que ele nada tenha exprimido de belo, de profundo, de grande sobre si próprio? A quem se faria acreditar isto? No entanto, fez-se crê-lo (...) durante perto de trezentos ou quatrocentos anos”. [6]

Ninguém menos do que Henri Matisse [7] afirmou que “o Renascimento é a decadência”.  Mas, é comum encontrar a alegação de que no século XVI as artes e as letras clássicas renascem. Na convicção arraigada dessa época e dos dois séculos seguintes teriam existindo duas épocas brilhantes, quais sejam, a Antiguidade e o Renascimento, permeadas por uma “Idade Média”, descrita como um “bloco uniforme”, “séculos grosseiros” ou “tempos obscuros”.  [8]

E é em meio a esse pensamento tão característico que se percebe, sem praticamente nenhuma discrepância entre os estudiosos, que o que caracteriza o Renascimento é exatamente uma “redescoberta da antiguidade”. Contudo, não se trata de uma redescoberta criativa, mas sim da proliferação de um “Princípio de Imitação” em relação à época clássica. [9]

Ora, logo de início essa característica do chamado “Renascimento”, que é normalmente entendido no sentido de um renascer do espírito ou do intelecto humano em todas as áreas (cultura, ciência, artes etc.), já demonstra que tal acepção do termo não se coaduna com a realidade. O “Renascimento” não é de forma alguma uma espécie de redenção do espírito humano no século XVI, mas se mostra muito mais como um “renascer”, um “imitar”, um “trazer de volta de forma reacionária” da cultura da Antiguidade. Não há propriamente um movimento que se dirige a práticas e pensamentos originais. Não, somente o que ocorre é uma volta ao passado, bem adaptada ao título de um filme de entretenimento de nossa época: “De volta para o futuro”. Toda glamorização do chamado “Renascimento” já parte de uma nomeação indevida do período ou ao menos de uma interpretação indevida dessa nomeação. É em sutilezas dessa espécie que se dissemina a desinformação.

Mas, não é somente porque não houve nenhuma originalidade nesse período, não é porque ele é um retorno à Antiguidade e não um passo adiante, que se pode constatar uma contrafação histórica na sua apresentação corrente. Observe-se, por oportuno, que o revisitar dos saberes e obras da Antiguidade não tem em si nenhum mal, muito ao reverso, trata-se de exercício profícuo ainda hoje. O mal está em pretender apresentar um movimento de caráter retrógrado [10] como uma evolução ou até revolução, o mal está em apropriar-se do real e distorcê-lo para fazer parecer que um período de mil anos antecedente foi uma espécie de vácuo inóspito. Enfim, como se insistirá neste texto, o grande mal está em perseverar na desinformação.

Tanto é fato que revisitar a Antiguidade e toda sua riqueza não é de forma alguma um mal em si que uma das coisas ocultas na apresentação dos períodos históricos, a deixar uma lacuna inexplicável entre eles, mais especificamente entre o “Renascimento” e a “Idade Média”, é o fato de que aqueles que viveram o chamado “Renascimento” não poderiam ter acesso aos tesouros da Antiguidade se no período da “Idade Média” ninguém houvesse se ocupado em preservar esses saberes e obras. Ou talvez, muito ao contrário, houvesse se ocupado de destruí-los em meio a uma obscuridade dominante. Portanto, novamente basta uma libertação da desinformação e um mínimo de espírito crítico para perceber que o conhecimento do mundo antigo não é apanágio do “Renascimento”, já havendo um cultivo incessante ao longo dos tempos. Pernoud exemplifica com a relevância de “A arte de mar” de Ovídio a partir do século XI e os estudos profundos da filosofia aristotélica desenvolvidos ao longo do século XIII. Nas palavras da autora:

“Basta o simples bom senso para levar a compreender que o Renascimento não teria podido dar-se se os textos antigos não tivessem sido conservados em manuscritos recopiados durante os séculos medievais”. [11]

Trazendo outra informação importante, Pernoud aponta para o fato de que muita gente, até de boa fé, pensa que os saberes transmitidos na área da arquitetura clássica por um autor como Vitrúvio [12] foram produto de um descobrimento ou redescobrimento do “Renascimento” quando, na verdade, é sabido que seus manuscritos eram numerosos nos acervos das bibliotecas medievais. [13] Aliás, foi ali que no chamado “Renascimento” se teve acesso a toda essa riqueza.

Interessante notar que enquanto um período imitativo é chamado de “Renascimento”, na literatura, por exemplo, é na denominada “Idade Média” que os franceses desenvolvem o “espírito épico” na literatura e criam um gênero novo que é o “romance”, absolutamente desconhecido na Antiguidade. No mesmo período nasce a “lírica cortês” a enriquecer a arte poética. [14]

Não é incomum que se façam vistas grossas à exuberância artística medieval. No entanto, outra postura que quer aparentar uma espécie de “crítica produtiva” ou “iluminada” (sic) pretende fazer crer que há na arte medieval uma colonização pela Religião. Efetivamente é inegável que muito da arte medieval se liga ao sagrado. No entanto, é de uma extrema ignorância histórica ou de uma distorção dolosa da realidade respectivamente não saber o que se diz ou fingir não saber o que se sabe no que tange a que a arte e sua ligação com o sagrado é um fato concreto que segue a humanidade desde as suas origens, bem como que a desvinculação da arte do sagrado tem sido um fator visível de decadência artística. O falseamento é explícito quando se pretende impor a pecha de colonização da arte pelo religioso exatamente na chamada “Idade Média”, quando se trata de um fenômeno praticamente perene na história humana desde as suas mais longínquas origens. [15]

A invenção do livro também não é obra do “Iluminismo” do século XVIII nem muito menos do “Renascimento” (como há muitos que assim pensam) e sim da “Idade Média”, quando são substituídos os “rolos antigos” pelo livro na forma similar a que temos hoje. No mesmo período ocorre um florescimento na poesia e na música, donde surge, por exemplo, o conhecido “canto gregoriano” no século VII. O problema é que somente alguns grandes especialistas são conhecedores dos nomes ilustrados das letras e artes da alta Idade Média. Não obstante, isso não significa que sejam desimportantes ou, pior, que não existam. [16] Se tudo que é do desconhecimento geral não existisse seria muito limitado o universo, afinal, como ensina a máxima que se atribui a Einstein, é fato que a infinitude do universo é razoavelmente segura, embora não absolutamente certa, mas a infinitude da estupidez humana é algo incontestável.

