RESUMO: A função social da propriedade possui três aspectos previstos constitucionalmente no Artigo 186 da Constituição Federal: a) econômico; b) ambiental; c) social. A Carta Constitucional autoriza a União Federal a desapropriar, por interesse social para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão (art. 184 da CF/88) para o valor referente à terra nua e em dinheiro para o valor referente às benfeitorias úteis e necessárias (art. 184, § 1º da CF/88), sendo consideradas insuscetíveis de desapropriação tão somente a pequena e média propriedade, desde que seu proprietário não possua outra e a propriedade produtiva (art. 185 da CF/88).
Estará sujeito à desapropriação-sanção o imóvel que deixe de cumprir quaisquer dos aspectos inerentes à função social da propriedade, ainda que a propriedade seja considerada produtiva, uma vez que a Carta Magna determina que tais aspectos devem ser atendidos simultaneamente. Tem-se entendido que a grande propriedade produtiva que não cumpra o aspecto ambiental previsto no art. 186, II da Constituição Federal poderá sofrer a desapropriação-sanção.
Nos casos em que haja o descumprimento do aspecto ambiental da função social da propriedade, existirá um passivo ambiental a ser restituído à coletividade pelo proprietário do imóvel desapropriado, para que seja possível a recuperação ambiental das áreas por ele degradadas, já que o infrator ambiental é responsável pelo dano ambiental de forma objetiva e propter rem.
Para que haja justiça na indenização pela desapropriação, esse passivo ambiental deverá ser compensado no valor levantado para pagamento da terra nua e das benfeitorias implementadas no imóvel, sendo devido ao expropriado somente a diferença encontrada, sob pena de enriquecimento sem causa do infrator ambiental.
Palavras-chave: Indenização. Desapropriação. Reforma Agrária. Passivo Ambiental.
SUMÁRIO: 1- INTRODUÇÃO -2- JUSTIFICATIVA -3- OBJETIVOS -4- A função social da propriedade -5- A função social da propriedade rural -6- A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária --7- A desapropriação em razão do descumprimento da legislação ambiental -8- O pagamento da justa indenização na desapropriação-sanção -9- O passivo ambiental -10- Obrigatoriedade de compensação do passivo ambiental na indenização da desapropriação-sanção -11- Conclusão -REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- INTRODUÇÃO
O estudo que ora se inicia compreenderá algumas reflexões sobre a justa indenização nas desapropriações por interesse social para fins de reforma agrária, propostas em razão do descumprimento da função social da propriedade rural, em seu aspecto ambiental. A Constituição Federal estabelece os aspectos que compõem o conceito de função social da propriedade rural em seu Artigo 186 - o aspecto econômico (aproveitamento racional e adequado), o aspecto ambiental (utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente) e o aspecto social (observância das normas que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores).
Poderá ser objeto de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária a propriedade rural que não estiver cumprindo sua função social, exceto a pequena e média propriedade, desde que seu proprietário não possua outra e a propriedade produtiva, devendo esta última atender simultaneamente os demais aspectos elencados anteriormente (art. 185 da CF).
A propriedade rural que descumpre o aspecto ambiental integrante da função social pode ser desapropriada por interesse social para fins de reforma agrária, por expressa previsão constitucional, ainda que considerada produtiva, mediante prévia e justa indenização, conforme estabelecido no Artigo 184 da Constituição Federal.
A intervenção na propriedade privada por meio da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária deve ser precedida de uma justa indenização, paga em Títulos da Dívida Agrária – TDA, para o valor referente à terra nua e em dinheiro para as benfeitorias úteis e necessárias. Referida indenização deve compensar o expropriado do patrimônio perdido, refletindo o valor de mercado do imóvel.
A constatação do efetivo descumprimento da legislação ambiental implica na existência de um passivo ambiental, correspondente ao valor necessário para a recomposição do meio ambiente degradado pelo expropriado ou por quem o tenha antecedido.
Para que realmente seja alcançada a justa indenização a ser paga ao expropriado pela perda da propriedade, o passivo ambiental deverá ser objeto de abatimento no valor de mercado encontrado para o imóvel expropriado, independentemente de quem tenha sido o causador do dano, uma vez que a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente é objetiva e propter rem.
2- JUSTIFICATIVA
Atualmente a grande maioria das ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária são propostas em face de proprietários detentores de grandes propriedades improdutivas, ou seja, que não cumprem a função social da propriedade rural em seu aspecto econômico.
