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Do direito intertemporal no Brasil

Uma introdução ao estudo do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada

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19/11/2014 às 13:18
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Como elementos da segurança jurídica e de preservação da dignidade humana, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada estão sob a proteção do princípio da proibição de retrocesso social.

RESUMO : A questão da intertemporalidade no direito brasileiro teve seu início marcado pela forte influência das teorias subjetivista de Gabba e objetivista de Roubier, que fundamentavam o direito português. Desvinculado das tradições lusas, o ordenamento brasileiro desenvolveu estrutura própria no que se refere a intertemporalidade das leis, passando pela constitucionalização da irretroatividade como princípio e chegando aos dias atuais à compreensão de que o respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada , enquanto direito fundamental, é elemento de segurança jurídica, tem íntima ligação com a dignidade da pessoa humana, ficando assim sob a proteção do princípio da proibição de retrocesso.

PALAVRAS-CHAVE: Intertemporalidade. Segurança jurídica. Proibição retrocesso social. 

SUMÁRIO: Introdução. 1. As teorias que mais influenciaram o direito brasileiro. 2. Formação e evolução do direito intertemporal brasileiro. 2.1 Do direito adquirido e da conceituação das figuras relacionadas. 2.2 Do ato jurídico perfeito 2.3. Da coisa julgada. 3.Dos Princípios e Regras do direito Intertemporal e aplicação na jurisprudência. 3.1 Da conceituação de direito intertemporal. 3.2 Dos possíveis efeitos da lei. 3.2.1 Da retroatividade. 3.2.2 Do efeito imediato. 3.2.3 Da ultratividade das leis. 3.2.4 Da retrospecção das leis. 4. Do art. 5º XXXVI da Constituição como direito fundamental. 5. Da irretroatividade como princípio constitucional e a segurança jurídica. 6. Da segurança jurídica, a dignidade da pessoa humana e a proibição de retrocesso. Conclusão. Referências


Introdução

O desenvolvimento do estudo da intertemporalidade das leis tem acompanhado a evolução da própria humanidade a partir das exigências histórias de cada etapa de seu desenvolvimento social, econômico e cultural.

 A maneira como uma lei nova deve se projetar no tempo e os limites impostos à sua aplicação aos fatos pretéritos, pendentes e futuros, bem como os conflitos decorrentes dessa eficácia devem ser objeto de uma análise sempre prospectiva, considerando a íntima ligação entre a segurança jurídica na qual se inserem o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, além da proibição ao retrocesso como forma de justiça social.

Baseado na obra “A Irretroatividade das Leis e o direito adquirido” de Rubens Limongi França, o presente estudo se apresenta como uma introdução ao tema “direito intertemporal brasileiro” .  


As teorias que mais influenciaram o direito intertemporal brasileiro

Várias foram as teorias acerca do tema intertemporalidade das leis ao longo da história da humanidade.[1] No entanto, merece destaque principalmente pela repercussão no ordenamento jurídico brasileiro, as teorias de Carlo Francesco Gabba e Paul Roubier. Muitos doutrinadores brasileiros apontam o direito intertemporal brasileiro como uma simbiose entre essas teorias.

Gabba, sem dúvida,  é o maior destaque com relação à matéria. Em 1891 discorreu de maneira bastante coerente sobre a matéria, chegando a seguinte conclusão: “ A razão e o verdadeiro limite da retroatividade das leis é o direito adquirido”(GABBA, apud FRANÇA, p. 213)

Para esse autor, a lei poderia retroagir atingindo relações constituídas anteriormente quando não desrespeitasse o que ele chamava de direitos adquiridos. Neste caso não haveria qualquer injustiça. Pode-se concluir então pela importância da conceituação de direito adquirido que se faria a seguir.

Partiu o doutrinador de algumas importantes premissas: 1) para que se configure um direito adquirido é necessária uma lei da qual emane; 2) Além de emanar de uma lei, esse direito teria que se tornar elemento do patrimônio da pessoa.

“ É adquirido todo direito que :

1) É consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei no tempo no qual o fato foi consumado, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação de uma lei nova sobre o mesmo e que, 2)  Nos termos da lei sob cujo império se entabulou o fato do qual se origina, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.” [2]

É perceptível na legislação brasileira os elementos da teoria de Gabba. Na realidade, o que se pode verificar numa visão histórica da intertemporalidade no Brasil é que a ideia de Gabba com relação ao dever de respeito aos direitos adquiridos até hoje integram e fundamentam nosso ordenamento jurídico.