Narrativas como “O Rei Arthur”, “A Távola Redonda” e a “Busca do Graal” têm em si incrustados valores e instituições do medievo, tais como os ideais da “cavalaria”. São visíveis ali os traços sociais nada “grosseiros” de um tempo tão difamado. O que se pode apreender é a importância dada aos liames pessoais, o ideal do cavaleiro como homem culto e cortês, fiel à palavra dada, honesto, honrado e que tem na figura da mulher uma verdadeira soberana à qual deve respeito. É de assustar como pode ser que obras tão enriquecedoras e civilizatórias possam ter sido ignoradas, inclusive na seara da educação. [17]

No “Renascimento” é constatável a recuperação dessa cultura medieval na área literária pela obra de Cervantes (Dom Quixote), quando põe em relevo, num estilo barroco próprio de sua época, os ideais de nobreza da cavalaria no personagem Dom Quixote e o lado materialista, animalesco e rústico em Sancho Pança. Com sua alma sensível, Cervantes não se deixa perder no realismo picaresco típico do “Renascimento” e, ainda que sob um tom humorístico e jocoso, deixa bem à vista os valores dos ideais humanos presentes na cavalaria medieval. Apenas, dá ênfase ao jogo eterno entre luzes e sombras que compõem a aventura humana na Terra. [18]

Na seara do teatro pululam no século XV e mais intensamente no século XVI “corporações” (palavra originária do século XVIII), as quais limitam o exercício da arte teatral. Algo muito semelhante ao excesso de regulamentação que se intenta impor hoje em dia, por exemplo, com relação ao jornalismo. Fato é que se costuma atribuir essa limitação da arte teatral ao século XIII, ligando-a à Idade Média, quando é, como exposto acima, produto do “Renascimento” (séculos XV e XVI) quando surgem os grupamentos e óbices e do século XVIII, em pleno “Iluminismo”, quando se forja o termo “corporações”. A realidade é que o teatro foi muito praticado e popular na chamada Idade Média, enquanto que o “Renascimento” representou uma verdadeira morte para o teatro, especialmente o mais popular. [19]

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No campo político e jurídico a organização social, política, econômica e jurídica sob o Regime Feudal típico da Idade Média    tem também sido objeto de afirmações equivocadas e enviesadas.

Nada mais comum do que encontrar nos manuais escolares uma descrição de senhores feudais e servos numa verdadeira luta de classes, mais próxima a um espancamento de classe, onde o senhor pisa sobre o servo num estilo nitidamente influenciado por um matiz marxista. Toda vez que nos jornais ou mesmo em conversas informais se quer referir a alguma exploração brutal e injusta, monopólios financeiros e outros temas negativos, a feudalidade vem à tona. É grito de guerra na boca de todo revolucionário histérico a abolição dos “direitos feudais” que ainda subsistem na sociedade contemporânea. [20]

Pernoud também chama a atenção para o fato de que no século XIX era comum que a feudalidade estivesse ligada a uma ideia de desorganização e anarquia sob o prisma jurídico. Ocorre que tal visão sobre o feudalismo não passa de um engano preconceituoso. Em primeiro lugar poucas organizações sociais podem ser menos anárquicas do que o Regime Feudal. Trata-se, como se sabe, de uma sociedade “fortemente hierarquizada”. [21] É fato que não havia um poder centralizado e que o Direito era consuetudinário e adaptado a cada região ou feudo. Ora, mas uma ordem atomizada não deixa de ser ordem para se tornar anarquia, da mesma forma que a existência de um aparato estatal aparentemente estruturado não significa paz social e segurança.

O feudalismo não surge do nada, mas de uma crise que desmoronou o Império Romano no século V. Esse modelo romano centralizado e juridicizado com base em leis positivas decai e surgem naturalmente grupos locais que precisam se reunir em busca de alguma segurança para seguirem com suas vidas. Numa sociedade marcantemente rural, pequeno lavradores se aproximam de indivíduos com maior capacidade para disporem de homens armados e segurança. Nesse contexto surge um contrato em que o Senhor Feudal consente em defender os Servos e estes lhe pagam com parte de sua produção. Não se trata de uma escravidão, o Servo é livre e continua dono de suas terras. Também o mesmo ocorre com o Senhor. No entanto, o contrato é bilateral, de modo que há uma relação de fidelidade em que o Servo não pode abandonar as terras e também, em contrapartida, não o pode fazer o Senhor com relação à região onde exerce seu poder. Ambos estão presos à terra. A servidão é comum ao Senhor e ao Servo, pois é uma servidão à terra, não a submissão de um homem a outro, como se um deles fosse uma coisa e apenas o outro uma pessoa. Efetivamente a palavra “feudal” tem origem etimológica germânica ou celta em “fief”, “feodum”, designando “o direito que se desfruta sobre qualquer bem, geralmente uma terra: não se trata duma propriedade, mas dum usufruto, dum direito de uso”. [22]

Também, como visto, a época feudal não é marcada pela barbárie sob o ponto de vista jurídico, mas por um Direito Consuetudinário muito respeitado e tradicional. Neste aspecto a época feudal é muito mais pluralista do que o Império Romano sob o ponto de vista jurídico. É claro que para o jurista, inclusive para o jurista contemporâneo, fortemente marcado por um modelo romano – germânico centralizado e uniforme, o sistema feudal pode realmente apresentar-se como arbitrário, inseguro e até mesmo anárquico. Contudo, nessa época em discussão era usual uma liberalidade que respeitava a condição individual de cada um, sendo fato que um homem, ao ser, por exemplo, acusado de um crime, era julgado pela lei de sua terra e não pela do lugar onde se achava. A primeira indagação a ele dirigida em seu interrogatório era: “Qual é a tua lei”? [23] Disso se pode concluir que o regime feudal é sim complexo, polimorfo em termos jurídicos, mas não que é anárquico ou arbitrário. Embora esse erro de perspectiva seja muitíssimo comum, mesmo entre supostos historiadores do Direito.

