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Do direito intertemporal no Brasil

Uma introdução ao estudo do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada

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Agenda 19/11/2014 às 13:18

3. Dos princípios e regras do direito intertemporal e aplicação atual na jurisprudência.

3.1. Da conceituação de direito intertemporal

Como bem aponta (Levada, 2011 p. 41) citando as palavras de Caio Mário da Silva Pereira: “ o conflito temporal de leis pode resumir-se numa indagação: por qual das duas leis, a nova ou a velha, devem ser reguladas as consequências dos fatos ocorridos antes de entrar em vigor a lei revogadora? Noutros temos: A lei velha deve continuar regulando as situações originadas durante sua vigência, ou a lei novas alcança ao entrar em vigor?.”

Então, sobrevindo uma lei nova, caberá ao direito intertemporal estabelecer a extensão dos  efeitos desse novel  àquelas situações jurídicas já constituídas no passado e ainda não exauridas em seus efeitos. Hipótese única onde ocorrem os conflitos. Daí, portanto, decorre o conceito de direito intertemporal: “um conjunto de normas e princípios jurídicos solucionadores dos conflitos decorrentes da sucessão de duas leis no tempo” (SOARES, 2007, p. 12)

3.2 Dos possíveis efeitos da lei

.Ao entrar em vigor, a lei em tese, deve projetar seus efeitos para o futuro como bem preceitua o artigo 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (nome atual dado à LICC de 1942 alterada pela Lei 3238 de 1957). No entanto, encontramos no ordenamento uma série de situações nas quais a projeção dos efeitos da lei se dá de maneira distinta. 

3.2.1  Da retroatividade

Só existe retroatividade quando a lei age sobre fatos anteriores ao seu advento, ou seja, quando altera consequência já produzida de acordo com hipótese da lei anterior.

Como já colocado, há autores que manifestaram pela retroatividade como regra, tendo como limites à sua aplicação o dever de respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Para essa parte da doutrina ainda há na retroatividade três graus de incidência.

Para José Carlos Peixoto (SOARES, p 85-86), dá-se:

(...) a retroatividade máxima, também chamada restitutória, quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados. Está, neste caso, por exemplo, a lei canônica que aboliu a usura e obrigava o credor solvável a restituir ao devedor aos seus herdeiros ou, na falta destes, aos pobres os juros já recebidos. (...)

A retroatividade é média, quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência. Exemplo: Uma lei que diminuísse a taxa de juros e se aplicasse aos já vencidos, mas não pagos.

A retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada), quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a data em que a lei entra em vigor.”

Tal posicionamento não é pacífico, porém bastante utilizado até os dias de hoje como foi o caso do julgamento da constitucionalidade da Lei da ficha Limpa, no qual houve divergência com o voto do Relator para conhecer a retroatividade inconstitucional da lei.[11]

A noção de retroatividade mínima não se confunde com efeito imediato a casos pendentes. Nestes casos, a teoria de Roubier se apresenta bem oportuna: A partir da entrada em vigor da nova lei, com relação aos casos pendentes, somente os seus efeitos futuros serão alcançados pelo esse novel. É o caso das leis processuais.

No Brasil, muito embora a doutrina defenda a tese de que a regra seja a irretroatividade, existe uma série de áreas do direito nas quais o critério da retroatividade é prestigiado quando benéfico, principalmente quando se trata de normas de direito público.

Exemplos não faltam na área penal, tributária e administrativa.

a) área penal

A lei nova jamais poderá retroagir para prejudicar o réu. A lei nova quando benéfica, deve ser aplicada às situações em curso e passadas, mesmo que já transitadas em julgado. O princípio da retroatividade é constitucionalmente assegurado quando em beneficio do réu.

Art. 5º XL da Constituição Federal: A lei penal não retroagirá salvo para beneficiar o réu.

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Temos então que a regra é a da irretroatividade. No entanto, existe permissão à retroatividade expressamente assegurada pela Constituição Federal.

 Art. 2º do código Penal -  Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

As lei processuais penais aplicam-se imediatamente salvo as que tratarem de prisão e fiança as quais não terão aplicação quando  prejudicarem o réu.

b) área tributária

A retroatividade é expressamente vedada pelo Art. 150 da Constituição Federal. No entanto, se em benefício do contribuinte em determinadas circunstâncias e sob determinados limites, poderá esta retroagir: 1) )no caso de lei expressamente interpretativa e cuja aplicação não importe em imposição de penalidade e 2) quando a lei nova deixe de aplicar ou amenize penalidade desde que não implique o não pagamento do tributo e que não esteja acobertada por decisão judicial transitada em julgado.