Cardozo (1995, p. 208)  refere que Paul Roubier foi um dos críticos à doutrina clássica representada mais fortemente por Gabba. No ano de 1929 esse autor publicou a obra Les conflits de Lois dans le Temps, na qual partiu da seguinte premissa: “A base fundamental da ciência do conflito das leis no tempo é a distinção entre o efeito retroativo (aplicação no passado) e o efeito imediato da lei (aplicação no presente)”

Dessa forma, conclui dizendo que: o efeito retroativo é, em regra, proibido. A lei não deve atingir os fatos realizados (facta pretérita). Ela tem aplicação imediata e se aplica aos fatos futuros (facta futura). Quanto aos fatos pendentes (facta pendentia) é preciso estabelecer uma separação entre partes anteriores (que não poderiam ser atingidas sem retroatividade) e posteriores, para as quais a lei nova deva ser aplicada. No entanto cabem exceções como no caso dos contratos em curso: a regra é a da sobrevivência da lei antiga.

Ainda seguindo sua orientação, há retroatividade possível senão em virtude de cláusula legislativa expressa. Não há retroatividade tácita. Nesse particular são vários os julgados de nossos Tribunais Superiores como se verá mais adiante.

Para um melhor entendimento sobre a aplicação dos efeitos de uma lei nova , Roubier introduziu a ideia de “situação jurídica” em substituição ao direito adquirido.

Esta situação jurídica no campo de seu desenvolvimento abrangeria duas fases:

a) Fase dinâmica: que corresponderia ao momento efetivo da sua constituição ou extinção

b) Fase estática: que corresponderia ao momento que a situação produz seus efeitos.

Assim, as leis que regem a constituição ou extinção de uma situação jurídica não podem atingir sem retroatividade, as situações jurídicas já constituídas ou extintas.

Enquanto uma situação não estiver constituída ou extinta, a lei nova pode modificar as condições de sua constituição ou extinção, sem ter efeito retroativo, já que lei nova tem efeitos imediatos.

Suposta situação jurídica que produza seus efeitos durante certo lapso de tempo, a lei nova poderá determinar os efeitos jurídicos que se produzirão após sua entrada em vigor (efeito imediato). Entretanto, não será possível atingir os efeitos jurídicos anteriores, fosse para os modificar, aumentar ou diminuir sem que houvesse retroatividade.

Como se verá a seguir, a ideia de Roubier no tocante às situações jurídicas em substituição ao conceito de direito adquirido foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela lei de introdução ao Código Civil em 1942, causando sério comprometimento à segurança jurídica, tendo em vista que os próprios Tribunais passaram a utilizar sem qualquer técnica tanto as ideias de Gabba quanto as de Roubier.


2. Formação e evolução  do direito intertemporal brasileiro

Muito embora a independência de Portugal em 1822 tenha trazido ao Brasil o poder de se autodeterminar livre da dominação política e econômica da Coroa, no tocante ao sistema normativo, houve um período no qual ainda parte do direito luso vigorou no país. Assim, somente a partir da revogação expressa das ordenações de D. Filipe pelo art. 1807 do Código Civil Brasileiro promulgado em 1916 (Lei 3071 de 01 de janeiro de 1916), pode-se concluir pela definitiva desvinculação dos ordenamentos jurídicos desses dois Países.

Art. 1.807. Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil reguladas neste Código.

Não obstante ainda em vigor as ordenações de d. Filipe, em 1824 (ainda no Império), foi promulgada, a primeira Constituição Brasileira (Constituição do Império de 22 de abril de 1824). Essa trouxe o princípio da irretroatividade expresso demonstrando a escolha do legislador brasileiro pelo efeito imediato das normas, a exemplo da tradição do direito Luso.

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

(...).

 II. Nenhuma Lei será estabelecida sem utilidade publica.

 III. A sua disposição não terá effeito retroactivo.

A primeira Constituição da República, promulgada em 24 de fevereiro 1891, também trouxe expressa a irretroatividade da lei.

Art. 10, § 3º “É vedado aos Estados como à União : - Prescrever Leis retroativas.”

Portanto, o cenário normativo brasileiro à época, consagrava constitucionalmente o princípio da irretroatividade como critério de intertemporalidade, enquanto na esfera infraconstitucional, somente em 1916 com a promulgação do Código Civil, é que a matéria foi tratada de forma sistemática.