Pernoud ressalta a importância do Costume na época feudal:

“Ora, precisamente, toda a vontade individual se encontra limitada e determinada por aquilo que foi a grande força da idade feudal: o costume. Não se compreenderá nunca o que foi essa sociedade se se desconhecer o costume, isto é, esse conjunto de usos nascidos de fatos concretos e que tiram o poder do tempo que os consagra; a sua dinâmica é a da tradição, um dado, mas um dado vivo, não estagnado, sempre suscetível de evolução, sem nunca ser submetido a uma vontade particular”. [24]

Nem barbárie, nem anarquia, nem arbítrio, nem diluição do indivíduo e seus direitos, nem escravidão. O Servo não é escravo, não é coisa, é homem livre, proprietário de bens e da própria terra, ligado ao Senhor Feudal por um contrato de obrigações mútuas sempre subordinando o homem (Senhor ou Servo) à terra.

Muitas lendas infundadas são construídas em torno do feudalismo. Um exemplo típico apontado por Pernoud é o chamado “Direito de Pernada” que consistiria no fato de que os Senhores Feudais teriam o “direito” de passar a primeira noite de núpcias com a esposa dos Servos, direito este jamais comprovado historicamente em documentos confiáveis a não ser em lendas e historietas ficcionais. A confusão e o preconceito com a Idade Média são tão grandes que um imposto criado contra os camponeses em 1720 (portanto, em pleno século XVIII – era do chamado “Iluminismo”) é frequentemente atribuído à época feudal e confundido com o imposto senhorial que correspondia, na verdade, à paga pelo fornecimento de segurança aos Servos. [25]

Impagável, porém, é o uso indefinido do termo “burguesia”, por exemplo, no “Manifesto” de Karl Marx de 1847, revelando o estado lastimável da ciência histórica em que toda sua teoria se baseia. Marx chega ao cúmulo do absurdo de fixar o século XVIII como o início de uma “luta contra o absolutismo feudal” (sic), atribuindo à “burguesia” uma atuação essencialmente “revolucionária” na história, de modo que teria sido ela que teria resgatado os campesinos de “um estado de torpor e de barbárie latentes”. Essas afirmações não encontram nenhuma sustentação para o historiador contemporâneo minimamente informado e não passam de “erros de vocabulário, necessários intelectualmente se se quer manter a todo preço o esquema feudalidade – burguesia – proletariado”. [26] Trata-se de ideologia da pior espécie conspurcando e maltratando a cientificidade da História.

Muito ao reverso:

“Se nos quisermos apoiar em fatos históricos e não justificar noções a priori, é preciso reconhecer que a origem e expansão da burguesia coincidem exatamente no tempo com a grande expansão do regime feudal. É nos primeiros anos do século XI que aparece nos textos a própria palavra ‘burguês’; e é durante o período propriamente feudal (séculos XI – XII – XIII) que tiveram lugar as grandes criações de cidades novas, as instituições de comunas, a redação pelas cidades de seus estatutos etc.”.  Neste contexto, o menos que se pode fazer é “salientar a inconseqüência dos historiadores marxistas que pretendem apoiar-se na história, mas que negam a esta o direito de ter progredido em século e meio aproximadamente”. [27]

Já foi salientado ao longo deste trabalho que não há qualquer base de aproximação entre a instituição da escravidão e o feudalismo. No entanto, é visível que há um ingente esforço em fazer ideologicamente essa aproximação, desprezando, como é comum nesses casos, qualquer espécie de preocupação com a verdade dos dados históricos.

A escravatura é um traço muito mais marcante do período histórico da Antiguidade. Mesmo assim, uma rápida olhada nos manuais de História demonstra com que discrição e parcimônia a questão é discutida com relação a esse período onde floresceu de forma mais imponente. Praticamente não se menciona que a escravidão é eliminada no início da “alta Idade Média” e que reaparece exatamente naquilo que se designa como “Renascimento”, ou seja, no começo do século XVI. Dificilmente se constatará em algum manual que a escravidão vai paulatinamente desaparecendo a partir do século IV. A servidão feudal é descrita em tons tenebrosos que sequer condizem com a realidade, chegando a aproximá-la muito da escravatura. Por outro lado, a vontade de fazer do “Renascimento” uma época de emersão das supostas trevas, cria um silêncio quase absoluto sobre o ressurgimento da instituição da escravidão no século XVI. [28] Se isso não é desinformação, não se sabe mais o que é.

Até mesmo contorcionismos etimológicos como a tradução espúria da palavra “servus” como se tivesse o significado de escravo em textos medievais é levada a efeito. Fato é que “não há dimensão comum entre o sevus antigo, o escravo e o servus medieval, o servo. Porque um é uma coisa e o outro é um homem”. “O servo medieval é uma pessoa tratada como tal; o seu senhor não tem sobre ele o direito de vida e de morte que o direito romano lhe reconhecia”. [29]

Como já visto, a servidão medieval enlaça Senhor e Servo à terra e não ambos entre si. O reino das coisas é bem separado do reino das pessoas, embora haja uma relação que sempre houve e sempre haverá entre pessoas e coisas e entre as pessoas reciprocamente. Contudo, não há jamais uma conversão de uma pessoa em coisa.