 ... O princípio da irretroatividade somente condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do Poder Público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao "status libertatis" da pessoa (CF, art. 5. XL), (b) ao "status subjectionais" do contribuinte em matéria tributária (CF, art. 150, III, "a") e (c) à segurança jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5., XXXVI). - Na medida em que a retroprojeção normativa da lei não gere e nem produza os gravames referidos, nada impede que o Estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo. - As leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, ordinariamente, dispor para o futuro. O sistema jurídico-constitucional brasileiro, contudo, não assentou, como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade. - A questão da retroatividade das leis interpretativas. (GN) DI 605 MC / DF - DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(A):  Min. CELSO DE MELLO Julgamento:  23/10/1991 Órgão Julgador:  Tribunal Pleno Publicação DJ 05-03-1993 PP-02897.

c) área de direito administrativo.

Na área administrativa, a regra que prevalece é a da irretroatividade, no entanto, existe na doutrina,  uma série de estudos que fazem uma aproximação das normas administrativas que importam em sanções ao administrado com a normas de natureza penal. Neste caso, esses autores defendem a tese de utilização dos princípios que regem a área tributária e Penal. Vale dizer, se em benefício do administrado, é possível a retroatividade dessa norma.

“ Porém, o processo hermenêutico pode e deve ser conduzido para além dos limites desse simples procedimento interpretativo. É que, se a CFRB consagra, expressamente, apenas a retroatividade da lex mitior penal, a contrário senso fica robustecido o entendimento hermenêutico de que nossa Carta Política, tacitamente, acabou sinalizando em direção à retroatividade das demais normas de natureza repressiva - as de Direito Administrativo e de Direito Tributário, por exemplo - desde que benéficas ao cidadão. ... Trata-se de processo interpretativo lastreado no princípio da isonomia, pois as normas tributárias, criadoras de tributos e as administrativas, descritivas de condutas infracionais e fixadoras de penalidades, têm indiscutível caráter repressivo e restritivo da liberdade e do patrimônio individual. Tais normas guardam estreita semelhança, quanto à sua natureza, com as normas do Direito Penal.” [12]

3.2.2. Do efeito imediato

O efeito imediato é o prestigiado pelo artigo 6º da lei de Introdução às normas do Direito brasileiro. “Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

A esse respeito bem se coloca Rubens Limongi França (LEVADA, p. 49), “ de acordo com a regra do efeito imediato, a nova lei não atinge os fatos anteriores, nem os efeitos anteriores desses fatos. Por outro lado, atinge os facta futura, bem assim as partes posteriores dos facta praeterita.” a esse efeitos se denomina efeitos prospectivos.

3.2.3. Da ultratividade da lei ou pós-atividade.

Como já dito, há casos em que os efeitos da lei nova se projeta de forma distinta. Há casos no entanto, em que ocorre a projeção dos efeitos da lei já revogada sobre relações jurídicas nascidas sob seu império, em que pese a plena vigência da lei nova.

Exemplo claro de ultratividade é a situação prevista pelo art. 2042 do Código Civil de 2002.

 “Art. 2.042. Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, [13]quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.

Interessante é o posicionamento da doutrina que faz uma aproximação entre os conceitos de ultratividade com o direito adquirido.

 “ Por outro lado, a ultratividade também poderá ocorrer em razão da proteção do direito adquirido, o que é chamado por alguns autores de pós atividade. Neste caso, embora a lei nova se aplicar imediatamente-fazendo cessar de pronto a vigência da norma anterior-, os direitos adquiridos continuarão a ser regidos por efeitos remanescentes desta, em atenção à proteção contida no art. 5º XXXVI, da Constituição Federal. A norma antiga deixou de viger, mas os deus efeitos continuaram a reger uma determinada categoria de fatos, projetando-se para tempo ulterior à sua revogação.”(LEVADA, p. 51)

Ainda no tocante à ultratividade das leis, Interessante colocação faz Jose Eduardo Martins Cardozo no sentido de que

...” devem ser excluídas do conceito de sobrevivência da lei velha ou de ultratividade: a) a aplicação da lei velha, ao longo do período de vacatio legis, uma vez que tecnicamente esta ainda não perdeu a vigência; b) a revogação parcial da lei velha pela nova, no que tange à aplicabilidade das regras não revogadas; c) a aplicação da lei velha feita pelo juiz após a sua revogação, por necessidade de apreciar a legalidade de fatos verificados à época em que esta se encontrava em vigor, uma vez que aqui não ocorre um prolongamento da vida da norma revogada, mas apenas uma mera apreciação da sua aplicabilidade no momento em que era vigente.”(CARDOZO.p.229)                

Modernamente o que doutrina vem apontando é no sentido da irretroatividade como critério inicial para aplicação da lei no tempo porém,  não absoluto. O que se deve perseguir é o respeito aos limites constitucionais quanto aos efeitos da nova lei. Assim, mesmo nos casos de retroatividade como nos de irretroatividade são aqueles limites que devem fundamentar o legislador e o julgador.

