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A justa indenização na desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária em razão do descumprimento da legislação ambiental

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Agenda 19/08/2014 às 10:36

6-    A DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA

O conceito de reforma agrária é muito controvertido. Para José Afonso da Silva[16], a reforma agrária é um “programa de governo, plano de atuação estatal, mediante a intervenção do Estado na economia agrícola, para promover a repartição da propriedade e da renda fundiária”.

Juvelino José Strozake[17] sustenta que “a reforma agrária é um programa governamental com fins de evitar a concentração da propriedade e realizar a justiça social instituído na Constituição Federal e em leis especiais”. Para ele, o direito de ver realizada a reforma agrária é um direito subjetivo dos trabalhadores rurais:

A reforma agrária também é um direito difuso e coletivo porque a Constituição Federal, art. 184, regulamentada pela Lei 8.629/93, determina que as terras que não estejam cumprindo sua função social serão desapropriadas e destinadas aos projetos de assentamentos; ou seja, os sem-terras são titulares do direito constitucional à reforma agrária. (...)

E, quando a Constituição Federal e a regulamentação posta em leis especiais estabelecem um fazer (compete à União desapropriar para fins de reforma agrária o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social), segundo Rodolfo de Camargo Mancuso, ‘automaticamente fica assegura a possibilidade de cobrança dessas condutas comissivas ou omissivas.

Iluminado pelo princípio da função social da propriedade, o Estatuto da Terra – Lei nº 4.504[18], de 30 de novembro de 1964 – estabelece que o objetivo da reforma agrária consiste em promover o “acesso à propriedade rural (...) mediante a distribuição ou a redistribuição de terras”, de sorte a “estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, Autarquia Federal ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, é o órgão competente para promover e executar o Programa Nacional de Colonização e Reforma Agrária no Brasil.

Ao criar um capítulo específico sobre a reforma agrária no interior do título destinado à Ordem Econômica e Financeira, a Constituição Federal demonstra compromisso com a efetiva realização da reforma agrária. A opção pela implementação de políticas públicas de reforma agrária fica ainda mais evidente se esses dispositivos forem conjugados com os fundamentos e objetivos do Estado brasileiro, com os direitos individuais, coletivos e sociais e com os princípios gerais da atividade econômica, segundo os quais “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.

É por meio da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária de propriedades rurais que não estejam cumprindo a função social preconizada na Constituição Federal, que o Poder Público cria condições reais para implementação do Programa Nacional de Reforma Agrária.

Conforme esclarece Lucas Abreu Barroso, “a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária é atuação da vontade do Estado, mediante indenização, consistindo na retirada de bem de um patrimônio, em atendimento à composição, apaziguamento, previdência e prevenção impostos por circunstancias que exigem o cumprimento de um conjunto de medidas que visem a melhor distribuição da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio[19]”.

O art. 184 da Constituição Federal estabelece que "compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização (...)". Todavia, estão imunes à desapropriação a pequena e a média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra, ainda que a função social esteja sendo descumprida; e a propriedade produtiva, desde que cumpra os demais aspectos da função social constitucional, conforme estabelece o art. 185 da Constituição Federal.

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Pequena propriedade é aquela com área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos rurais, e média propriedade é o imóvel rural de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos rurais. O módulo rural, ao seu passo, foi conceituado pelo Estatuto da Terra como sinônimo de propriedade familiar, sendo esta o “imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros”.

A proteção dada à pequena e média propriedade rural contra a possibilidade de desapropriação para fins da reforma agrária decorre do incentivo à agricultura familiar produtiva e capaz de fixar, com dignidade humana, o homem e sua família numa porção de terra garantidora de trabalho adequado e sustento compatível com as necessidades humanas básicas, evitando-se o êxodo rural e a superpopulação urbana resultantes de gravíssimos problemas sociais.

Os critérios para o reconhecimento da produtividade da propriedade estão previstos na Lei 8.629/93, atualmente alterada pela MP 1.577, de 11/06/97, e reedições (atualmente, MP 2.183-56, de 24/08/2001), segundo a qual se exige sejam atingidos, cumulativamente, nos termos do Artigo 6º: (a) um percentual mínimo de 80% do grau de utilização da terra (GUT), e; (b) um percentual igual ou superior a 100% do grau de eficiência da exploração econômica (GEE).