Esclarecedora a explicação de Pernoud:

“Na sociedade que se vê nascer nos séculos VI e VII, a vida organiza-se em volta do solo que os alimenta e o servo é aquele de quem se exige a estabilidade: deve ele permanecer no seu domínio; ele é obrigado a cultivá-lo, a cavar, a explorar, a semear e também a colher; porque, embora saiba que lhe é proibido abandonar essa terra, sabe também que terá parte do que nela colher. Em outros termos, o senhor do domínio não pode expulsá-lo, mas o servo também não pode ‘fugir’. É esta  ligação íntima entre o homem e o solo em que ele vive que constitui a servidão, porque, por outro lado, o servo tem todos os direitos do homem livre: pode casar-se, fundar família, a sua terra passará para os seus filhos depois da sua morte, assim como os bens que ele tenha podido adquirir. O senhor, notemo-lo, tem, embora noutra escala, evidentemente, as mesmas obrigações que o servo, porque ele não pode vender, alienar sua terra, nem abandoná-la.

A situação do servo é, como se vê, radicalmente diferente e sem nada de comum com a do escravo, que não tinha direito de se casar, nem de fundar uma família, nem de tirar partido fosse do que fosse da dignidade da pessoa humana: ele é um objeto que se pode comprar ou vender e sobre o qual o poder de um outro homem, o seu senhor, não tem limites”.  [30]

Não somente no que tange à espúria equivalência ou aproximação da servidão feudal da escravidão se encontram contrafações ideologizadas, mas também é constatável que a própria instituição da servidão teve novo impulso no período do “Renascimento” e mesmo em tempos modernos em países eslavos, mas num formato incomensuravelmente mais rígido para os campesinos do que o modelo da Idade Média. Nem por isso tal fato histórico é devidamente reportado nos manuais. [31]

Umas das questões mais aberrantes quanto à abordagem histórica dada à Idade Média diz respeito à posição da mulher e ao uso totalmente ideologizado e falseado dessa época por movimentos feministas. Isso não somente constitui a demonstração de uma ignorância ou de uma desonestidade intelectual patentes, como prejudica o próprio esforço quanto ao reconhecimento de um “status” social digno para as mulheres na contemporaneidade. É que a falsidade ou a ignorância, sempre que demonstradas simplesmente desmoralizam seus protagonistas e, juntamente com eles, seus pleitos, embora possam ser estes justos.

Um primeiro dado interessante é que na “Idade Média” a rainha é coroada juntamente com o rei, ao lado deste, nem acima, nem abaixo, nem atrás, nem na frente. Já no século XVII (no grande “Renascimento” (sic)), a figura da rainha some de cena.  A mulher é alijada da vida política no “Renascimento” e tem sua idade áurea no medievo. Bem ao reverso do que o senso comum produzido por anos e anos de doutrinação desinformativa leva a crer. Rainhas como Leonor de Aquitânia[32] e Branca de Castela [33] exerceram domínio incontestável em seu século. Já nos tempos clássicos a mulher está num segundo plano (e “segundo plano” é um eufemismo) porque sua influência, quando existe, é absolutamente clandestina. Sua exclusão das funções políticas e administrativas é total. Aliás, especialmente em terras latinas a mulher é considerada como um ser inferior, incapaz de reinar, de suceder numa administração e até mesmo de governar seus bens pessoais. No século XIX o papel da mulher no âmbito público e mesmo na vida privada é nulo em termos de reconhecimento de capacidade para tomar decisões. [34]    

Por isso é ridículo ver discursos feministas que imputam à “Idade Média” uma “capitis diminutio” da mulher, mesmo porque na Antiguidade e na Era do Direito Romano sua posição era semelhante à dos animais e escravos. Essa situação em comparação com as posições que mulheres são capazes de galgar no medievo revelam, muito ao reverso, um enorme progresso para que novo decréscimo de seu “status dignitatis” ocorra com o tão louvado “Renascimento” e siga pela “Modernidade” afora.

Certa vez deparei-me com um escrito panfletário absolutamente estulto em que o autor se pretendia dar ares de erudição confrontando a Religião, em especial a Católica, pelo fato de não ordenar mulheres para determinadas funções. Em seu socorro, certamente para questionar as Religiões e a religiosidade em geral, chama nada mais nada menos do que Nietzsche, o iconoclasta por excelência, dono de frases de efeito como “Deus está morto” e de títulos de livros como “Crepúsculo dos Ídolos” ou “O Anticristo”. Pois é, acontece que o animado feminista – ateu parece que jamais leu qualquer coisa de Nietzsche (1844 – 1900), senão teria visto que este destrata várias vezes não só as mulheres, as quais compara a “vacas”, mas a própria feminilidade como sinônimo de fraqueza, de impotência, de subordinação. [35]

Enquanto se estava na “opressora” (sic) “Idade Média” as mulheres gozavam de poder e influência, mas no correr do século XVII, em pleno “Renascimento” retomam-se os estudos do Direito Romano. Esse Direito é extremamente desfavorável não só às mulheres como também às crianças, tendo em vista a ereção da figura impoluta do “pater familias” que mescla funções de pai, proprietário e “sumo sacerdote” chefe absoluto da família mediante um exercício de poder sagrado e até certo ponto da história do Direito Romano, ilimitado, inclusive no que se refere à vida e à morte de seus submetidos (mulheres, escravos, crianças). Limitações especificamente a este poder de vida e morte somente vão surgir muito tardiamente já no Baixo Império. Com fulcro nesse Direito Romano patriarcal juristas como Charles Du Moulin (1500 – 1556) vão advogar a centralização estatal, mas não somente isso, também vão defender a tese de que as mulheres precisam ter seus direitos e liberdades restringidos, especialmente no casamento. [36] Penso ser bem perceptível que Du Moulin é um jurista do século XVI e não medieval (1500 – 1556).