Vários foram os projetos desse codex, sendo que o de Coelho Rodrigues [3] foi o que melhor desenhou a matéria, tendo inspirado Clovis Bevilaqua  na formulação final do texto, que, após discutido e revisado pela Câmara e Senado foi promulgado com a seguinte redação:

Código Civil (1916) art.3º “ A lei não prejudicará, em caso algum, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, ou a coisa julgada.

§ 1º Consideram-se adquiridos, assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida, inalterável a arbítrio de outrem.

§ 2º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 3º Chama-se coisa julgada, ou caso julgado, a decisão judicial, de que já não caiba recurso.”

Muito embora, a partir de 1916 o sistema normativo brasileiro tenha contemplado o dever de respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada previsto no código, o que se pode verificar é que não houve por parte do legislador infraconstitucional a sua efetiva observância.

Assim, vários diplomas foram sancionados com efeito retroativo quando fundados em razões de ordem pública, mesmo com o princípio da irretroatividade expresso na Constituição de 1891.

Exemplo disso foi a exposição de motivos  do Decreto 23.501 de 27 de novembro de 1933, sobre a cláusula ouro [4].

“(...) “Considerando que as providencias dessa natureza, tomadas pelo estado no exercício de suas funções soberanas, e por altas razões de ordem pública não podem deixar de abranger nos seus efeitos as convenções anteriores à publicação da lei; considerando que é geral a retroatividade de tais medidas (...) (FRANÇA, p. 128/129)

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A dúvida que se poderia suscitar é com referência a provável inconstitucionalidade desses diplomas, haja vista a irretroatividade ser princípio expresso na Constituição de 1891. Não há muitos registros a esse respeito. Carlos Maximiliano (FRANÇA, p. 130), interpretando a constituição chegou a afirmar que

“Não se entendeu jamais no Brasil, nem nos Estados Unidos, que o texto Constitucional fulminasse com a nulidade absoluta, indistintamente, todas as leis que tivessem efeito retroativo. O preceito foi inserto no código supremo como uma garantia da liberdade e dos direitos patrimoniais do indivíduo. Toda lei que não contrariar esse duplo propósito prevalecerá na íntegra, salvo se violar outra disposição fundamental”

Já sob a égide da Constituição Federal de 16 de julho de 1934, o respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada alcançou status de norma constitucional em substituição ao princípio da irretroatividade enquanto disposição expressa.

 Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)  3) A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. 

Com exceção à Constituição Federal outorgada em 1937, na qual o dever de respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada perdeu o status de norma constitucional, todas as demais Constituições (1967/1969 e 1988) deixaram expressa tal disposição, retornando ao status quo ante.

Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

 § 1º Todos são iguais perante a lei.

 § 2º Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

  § 3º - A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 § 1º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.[5]

 § 2º - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

  § 3º - A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:

§ 1º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça.

§ 2º Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

§ 3º A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Importante salientar que, em que pese ainda em vigor o Código Civil de 1916 e posteriormente o de 1942, o período compreendido entre 1937 e 1946 foi marcado por uma onda de leis retroativas.

O fato de não mais constar na Constituição brasileira os limites expressos à retroatividade das leis a partir de 1937 e o princípio da irretroatividade expresso desde 1934, acabou deixando o legislador infraconstitucional sem qualquer limite objetivo à sua atuação, já que não precisaria, em tese, vincular-se à lei Civil para legislar em outras esferas, principalmente quando fundadas em razão de ordem pública.

Exemplo interessante é citado por Limongi França (p. 143)

 A mesma insegurança e desordem quanto aos direitos individuais encontramos ainda no Decreto-Lei 4529, de 30 de julho de 1942, sobre prescrição para a anulação de casamento, cujo art. 1º parágrafo único dispõe que a regra “se aplica aos processos já ajuizados”. Não considerado suficiente uma tal determinação, logo em 8 de abril de 1943, através do Decreto-Lei n. 5.383, o Legislador estabeleceu que o diploma acima, de 1942, “não se aplica aos processos já ajuizados naquela data, desde que a ação tenha sido proposta antes de decorrido o dobro do prazo fixado no referido Decreto-lei.”

Importante lembrar que em 1942, foi sancionada nova Lei de Introdução do Código Civil (Decreto-lei 4657 de 04 de setembro de 1942). Nesse novo texto, substituiu-se o termo Direito adquirido por situações definitivamente constituídas, aproximando tenuemente o texto à doutrina objetiva de Roubier. “ A lei Civil terá efeito imediato e geral. Não atingirá entretanto, salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito.”