O cálculo do índice do GUT considera a área efetivamente utilizada do imóvel, em cotejo com a área potencialmente utilizável, excluídas, desse último conceito, por força do art. 10 da Lei 8.629/93, as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes; as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal; as áreas sob efetiva exploração mineral; as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.

O grau de eficiência na exploração – GEE, por sua vez, é obtido por meio da aplicação de sistemática de cálculo que leva em consideração a destinação econômica da gleba em face de índices de rendimento considerados medianos, de acordo com a região onde se localiza o imóvel. Assim, determina o art. 6º, §2º, da Lei 8.629/93, que, para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso I); para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea (inciso II). Então, a soma dos resultados obtidos na forma anterior é dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determinando-se assim o grau de eficiência na exploração (GEE) do imóvel rural. Dessa forma, um imóvel, com níveis de exploração econômica mais eficiente que aqueles relativos à média exigida pelos órgãos oficiais, poderá obter um percentual superior a 100% de GEE.

Importante relembrar, que a produtividade, para impedir a desapropriação da grande propriedade deve ser associada à realização de sua função social nos aspectos social e ambiental. Assim, ainda que a propriedade seja considerada produtiva, a violação aos demais aspectos da função social autoriza a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, como atualmente vem ocorrendo em relação ao descumprimento da função ambiental.


7-    A DESAPROPRIAÇÃO EM RAZÃO DO DESCUMPRIMENTO DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL

Conforme estudado anteriormente, restou evidenciado que a função social somente é cumprida quando respeitados todos os elementos descritos nos incisos do art. 186, já que a Carta Magna utilizou o advérbio "simultaneamente", atrelando-os de forma definitiva. A contrario sensu, o imóvel que afronta alguma destas sub-funções não cumpre a sua função social. A propriedade rural deve cumprir sua função social, sujeitando-se à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária quando inadimplida esta obrigação.

O descumprimento de quaisquer dos aspectos da função social da propriedade rural autoriza a propositura de ação de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, exceto no caso da pequena e média propriedade, desde que seu proprietário não possua outra.

Confirmando este entendimento encontra-se posição adotada pela jurista Rosalinda P. C. Rodrigues Pereira[20] no sentido de que:

Se os requisitos da função social da propriedade imobiliária rural foram elencados em nível constitucional, conclui-se que essa propriedade não pode mais ser regulamentada pela noção tradicional civilista, que não acompanha o seu aspecto sociológico, pois somente a propriedade rural que cumpre os requisitos da função social está constitucionalmente assegurada, não havendo qualquer garantia a propriedade rural que não cumpre seus requisitos

É inequívoco o cabimento da desapropriação-sanção do imóvel rural cujo proprietário causou degradação ambiental, pois estaria maculada a função social da propriedade rural, o que autoriza a incidência do Artigo 184 da Constituição Federal.

A Constituição Federal, art. 184, caput, primeira parte, outorgou à União o poder-dever de desapropriar para fins de reforma agrária o imóvel rural que não estiver cumprindo sua função social, cujos elementos são: a) aproveitamento racional e adequado (aspecto econômico); b) preservação do meio ambiente (aspecto ambiental); c) respeito às normas trabalhistas e bem-estar (aspecto social).

A violação de apenas um aspecto da função social é bastante para configurar o seu descumprimento, caso em que a União estará autorizada a promover a desapropriação-sanção. Assim, o proprietário que explora seu imóvel causando degradação ao meio ambiente ou desrespeitando as leis de proteção à natureza fica sujeito à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, com a conseqüente destinação do imóvel ao Programa Nacional de Reforma Agrária.

A propriedade rural que desrespeita, com sua produção, o meio ambiente, bem de uso comum do povo, desrespeita a dignidade da pessoa humana (Art. 1º); o bem estar de todos (Art. 3º); a vida (Art. 5º); a saúde, infância e o lazer (Art. 6º e Art. 196); a ordem social (Art. 193); e, por final o meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida (Art. 225). Torna-se nociva à própria agricultura nacional, pois esta é parte do ciclo biológico, elemento essencial da atividade agrária.

É em razão disso, que Paulo Roberto Lyrio Pimenta[21] afirma que “a exploração da propriedade agrária, causando danos ao meio ambiente, implicará no descumprimento da sua função social, dando ensejo à desapropriação por interesse social”. E mais adiante: “o meio ambiente é um ataque muito sério à destinação econômica da terra, que tem sua capacidade produtiva diminuída, e, o mais grave, é a lesão ao próprio direito à saúde, que todo o ser humano tem”.