E mais, é somente no século XVII que a mulher passa a obrigatoriamente receber o nome do marido. Também é somente na segunda metade do século XVI, com o Concílio de Trento que se passa a exigir o consentimento dos pais para o casamento dos filhos, assim como se tornaria doravante “indispensável a sanção da Igreja”. [37]

  É claro que no medievo havia os chamados “casamentos arranjados” em que as pessoas eram já dadas como noivas desde o berço. E isso tem sido usado como argumentação para afirmar que as mulheres eram oprimidas nessa época. Obviamente esse é um argumento falacioso, porque não eram apenas as pessoas do sexo feminino que eram dadas em casamento na hora do nascimento, mas também os garotos. Portanto, se havia opressão, essa era absolutamente igualitária e homogênea. Doutra banca, é costume e do gosto de muita gente imputar à Igreja, especialmente a Católica e mais especificamente a Medieval, a opressão, especialmente às mulheres, mas também a homens. Pois é, mais uma mistificação. Isso porque se houve uma “autoridade” que enfrentou essa efetiva opressão dos “casamentos arranjados” foi precisamente a Igreja. Esta atuou de forma astuta e meticulosa, ampliando no Direito Canônico os motivos de anulação, ou melhor dizendo, de nulidade [38]. A Igreja defendeu ferrenhamente o direito e a necessidade de que as uniões se dessem em pleno exercício da liberdade dos cônjuges. Segundo Pernoud, “é uma constatação que resulta da simples evidência que os progressos da livre escolha dos esposos acompanharam em toda parte os progressos da difusão do cristianismo”. Mesmo na atualidade é fato sabido que é em países de maioria cristã que a liberdade de casamento é reivindicada e reconhecida sem óbices e de acordo com as leis. Por outro lado, em países muçulmanos ou no extremo Oriente essa liberdade ocidental que parece tão natural ou “não existe ou só foi muito recentemente concedida”. [39]

Vejamos novamente o que Pernoud nos esclarece sobre toda a retórica da Igreja como instituição “opressora” (sic) e “redutora” do “status quo” feminino:

“Isto nos leva a discutir o slogan da ‘Igreja hostil à mulher’. Não nos deteremos a retomar aqui o conjunto duma questão que necessitaria de um volume à parte; também não discutiremos os disparates evidentes que têm sido proferidos neste sentido. ‘Só no século XV é que a Igreja admitiu que a mulher tinha uma alma’, afirmava candidamente, um dia, na rádio, não sei que romancista certamente animada de boas intenções, mas cuja informação apresentava algumas lacunas! Então, durante séculos, ter-se-ia batizado, confessado e admitido à Eucaristia seres sem alma! Nesse caso, por que não os animais?  Estranho que os primeiros mártires honrados como santos tenham sido mulheres, e não homens: Santa Inês, Santa Cecília, Santa Ágata e tantas outras. Triste, verdadeiramente, que Santa Blandina e Santa Genoveva tenham sido desprovidas de almas imortais. Surpreendente que uma das mais antigas pinturas das catacumbas (no cemitério de Priscila) tenha representado a Virgem do Menino, bem designada pela Estrela e pelo profeta Isaías. Finalmente,  em quem acreditar, naqueles que censuram a Igreja Medieval, precisamente, o culto da Virgem Maria, ou naqueles que afirmam que a Virgem era então considerada como uma criatura sem alma”?  [40]

A verdade é que em plena Idade Média muitas mulheres detiveram grande parcela de poder na Igreja. Havia abadessas que eram verdadeiros Senhores Feudais, acatadas com igual respeito aos seus similares do sexo masculino. Várias usavam o báculo, tal qual bispos e eram responsáveis pela administração de grandes áreas territoriais. Outro aspecto importante diz respeito ao fato de que essas mulheres rivalizavam em pé de igualdade em termos de instrução e cultura com qualquer homem da Igreja de sua época. Pernoud informa que a enciclopédia mais conhecida do século XII era de autoria de uma abadessa, Herrade de Landsberg (1125 – 1130 a 1195). Além disso, havia uma série de conventos onde homens eram submetidos ao magistério de uma mulher. [41]

Ademais, o período se encerra com a eminência de uma figura feminina, ninguém menos que Joana d’Arc, “a qual, diga-se de passagem, nunca teria podido nos séculos seguintes obter a audiência e suscitar a confiança que no fim de contas obteve”. Enfim, o Estatuto da Mulher na Idade Média, dentro e fora da Igreja, é basicamente o mesmo que o do homem. Essa condição vai sendo pouco a pouco retirada da mulher quanto mais se adentra ao chamado e aclamado “Renascimento” (sic). Outro exemplo típico desse fenômeno histórico é o surgimento das Universidades em substituição aos conventos como centros de ensino, ocasião em que é vedado o acesso às mulheres (nas Universidades obviamente). [42]

Sabe-se que a campanha sufragista pelo direito do voto das mulheres foi um dos episódios considerados marcantes para o movimento feminista. Pois é, na “Idade Média” era comum observar “as mulheres votando como os homens nas assembleias urbanas ou nas comunas rurais”. No âmbito comercial, a mulher podia, mesmo casada, abrir uma loja ou qualquer negócio, sem a menor necessidade de autorização marital, [43] fato este que não se repete após o “Renascimento” e até o século XX em muitos países, de que é exemplo o Brasil ao menos até o início da década de 60, quando a mulher casada é emancipada pela Lei 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada).  As informações fornecidas por Pernoud acima relatadas não são fruto de elucubrações, idiossincrasias, imaginação fértil, primado de hipóteses sobre fatos (ideologias) ou supostas “pesquisas” (sic) feitas com base em obras artísticas literárias como é, infelizmente, comum. Pernoud faz sua pesquisa histórica como deve ser feita, faz o trabalho de casa, como se diz popularmente, consultando atas notariais da época investigada, atas de reuniões e assembléias de comunas, enfim documentos históricos autênticos mediante os quais se pode chegar a conclusões que podem merecer o título de científicas. Fora isso o que se encontra são puerilidades, inconsequências produzidas para afagar egos ou atingir suscetibilidades de grupos que pretendem a qualquer custo obter dados para comprovar sua vitimização em sustento de ideologias e sentimentalismos autopiedosos.