Vários autores criticaram o que chamaram de galicismo desnecessário (FRANÇA, p. 143). Mattos Peixoto (FRANÇA, p. 148) foi além ao afirmar que nem bem seguiu-se a teoria de Roubier, pois o termo situação definitivamente constituídos não abrangeria os direitos condicionais “porque antes disso a situação jurídica do titular não está definitivamente constituída.”

Portanto, a partir de 1942 o que se observa é o efeito danoso causado pela falta de objetividade do texto da LICC, com uma abertura ainda maior para o excesso do legislador, pois estaria este legitimado a promover leis retroativas em desrespeito ao ato jurídico perfeito desde que o fizesse expressamente. Cumpre salientar a falta de menção ao direito adquirido e à coisa julgada. 

Importante ainda salientar a confusão conceitual apresentada pelos próprios Tribunais, conforme bem apontam Caio Mário da Silva Pereira e Limongi França.

“ a jurisprudência não conseguiu desvencilhar-se dos princípios assentados, e não obstante o direito o direito positivo ter adotado fundamento diferente, permaneceu fiel ao velhos conceitos, procurando dar soluções aos conflitos intertemporais das leis com aplicação de norma de cunho objetivista, porém jogando com as noções subjetivistas de direito adquirido e expectativa de direito. Tendo formado o seu espírito sob a inspiração das teorias tradicionais, os juízes não conseguiram desvencilhar-se de seus cânones, e não puderam afeiçoar-se às condições modernas.(CARDOZO, p. 240)

“ Na verdade, não há confundir o direito eventual estatuído na lei e aquele que se define afinal pelo fato realizado, consumado e que importa na aquisição do direito, até então mera expectativa. – não há  cogitar do problema da retroatividade expressa na lei uma vez que não se trata de respeitar situações Jurídicas constituídas definitivamente...” (acórdão unânime do STF , de 26.01. 1945, Rel. Min. Goulart de Oliveira, RT, 149/349).

“ É hoje ... quase incontrovertido, na doutrina e na jurisprudência nacional, que o Código Civil Brasileiro não reconhece força retroativa às leis de interpretação. Embora a lei se declare interpretativa, em termos expressos, o dispositivo da nossa lei não permite que por ela sejam prejudicados os direitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada” (acórdão p.m. da2ª turma do STF, de 21 de 09 de 1943, voto do Min. José Linhares, RDA , 1/161)( FRANÇA, op.cit 150)

Em 1946 com a nova Constituição promulgada, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada voltam ao status constitucional, tornando a vincular novamente o legislador e julgadores. Interessante observar que vários autores chegaram a questionar a recepção da LICC pela Constituição, uma vez que esta seria com a lei maior incompatível.[6]

Os argumentos eram fundamentados no fato de que o texto constitucional não falava em situações jurídicas definitivamente constituídas e sim direitos adquiridos, nem condicionava a retroatividade ao simples mencionar expresso do legislador infraconstitucional. Alguns outros autores chegaram a falar em derrogação da LICC neste particular, mas o fato é que a discussão doutrinária neste sentido cessou com a entrada em vigor da lei 3238 em 1957, que alterou a LICC.

Parte da doutrina colocou-se contrária à irretroatividade como regra, abarcando a retroatividade como regra,  retomando a s ideias de Gabba. Silvio Rodrigues (1962, p. 50) em sua Obra Direito Civil, afirma que

 “ entre nós a lei é retroativa e a supressão do preceito constitucional uqe, de maneira ampla proibia lei retroativas, constituiu um progresso técnico. A lei retroage, apenas não se permite que ela recaia sobre o ato jurídico perfeito, sobre o direito adquirido e sobre a coisa julgada.”

Nesse mesmo sentido Reynaldo Porchat [7]:

“A Ação retroativa de uma lei só pode ser seguramente determinada em teoria, atendendo-se à natureza dos atos e das relações jurídicas que constituem o seu objeto.- Para uma categoria de relações jurídicas, a nova lei não deve ser nunca retroativa. – Para outra é sempre retroativa... Quando, ao executar-se uma uma nova lei qualquer, deparar-se um DIREITO ADQUIRIDO que possa ser lesado, a lei não tem aplicação ao caso, porque a retroatividade seria injusta. Quando não se encontra direito adquirido, aplica-se a lei, mesmo retroativamente, porque a retroatividade é justa.” GN

A explicação para tais manifestações reside no fato de que o texto constitucional somente em 1824 e 1891 expressamente impôs a irretroatividade das leis, sendo que nos demais textos (1934, 1946, 1967/1969 e 1988) apenas vinculou o legislador ao dever de respeito ao ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada.