O E. Supremo Tribunal Federal, seguindo a orientação da doutrina majoritária, embora não tenha enfrentado de forma direta a questão do cabimento da desapropriação com fundamento exclusivo no descumprimento da função sócio-ambiental, manifestou-se pela sua possibilidade, verbis:

PANTANAL MATO-GROSSENSE (CF, ART. 225, PAR. 4) - POSSIBILIDADE JURÍDICA DE EXPROPRIAÇÃO DE IMÓVEIS RURAIS NELE SITUADOS, PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. A norma inscrita no art. 225, parágrafo 4, da constituição não atua, em tese, como impedimento jurídico a efetivação, pela União Federal, de atividade expropriatória destinada a promover e a executar projetos de reforma agrária nas áreas referidas nesse preceito constitucional, notadamente nos imóveis rurais situados no pantanal mato-grossense. A própria Constituição da República, ao impor ao Poder Público dever de fazer respeitar a integridade do patrimônio ambiental, não o inibe, quando necessária a intervenção estatal na esfera dominial privada, de promover a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária, especialmente porque um dos instrumentos de realização da função social da propriedade consiste, precisamente, na submissão do domínio a necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente (cf, art. 186, II), sob pena de, em descumprindo esses encargos, expor-se a desapropriação-sanção a que se refere o art. 184 da Lei Fundamental[22]. (grifo nosso)

Cumpre observar, que em seu voto, o Ministro Celso de Melo deixou transcender de maneira clara e inequívoca a possibilidade de um imóvel rural ser desapropriado, por interesse social para fins de reforma agrária, em razão do descumprimento da função social em seu aspecto ambiental:

O dever que constitucionalmente incumbe ao Poder Público de fazer respeitar a integridade do patrimônio ambiental não o impede, contudo, quando necessária a intervenção estatal na esfera dominial privada, de promover, na forma do ordenamento positivo, a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária, especialmente porque um dos instrumentos de realização da função social da propriedade rural – consoante expressamente proclamado pela Lei nº 8.629/93 (art. 9º, II e seu §3º) e enfatizado pelo art. 186, II, da própria Carta Política – consiste, precisamente, na submissão do domínio à necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente, sob pena de, em descumprindo esses encargos, sofrer a desapropriação-sanção a que se refere o art. 184 da Lei Fundamental.

É certo que o Pantanal Mato-Grossense – área em que situado o imóvel do impetrante – constitui patrimônio nacional, devendo a sua utilização fazer-se, na forma da lei – consoante prescreve o art. 225, § 4º da Carta Política – dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, notadamente quanto ao uso dos recursos naturais, sob pena de descaracterização, para os efeitos já referidos, da função social da propriedade.

(...)

A defesa da integridade do meio ambiente, quando venha este a constituir objeto de atividade predatória, pode justificar reação estatal veiculadora de medidas – como a desapropriação-sanção – que atinja o próprio direito de propriedade, pois o imóvel rural que não se ajuste, em seu processo de exploração econômica, aos fins elencados no art. 186 da Constituição claramente descumpre o princípio da função social da propriedade, legitimando, desse modo, nos termos do art. 184 c/c 186, II, da Carta Política, a edição de decreto presidencial consubstanciador de declaração expropriatória para fins de reforma agrária.  

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA tem proposto diversas ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária tendo como fundamento jurídico unicamente o descumprimento da função social da propriedade em seu aspecto ambiental. Resta, tão somente, aguardar que a matéria de direito alcance o crivo dos tribunais superiores de maneira que possa ser formada uma jurisprudência a respeito do assunto, com base no julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal acima transcrito, pacificando-se, de uma vez por todas, a possibilidade de ser proposta ação de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária em virtude do descumprimento da função social ambiental da propriedade.

Sobre a autora
Cintia Monique de Souza Amoury

Advogada, Pós Graduada em Direito Público pela Universidade UNIDERP, Servidora Pública Federal, Analista em Reforma e Desenvolvimento Agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMOURY, Cintia Monique Souza. A justa indenização na desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária em razão do descumprimento da legislação ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4066, 19 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31040. Acesso em: 25 dez. 2024.

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