Falando em documentos históricos, vale salientar que é somente por meio de um Decreto Parlamentar de 1593 (final do século XVI) que a mulher é claramente afastada do exercício de qualquer função estatal. Nessa ocasião é que a mulher é contida no âmbito doméstico. Mas, até isso lhe será retirado com o advento do Código Napoleônico, quando ela perde todo poder sobre os bens e o lar, onde passa a desempenhar nada mais do que um papel de subalternidade. Note-se que na área da educação, onde imperariam as mulheres, os tratados pedagógicos do tão aclamado “Iluminismo” (sic) são produzidos por homens como Montaigne e Jean – Jacques Rousseau. Por outro lado, o primeiro tratado de educação do qual se tem notícia histórica é obra de uma mulher medieval, Dhuoda que o produziu em versos em latim no período aproximado entre 841 – 843. [44]

A recuperação paulatina do estatuto da mulher só vai se consolidando a partir do século XX até a atualidade. Entretanto, peca por uma inconsciente desvalorização da própria feminilidade e uma vontade incontida de imitação do masculino, fato este que não encontrava semelhança nas mulheres poderosas do medievo. Nas palavras de Pernoud:

“A reação não chegou senão no nosso tempo. Aliás, ela é demasiado ilusória, digamo-lo: tudo se passa como se a mulher, deslumbrada de satisfação à ideia de ter penetrado no mundo masculino, ficasse incapaz do esforço de imaginação suplementar que lhe seria preciso para trazer a esse mundo a sua própria marca, aquela precisamente que falta à sociedade. Basta-lhe imitar o homem, ser considerada capaz de exercer as mesmas profissões, de adotar os comportamentos, e até os hábitos, em relação ao vestuário de seu parceiro, sem mesmo por a si própria a questão do que é em si contestável e que devia ser contestado. É de perguntar se ela não será movida por uma admiração inconsciente, e que se pode considerar excessiva, dum mundo masculino que ela acredita necessário e que basta copiar com tanta exatidão quanta for possível, mesmo que seja à custa da perda de sua própria identidade e negando antecipadamente a sua originalidade.

Contestações desta espécie arrastam-nos para bastante longe no mundo feudal; elas podem, no entanto, levar a desejar que esse mundo feudal seja um pouco melhor conhecido daquelas que acreditam de boa fé que a mulher ‘sai finalmente  da Idade Média’: elas têm muito que fazer para reencontrar o lugar que ocupou no seu tempo a rainha Leonor ou a  rainha Branca...”. [45]

Neste ponto é bem visível o quanto é deletéria a adesão cega a uma ideologia mal formatada, com bases errôneas e marcada pela desinformação como é a chamada “Ideologia de Gênero”. [46] Esta, por seu turno, revelando a complexidade dessas teias de mentiras e meias – verdades juntadas à ocultação de desígnios, demonstra como a mistificação negativa da “Idade Média” (a nomenclatura, como já visto, já é pejorativa, passando uma mensagem de nulidade) e a falsa glorificação do “Renascimento” (novamente a terminologia é parcial), influenciam terrivelmente o pensamento até penetrar em seu mais profundo núcleo. Digo isso porque, observando a constatação de Pernoud sobre o desejo de imitação do masculino pelo feminino, a teia de mentiras, de ideologização, produz como que uma fusão intelectual entre uma tendência existente no mal nominado “Renascimento” (sic) e o Feminismo moderno, qual seja, o ímpeto da imitação e da falta de originalidade e imaginação. A ilusão de um renascer glorioso que nada mais é do que submissão imitativa.

É chegada a hora de abordar uma das maiores fontes de desinformação sobre a “Idade Média” e a Igreja Católica, inclusive fortemente responsável pelo epíteto espúrio de “Idade das Trevas”. Trata-se da desinformação sobre as relações entre Ciência e Religião, bem como literatura, filosofia e manifestação do pensamento em geral.

Nada mais comum do que ver por aí a alegação de que Galileu, na “Idade Média”, foi queimado em uma fogueira pelo fato de afirmar que a Terra é redonda. Sem entrar no detalhe de que a Terra nunca foi propriamente redonda, mas esférica e achatada nos polos, é preciso deixar claro que Brunetto Latini (1220 – 1294 ou 1295) em sua obra “Tesoretto” já afirmava a esfericidade terrestre “em meados do século XIII” sem qualquer intromissão eclesiástica.  Só por isso algo de estranheza já deve surgir quanto à estória de Galileu. Fato é que Galileu nunca disse que a terra era “redonda” (o que, aliás, seria de uma estultice incrível) e nem mesmo esférica, simplesmente porque isso já era do conhecimento geral há séculos (quatro séculos). Afora isso Galileu nunca foi queimado vivo e sim encarcerado devido à sua alegação acerca do heliocentrismo em oposição à tese ptolomaica do geocentrismo. Tese esta, aliás, que nunca foi original da “Idade Média” ou mesmo de Ptolomeu, a não ser em alguns aspectos pontuais, pois que já era difundida na Antiguidade, sendo um de seus mais conhecidos defensores Aristóteles. Ninguém pretende aqui defender a conduta de encarcerar alguém por apresentar uma tese científica que contradiz outra tradicional. Mas, também não se pode silenciar diante de tamanha distorção histórica. Porém, o pior está por vir: acontece que o processo envolvendo Galileu jamais se passou na “Idade Média”! Tudo ocorreu em pleno “Renascimento” (sic), mais precisamente no século XVII e no ano de 1633, mesmo porque Galileu sequer nasceu na “Idade Média”, ele nasceu em 1564 e faleceu em1642.  É ainda preciso acrescer que a crise que teve lugar entre a Igreja e Galileu devido ao heliocentrismo não é típica e certamente jamais teria se passado no medievo. Isso porque na indevidamente chamada “Idade das Trevas” (sic) não se advogava uma interpretação literal da Bíblia, muito ao reverso, autores como Santo Anselmo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino acreditavam na máxima do primeiro mencionado, segundo a qual “a fé busca a razão” (“fides quaerens intellectum”). A exegese literal não é o modelo medieval, muito ao reverso, esse modelo privilegia a dialética de Platão (Santo Agostinho) e de Aristóteles (São Tomás de Aquino), contrapondo a “Lectio” à “Disputatio”, ou seja, a exegese bíblica ao debate racional das questões. [47]