A Constituição Federal, todavia, determina que seja desapropriada por interesse social para fins de reforma agrária a propriedade rural que não esteja cumprindo a sua função social, independente do aspecto que o proprietário esteja infringindo (econômico, ambiental ou social).
O crescimento da consciência ambiental vem impondo que Poder Público atue positivamente sancionando os proprietários rurais que descumprem a legislação ambiental, podendo desapropriar tais imóveis, por interesse social para fins de reforma agrária, destinando-os ao Programa Nacional de Reforma Agrária, já que este poder-dever restou amparado constitucionalmente, quando determinou-se no Artigo 184 da Constituição Federal que fosse desapropriado o imóvel que não esteja cumprindo sua função social.
A principal função deste trabalho é mostrar que a desapropriação-sanção por descumprimento da legislação ambiental deve ser priorizada em relação à desapropriação por descumprimento da função social em seu aspecto puramente econômico, principalmente, por ser mais um mecanismo de imposição aos proprietários rurais do cumprimento da legislação ambiental, bem como por ser mais econômica ao Erário, uma vez que o valor levantado a título de passivo ambiental deverá ser compensado da justa indenização preconizada constitucionalmente.
3- OBJETIVOS
O estudo que ora se inicia possui como principal objetivo demonstrar a possibilidade de se desapropriar por interesse social para fins de reforma agrária, a propriedade rural que esteja descumprindo a função social da propriedade unicamente em seu aspecto ambiental, além de demonstrar que o valor levantado a título de passivo ambiental deve ser objeto de abatimento no valor da indenização que deverá ser paga ao proprietário expropriado.
É sabido que a função social da propriedade compreende diversos aspectos – econômico, social e ambiental -, sendo que o descumprimento de qualquer deles autoriza a propositura, pelo órgão competente, de ação de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, nos termos do Artigo 184 da Constituição Federal, destinando-se o imóvel ao Programa Nacional de Reforma Agrária.
A Constituição Federal prevê que a desapropriação será precedida de prévia e justa indenização, que no caso de violação da função social da propriedade (desapropriação-sanção), será paga em Títulos da Dívida Agrária para o valor correspondente ao pagamento da terra nua e, em dinheiro, para o valor levantado para pagamento das benfeitorias úteis e necessárias.
No caso de desapropriação-sanção por transgressão da função social ambiental deverá ser identificado o passivo ambiental, que é o montante necessário para que se promova a recuperação do meio ambiente indevidamente degradado pelo expropriado, valor este que será compensado na indenização de forma que esta se torne realmente justa, uma vez que o passivo ambiental compõe o valor de mercado do imóvel.
4-A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A Constituição Federal de 1998, na parte relativa aos direitos e garantias fundamentais, garante o direito de propriedade (art. 5.º, inciso XXII), ressalvando, contudo, que esta "atenderá a sua função social" (inciso XXIII). Tal função social apresenta um matiz ativo, consistente em comportamentos positivos (prestações de fazer), de modo a impor, ao proprietário "o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem” [1].
Primeiramente, cumpre ressaltar, na lição de José Afonso da Silva[2], que "a norma que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, a própria jurisprudência já o reconhece; o princípio transforma a propriedade capitalista, sem socializá-la; constitui o regime jurídico da propriedade, não de limitações, obrigações e ônus que podem apoiar-se em outros títulos de intervenção, como a ordem pública ou a atividade de polícia; constitui um princípio ordenador da propriedade privada; não autoriza a suprimir por via legislativa, a instituição da propriedade privada", uma vez que, segundo o eminente constitucionalista, "interfere com a estrutura e o conceito da propriedade, valendo como regra que fundamenta um novo regime jurídico desta, transformando-a numa instituição de Direito Público (...)". Ao contrário das normas de eficácia contida, não pode ser objeto de qualquer restrição, incidindo imediata e diretamente.
Os princípios constitucionais acima expostos (propriedade privada e função social), por serem amplos e albergarem todo e qualquer tipo de propriedade – tanto a propriedade urbana quanto a propriedade rural -, bem como por lastrearem a ordem econômica e social, acabaram irradiando luzes por todos os ramos do direito.