Nesse mesmo sentido,  bem aponta José Eduardo Cardozo,

“ (...) incorre, pois em lamentável equívoco quem afirma que o respeito ao direito adquirido se define apenas como um limite à própria retroatividade. Em essência, qualifica este um limite a quaisquer efeitos temporais de um novo diploma legislativo, seja estes pretéritos, imediatos ou futuros (...) a regra do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, nada mais é do que um princípio que assegura a sobrevivência da lei velha ou, em outras palavras, a ultratividade desta. Com efeito, nestas hipóteses mesmo após o término de sua vigência, a lei revogada continua a disciplinar tais situações aolongo do próprio período de vigência da lei nova.” (CARDOZO, p. 326-326)

EMENTA: habeas corpus. penal. processo penal militar. furto  simples. princípio da ultratividade. aplicação da L. 9.099/95. Pelo princípio da ultratividade, aos fatos ocorridos anteriormente à  vigência da L. 9.839/99, são aplicáveis os institutos da L. 9.099/95. Habeas deferido. HC 79983 / MG - MINAS  GERAIS  HABEAS CORPUS  Relator (a):  Min. NELSON JOBIM Julgamento:  14/03/2000           Órgão Julgador:  Segunda Turma   Publicação DJ 13-10-2000 PP-00010

3.2.4. Da retrospecção da lei

Muito se falou em retrospecção ou retrospectividade da lei por ocasião do Julgamento das ADCs 29 e 30 3 ADI 4878 que versavam sobre a constitucionalidade da chamada Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010).

O conceito de retrospectividade foi muito bem definido no voto do Min. Relator Luiz Fux:

“Primeiramente, é bem de ver que a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não viola o princípio constitucional da irretroatividade das leis. De modo a permitir a compreensão do que ora se afirma, confira-se a lição de J. J. GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5. edição. Coimbra: Almedina, 2001, p. 261-262), em textual: “[...] Retroactividade consiste basicamente numa ficção: (1) decretar a validade e vigência de uma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor; (2) ligar os efeitos jurídicos de uma norma a situações de facto existentes antes de sua entrada em vigor. [...]” (Os grifos são do original.)

O mestre de Coimbra, sob a influência do direito alemão, faz a distinção entre:

I) a retroatividade autêntica: a norma possui eficácia ex tunc, gerando efeito sobre situações pretéritas, ou, apesar de pretensamente  eficácia meramente ex nunc, atinge, na verdade, situações, direitos ou relações jurídicas estabelecidas no passado; e

II) a retroatividade inautêntica (ou retrospectividade): a norma jurídica atribui efeitos futuros a situações ou relações jurídicas já existentes,  tendo-se, como exemplos clássicos, as modificações dos estatutos funcionais ou de regras de previdência dos servidores públicos (v. ADI 3105 e 3128, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO).(GN)

Como se sabe, a retroatividade autêntica é vedada pela Constituição da República, como já muitas vezes reconhecido na jurisprudência deste Tribunal. O mesmo não se dá com a retrospectividade, que, apesar de semelhante, não se confunde com o conceito de retroatividade mínima defendido por MATOS PEIXOTO e referido no voto do eminente Ministro MOREIRA ALVES proferido no julgamento da ADI 493 (j. 25.06.1992): enquanto nesta são alteradas, por lei, as consequências jurídicas de fatos ocorridos anteriormente – consequências estas certas e previsíveis ao tempo da ocorrência do fato –, naquela a lei atribui novos efeitos jurídicos, a partir de sua edição, a fatos ocorridos anteriormente. Repita-se: foi o que se deu com a promulgação da Emenda Constitucional nº 41/03, que atribuiu regimes previdenciários diferentes aos servidores conforme as respectivas datas de ingresso no serviço público, mesmo que  anteriores ao início de sua vigência, e recebeu a chancela desta Corte. A aplicabilidade da Lei Complementar n.º 135/10 a processo eleitoral posterior à respectiva data de publicação é, à luz da distinção supra, uma hipótese clara e inequívoca de retroatividade inautêntica, ao estabelecer limitação prospectiva ao ius honorum (o direito de concorrer a cargos eletivos) com base em fatos já ocorridos. A situação jurídica do indivíduo – condenação por colegiado ou perda de cargo público, por exemplo – estabeleceu-se em momento anterior, mas seus efeitos perdurarão no tempo. Esta, portanto, a primeira consideração importante: ainda que se considere haver atribuição de efeitos, por lei, a fatos pretéritos, cuida-se de hipótese de retrospectividade, já admitida na jurisprudência desta.” [14]

Voto - MIN. LUIZ FUX             

Sobre a autora
Andrea Bechelli

Advogada. Graduada em direito pela PUC/SP. Pós-graduada em direito público pela PUC/MG. Mestranda em direito pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECHELLI, Andrea. Do direito intertemporal no Brasil: Uma introdução ao estudo do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4158, 19 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30798. Acesso em: 23 dez. 2024.

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