Confira-se o que diz Gregório Celada Luengo na Introdução que faz à Suma Teológica:

“A verdade requer um caminho pelo qual se avança gradualmente, sem saltos bruscos, com o fim de resolver as dúvidas reais encontradas”. [48] Percebe-se claramente o espírito da época em que a fé nem desconfia da razão humana, nem se opõe a ela. [49]

Doutra banda a exegese literal bíblica é típica do “Renascimento” e da “Reforma Protestante” com os conhecidos lemas de Martinho Lutero (1483 – 1546), visando um afastamento da razão e do saber filosófico em relação à Religião: “Sola Teologia”,  “Sola scriptura”, “Sola Fide” e “Sola Gratia”. Ou seja, a Religião deveria se basear tão somente na Teologia, nas escrituras sagradas, na fé e na graça divina. É para Lutero e não para os autores medievais que a “razão é a prostituta do diabo”. [50]

Está corretíssima e bem documentada a afirmação de Pernoud, acerca de um pietismo nada medieval que surge no “Renascimento” e na “Reforma” e chega até os nossos dias:

“No século XVII os comentadores têm tendência para se prenderem apenas ao sentido literal; um pouco como alguns exegetas dos nossos dias que não estão atentos senão ao sentido histórico e resumem a Escritura a dados contingentes, sem admitir, como se fazia no tempo de Bernard de Clairvaux, [51] que um mesmo texto pode ter várias ordens de significação,  todas igualmente importantes para o crente”. [52]

Também é em plena “maravilha” do “Renascimento”, no bojo do século XVII que as inquisições por feitiçaria atingem “proporções loucas”. Isso deveria fazer pensar muito todos aqueles que apontam para o medievo como o reino obscuro da Inquisição sangrenta. Pernoud cita um posicionamento no extremo oposto à perseguição violenta, marcado, isto sim, por uma tolerância plácida, explicitado por Jean de Salisbury, então bispo de Chartres no século XII:

 “O melhor remédio contra essa doença (trata-se da feitiçaria – e o emprego desse termo por um grande pensador aproxima-o curiosamente dos psiquiatras de hoje) é apoiar-se firmemente na fé, não ligar importância a essas mentiras e não prestar atenção também a lamentáveis loucuras” (interpolação no original da autora). [53]

É esta a fala de um “obscuro religioso medieval” (sic) como diriam muitos desavisados. Não seria essa a fala de um homem contemporâneo não patologizado por ideologias ou fanatismos ao analisar crenças ou ideias divergentes das suas? Pois é, mas no século XVII, em pleno “Renascimento” (sic) preferiam queimar as pessoas, no século XVIII, no seio do “Iluminismo” (sic) preferiam guilhotinar as pessoas e no século XX, no bojo da modernidade humanista acham interessante expurgar divergentes por meio de fuzilamento em regimes socialistas. Só mesmo por obra de uma desinformação e de um viés ideológico de má fé (quando não por pura ignorância e preguiça intelectual) é possível que uma farsa tão imensa a respeito do período medieval se tenha incrustado nas mentalidades durante tanto tempo. Ao mesmo tempo que outra farsa idealizadora e romantizadora de outros períodos históricos também se tenha sustentado. 

É lapidar o questionamento de Pernoud:

“Quando se pensa no pavoroso balanço, na perda louca em vidas humanas - pior ainda do que a das duas ‘grandes guerras’... - com que se tem saudado as revoluções e a punição dos delitos de opinião no nosso século XX, pode-se perguntar se nesse domínio do delito de opinião a noção de progresso não se encontra atraiçoada. Para o historiador do ano 3000, onde estará o fanatismo? Ou a exploração do homem pelo homem? No século XIII ou no século XX”?  [54]

Não se confunda a afirmação do recrudescimento da Inquisição no século XVII com alguma pretensão a estabelecer sua origem nesse período. A Inquisição é sim originária da “Idade Média”. Foi instituída pelo Papa Gregório IX no ano de 1231, mesmo Papa que paradoxalmente assegura a independência intelectual da Universidade de Paris frente ao rei e também à Igreja, reconhecendo a “liberdade da busca filosófica e científica”. Note-se que essa estranha ambivalência de posturas pode também ser explicada pela natureza jurídica da Inquisição. Acontece que, inobstante os abusos e crueldades cometidos, a instituição da Inquisição foi, por incrível que isso possa parecer, um avanço garantista para a época. Isso porque a população em geral não era disposta a afagar hereges e supostos feiticeiros naqueles tempos sendo muito comum o uso de “justiçamentos” laicos sem qualquer controle. A Inquisição, com falhas e equívocos acaba ainda assim se tornando um marco de surgimento de uma institucionalização de regras para investigação e acusação, bem como para aplicação de reprimendas com certa proporcionalidade dentro dos limites do pensamento da época, mas não tão arbitrárias como os “justiçamentos” populares. [55] Neste aspecto há um terrível anacronismo e ignorância em imputar à Inquisição a origem das perseguições a hereges e bruxos. Na mesma medida outra costumeira afirmação insustentável que diz respeito à criação da tortura como meio de prova pela Inquisição. Ora, a tortura existe e é praticada pelos povos mais primitivos e no Oriente Antigo muito antes sequer da existência do Cristianismo. O próprio Cristo juntamente com muitas outras pessoas foi vítima de tortura durante a “via crucis” e no ato da crucifixão, ou será que aquilo tudo não era tortura, era alguma espécie de brincadeirinha? O que a Inquisição faz em relação à tortura é também uma institucionalização e um regramento, ao passo que o que acontecia antes disso era seu exercício absolutamente livre e desregrado. Objetar-se-á que o melhor seria não torturar ninguém, nem queimar ninguém em fogueiras. É verdade, é até indiscutível. Mas, fato é que não se pode atribuir historicamente a origem dessas barbaridades à Inquisição. Isso é ignorância, obscurantismo ou mesmo desinformação dolosa.