O papel da função social da propriedade privada é fazer submeter o interesse individual ao interesse coletivo, correspondente ao bem-estar geral de toda a sociedade. O verdadeiro significado da função social da propriedade não é de diminuição do direito de propriedade, mas de ampliação do seu conteúdo que impõe ao proprietário dar à propriedade destino determinado, em benefício não somente de si próprio, mas de toda a coletividade que possa ser direta ou indiretamente atingida pelos reflexos causados pelo uso que o proprietário der à propriedade privada.
Segundo Olavo Acyr de Lima Rocha[3], a “propriedade não pode atender tão-só ao interesse do indivíduo, egoisticamente considerado, mas também ao interesse comum, da coletividade da qual o titular do domínio faz parte integrante”.
Sobre o assunto, Marcelo Dias Varella[4] ensina que “como conseqüência da evolução social, pode-se observar o crescimento das ideologias sociais democratas que têm como característica comum a limitação do direito de propriedade, vinculando-a ao cumprimento de sua função social”.
A consecução destes propósitos se torna incompatível com aquele conceito antiquado de propriedade definida no Artigo 524 do Código Civil[5]. A leitura de todos os textos do Código Civil só se pode fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela. As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal.
O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do Código Civil (usar, fluir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário
O proprietário fica obrigado a atentar para o interesse da coletividade para que possa fazer uso de seu imóvel. O interesse público sobrepõe o individual de maneira que surgem atores estatais e não-estatais para garantir esta obrigação. A função social desconstruiu juridicamente a idéia de absolutização da propriedade disposta no Código Civil de 1916 e repetida no novo Código Civil de 2002.
Abordando o mesmo assunto, André Osório Gondinho[6], ensina que a "função social da propriedade tem destinatários específicos: o titular do direito de propriedade, o legislador e o juiz". Para o primeiro, continua o jurista, "a função social assume uma valência de princípio geral: isto é, o proprietário não pode perseguir, ao exercer seus atos e atividades, uma função anti-social ou até mesmo, antijurídica, ao passo em que deve ter garantido a tutela jurídica a seu direito”.
O legislador é destinatário da função social da propriedade porque este não pode conceder ao titular do direito de propriedade, através de normas infraconstitucionais, poderes extravagantes ou em contrário ao interesse social previamente tutelado constitucionalmente.
Em referência à atividade judicante, o magistrado e os demais operadores jurídicos devem encarar a função social da propriedade como um "critério de interpretação e aplicação do direito, deixando de aplicar as normas que lhe forem incompatíveis"
A rigor, a função social é mais um dos elementos constitutivos da propriedade, ao lado dos demais, complementando-os, e de certa forma, potencializando-os, uma vez que, em sendo um direito que interessa reciprocamente a todos os membros da sociedade, os demais proprietários e mesmo aqueles que não são detentores de propriedade alguma, têm o direito de ver a propriedade sendo utilizada em sua plenitude, inclusive social. Neste sentido é o magistério de Roberto Wagner Marquesi[7]:
... já não é possível admitir que o titular empregue seu imóvel em atenção a fins puramente individuais. Cumpre-lhe, ao contrário, fazê-lo de uma forma útil à sociedade, usando-o como um instrumento de riquezas e visando à felicidade de todos. E, de fato, sendo escassos os bens naturais postos à disposição do homem, exige-se que seu uso se faça para proveito de todos, ainda que se deva respeitar a propriedade como um direito subjetivo individual, em contraposição às combalidas teorias marxistas. O predicado da função social, diz Trotabas, citado por Ribeiro da Cunha, não constitui uma ameaça ao direito do proprietário; antes, completa e enriquece a noção de propriedade.
O exercício do direito de propriedade, sob esta perspectiva, constitui-se em um verdadeiro encargo social, voltado, não somente ao interesse individual de seu proprietário, mas também ao bem estar da coletividade em geral.
A Constituição Federal tratou de forma diversa a função social da propriedade urbana da função social prevista para a propriedade rural. O constituinte abordou a função social da propriedade urbana no Artigo 182, §2º, nos seguintes termos: “Cumpre a sua função social, a propriedade urbana quando satisfaz as exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas no plano diretor”.
Ao seu passo, os requisitos para a verificação da função social da propriedade rural estão previstos no Artigo 186 da Constituição Federal, podendo ser agrupados em três aspectos principais: econômico, ambiental e social, os quais serão objeto de mais aprofundado estudo no tópico a seguir.