De ouro lado, João Franzen de Lima  a exemplo de vários autores bem assim colocava a matéria: “A irretroatividade das leis , mesmo quando não seja cânon constitucional, permanece como princípio científico do direito, princípio orientador de legisladores e juízes.”(FRANÇA, p. 189)

Em 1957, essa lei 3238 de 01 de agosto veio alterar a LICC de 1942, fazendo voltar ao texto os termos direito adquirido , coisa julgada e ato jurídico perfeito. Numa mesma direção tomada pela Constituição de 1946, a nova Lei de Introdução ao Código Civil de 1957 prestigiou o termo direito adquirido em substituição a situações jurídicas, o que resolveu parte do problema de intertemporalidade das leis no país.

"Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso."

Nas décadas que se seguiram à Constituição de 1946 e a LICC de 1942, alterada em 1957, mesmo nos mais turbulentos momentos históricos pelos quais o Brasil passou,  o dever de respeito aos direitos adquiridos, ato jurídico perfeito e coisa julgada não foram retirados do texto constitucional, muito embora a prática legislativa tenha de certa forma os relativizado.

Assim, Atos institucionais e Emendas constitucionais foram impostas na década e 60 e 70 [8]sem qualquer respeito ao direito adquirido e ao princípio da irretroatividade como,  por exemplo: (FRANÇA, p. 154-155)

AI 2 de 09 de abril de 1964 Art. 14 - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por tempo certo

AC 15 de 18 de julho de 1966  art 5º de 18 de julho de 1966 “ São considerados nulos... os atos praticados desde 27 de outubro de 1965, dos uais decorram nomeação ou aproveitamento de funcionário, com inobservância das normas acima estabelecidas neste ato complementar.”

Atualmente, na Constituição de 1988 o dever de respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada estão expressos no art. 5º XXXVI (dos direitos fundamentais) e o texto da LICC[9] em nada alterado desde 1957 no que tange ao assunto.

2. 1  Do direito adquirido e da conceituação das figuras relacionadas

O conceito de direito adquirido já se encontra sedimentado no presente trabalho, tendo sido apontado ainda no tópico 3, a forma com que o legislador brasileiro tratou de maneira bastante peculiar os ensinamentos de Gabba e Roubier. No entanto, há outros conceitos de importância para o entendimento mais abrangente da intertemporalidade. São figuras jurídicas que se relacionam ao direito adquirido e projeção dos efeitos das leis no tempo.

2.2  Do ato jurídico perfeito

reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que ele se efetuou.” (Art. 6º , § 1º LICC de 1942 alterada pela lei 3238 de 1957)

Esse conceito não sofreu alterações significativas que mereçam nota, no entanto, na doutrina, principalmente Limongi (1995, p. 220) se manifestou fazendo um contraponto ao posicionamento de Clovis Beviláqua dizendo que este doutrinador conduzia ao erro ao considerar o ato jurídico perfeito a única causa de direito adquirido, quando na realidade é uma das causas.

Limongi em sua obra acha que inútil a menção ao ato jurídico perfeito quanto à irretroatividade porque a proteção do direito adquirido inclui a do ato jurídico perfeito e, mesmo em se considerando o ato jurídico perfeito como elemento gerador do direito adquirido -> uma vez protegendo-se os efeitos, a causa está protegida.

2.3 Da coisa julgada

O direito adquirido é um efeito da coisa julgada afirma  Limongi. Não só a coisa julgada seria uma das causas geradoras  do direito adquirido como ainda uma variedade do ato jurídico perfeito, de natureza jurisdicional. (trata-se de um verdadeiro fato consumado em virtude da impossibilidade de se mudar por lei posterior aquilo que a coisa julgada estabeleceu.)(FRANÇA, p. 222)

Interessante notar que há autores que defendem a excepcionalidade na relativização da coisa julgada diante de sentenças juridicamente inexistentes ou inconstitucionais. Nelson Nery Junior de forma contrária, atacando duramente as teorias que relativizam a coisa julgada, declarou:

“ Para as atividades do Poder Judiciário, a manifestação do princípio do Estado democrático de Direito ocorre por intermédio do instituto da coisa julgada. O processo é instrumento da democracia  e não seu algoz.[10]

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Sobre a autora
Andrea Bechelli

Advogada. Graduada em direito pela PUC/SP. Pós-graduada em direito público pela PUC/MG. Mestranda em direito pela PUC/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECHELLI, Andrea. Do direito intertemporal no Brasil: Uma introdução ao estudo do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4158, 19 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30798. Acesso em: 22 dez. 2024.

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