E ainda é preciso dizer mais: fato é que a partir do século XVI a Inquisição passa a ser administrada pelos reis e não mais pela Igreja, que perde muito de seu poder político no período. Nessa fase, superada a “Idade Média”, o número de vítimas da Inquisição é muitíssimo maior, incomparável mesmo, ao constatável no século XIII, em plena “Idade das Trevas” (sic). [56]

E a caridade, a proximidade aos pobres que hoje é tão alardeada por uma doutrina que se autodenomina “Teologia da Libertação”? Esses “Teólogos” que buscam raízes no marxismo de forma absolutamente esdrúxula (pelo simples motivo de que se trata de uma ideologia antirreligiosa – “A religião é o ópio do povo”), frequentemente fazem menções diretas ou indiretas a uma Igreja “medieval”, “atrasada”, “obscurantista”, presa a “tradições elitistas de uma época de trevas” (sic). É claro que não poderia ser de outra forma, ou seja, uma verborreia ignorante, ou pior, desinformante, isso a julgar pelo referencial teórico marxista que, como já visto, despreza mais de mil anos de história. Simplesmente, por questões ideológicas, não gosta do medievo e porque não gosta não conhece, como não conhece, não existe ou é mal. Realmente uma postura extremamente racional e científica!

Vejamos o episódio ilustrativo descrito na obra de Pernoud:

“Penso naquela jovem amiga, cheia de ardor militante (...), que me explicava com muita convicção que a Igreja de hoje tinha finalmente compreendido que servir o próximo era servir a Deus, e que esta descoberta espantosa na história do cristianismo ia modificar completamente a vivência relacional da base, ou mesmo o conjunto do comportamento sociocultural em meio cristão. Perguntei-lhe como podia um espírito simples como o meu compreender as razões que tinham levado os cristãos da Idade Média a chamar ‘Palácio de Deus’ ou ‘Casa de Deus’, não às igrejas, mas aos sítios onde se acolhiam e tratavam gratuitamente os pobres, os doentes, os miseráveis, e se isso não teria qualquer relação com o que ela chamava de vida relacional. A sua resposta excedia, provavelmente, as capacidades dum espírito simples, porque eu já não me lembro absolutamente nada dela. Podia ter-lhe lembrado também  como os estatutos das ordens hospitalares prescreviam receber o doente, fosse quem fosse e viesse donde viesse ‘como senhor da casa’. Ou ainda evocar esse direito de asilo, que seria útil fazer reviver, em larga escala, numa época em que renasce o espírito de vingança pública e privada. Mas não tenho a certeza se a minha jovem militante me teria escutado até o fim”. [57]

A espetacular ironia e sensibilidade com que Pernoud narra o episódio acima deixa às claras a contradição aberrante da ideia ou ideologia que se prega em relação ao medievo e à Igreja daqueles tempos e a realidade fatual e historicamente constatável.

É triste, mas a mentalidade de muitos “historiadores” e “professores ou propagadores de história” é a de que esta pode se fazer mediante uma construção cerebral, sem qualquer necessidade de pesquisa séria de dados, informações, fontes, documentos etc. A História passa a ser um instrumento ideológico para o devido encaixe das ideias. Perversão das perversões.

Como afirma Pernoud:

“Acreditar que a história se faz nos nossos cérebros, que ela se pode construir ‘como se quer’, é provavelmente um dos erros capitais do nosso tempo. (...).

Impossível negar mais ingenuamente ou mais impudentemente a história. A liberdade de pensamento, que ela implica e exige, como toda a busca científica, não pode em nenhum caso ser confundida com as fantasias intelectuais dum indivíduo, ditadas pelas suas opiniões políticas, as suas opiniões pessoais ou os seus impulsos de momento ou, mais simplesmente, pelo desejo de escrever um volume de grande tiragem. A história tem o seu domínio. Ela deixa de existir se já não for busca da verdade, fundada em documentos autênticos; ela evapora-se literalmente; melhor: ela já não é senão fraude e mistificação”. [58]

É fato que a chamada “Idade Média”, como todo e qualquer período histórico, teve progressos e traços lamentáveis. Isso é mais do que natural, pois não há uma progressão linear da vida humana, a não ser na mente distorcida dos crentes numa ideologia de que o mais novo é melhor. Como visto a própria postura renascentista estaria a desmentir essa conclusão, considerando sua conduta imitadora da Antiguidade. A realidade é que qualquer modelo geométrico que se pretenda usar como metáfora para a humanidade está fadado ao fracasso, seja uma linha, um círculo ou o que quiser. Há progresso sim, mas não de maneira uniforme nem em todos os lugares concomitantemente. [59]

Pode-se concluir pela constatação de que seja no Direito, na vida social, na cultura ou em outros aspectos mais variados possíveis, a imprópria e ideologicamente chamada “Idade Média” não corresponde em praticamente nada ao esboço horrendo que dela se faz inclusive em livros de ensino básico e médio e até mesmo na academia. As distorções provocadas pela ideologia e seu instrumento preferencial de desinformação, provocam uma visão completamente deturpada desse período tão rico e que poderia e deveria ser objeto de maiores pesquisas sérias como a de Pernoud, que serviu de referencial teórico para este trabalho. Efetivamente há muito que descobrir e muito que desmentir.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito, sociedade e cultura na chamada Idade Média. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4084, 6 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30680. Acesso em: 27 dez. 2024.

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