O cumprimento da função social da propriedade é também parte da Declaração de Direitos Humanos, e a partir de uma concepção histórico-dialética de formação dos direitos humanos, torna-se um dever de justiça. Reflete uma vontade do povo, auferida por meio de lutas sociais, que certamente serviram de base ao Poder Constituinte Originário brasileiro e, portando, não pode de forma alguma ser negado.
A propriedade que cumpre a função social estará constitucionalmente protegida como forma da promoção da dignidade da pessoa humana. A Constituição adotou a moderna concepção de direito de propriedade, pois, ao mesmo tempo em que consagrou como direito fundamental, deixou de caracterizá-lo como incondicional e absoluto.
5- A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL
A vigente Constituição estabeleceu novo Estado, fundado na dignidade da pessoa humana (Artigo 1º, III, da CF/88) - significando não somente um mero princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural - e com objetivo fundamental (Artigo 3º, da CF/88) voltado à realização da justiça social[8].
Como instrumento promotor da dignidade da pessoa humana e da justiça social a Constituição Federal de 1988 trouxe inserido em seu texto final a positivação do princípio da função social da propriedade como garantia fundamental, como princípio da ordem econômica e como elemento da política urbana, agrícola, fundiária e da reforma agrária.
O Artigo 186 da Carta Magna é considerado como um marco teórico, pois constitucionalizou a função social da propriedade rural, bem como seus requisitos. Reza tal dispositivo:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Os incisos do Artigo 186 da Constituição Federal contemplam direitos sociais (direitos humanos sociais e econômicos de segunda geração) e direitos ambientais (direitos humanos difusos de terceira geração) também expressos no próprio corpo da Constituição Federal por meio de outros dispositivos. Os incisos do Artigo 186 da Constituição Federal criam uma zona de inter-relação entre diversos ramos de direito de modo que, conjugados de forma sistemática, respeitando-se a unidade da Constituição, contemplam a busca incansável pelos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, expressos com a positivação do Artigo 3º da Constituição Federal de 1988.
O primeiro requisito do Artigo 186 diz respeito ao aspecto econômico, pois se refere à produtividade do imóvel rural. De acordo com Rafael Egídio Leal Silva[9], “aproveitar racionalmente a terra significa procurar sempre utilizar a melhor técnica agrícola no trabalho do solo (...). É utilizar na terra o tratamento técnico e científico adequado”.
A propriedade agrária é bem de produção e possui finalidade meio de produção de alimentos e matérias primas em quantidades razoáveis à sua localização, topografia e clima. Não é admissível pensar em propriedade agrária que não realize sua missão maior que é a produção de acordo com suas possibilidades naturais.
A propriedade ociosa é meio de criação de instabilidade social e se torna nefasta aos objetivos fundamentais da República, pois inibe o desenvolvimento social adequado e seguro. Não é por outra razão que o poder constituinte assegurou no texto da Lei Maior a proteção à produtividade agrária, como forma da promoção social e efetivação da dignidade da pessoa humana.
O Estado somente poderá garantir aos seus cidadãos dignidade humana, erradicação da pobreza, igualdade social, bem-estar social, direito à vida, direito à saúde, proteção à infância e aos desamparados se houver produção e distribuição de alimentos para todos.
Não se pode confundir função social com aproveitamento econômico, uma vez que o aproveitamento econômico é apenas um dos requisitos da função social materializado pela produtividade (Art. 186, I da CF/88), devendo este requisito ser associado à promoção de valores consagrados pela Constituição nos princípios e objetivos fundamentais da República.
O segundo requisito é a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente. Trata-se do aspecto ambiental da função social da propriedade. O conceito de meio ambiente pode ser retirado da Lei nº 6.938[10], de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente:
Art. 3º. Para fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I – Meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.
Percebe-se que a conceituação legal é ampla, abrigando não somente a relação do ambiente ao homem, mas também a todas as formas de vida e a tudo aquilo que a permite, que a abriga e rege. Pode-se dizer que tal conceito legal foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, como se pode observar ao analisar o caput de seu Artigo 225:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O inciso II do Artigo 186 também atua como forma de prevenção (princípio ambiental da precaução), uma vez que interpretado conjuntamente com o Artigo 184 da Constituição Federal determina, em caso de dano ao meio ambiente, a desapropriação da propriedade rural poluidora por interesse social para fins da reforma agrária, já que resta evidenciado o descumprimento de sua função social.
O Poder Constituinte ao positivar o inciso II do Artigo 186 da Constituição Federal buscou não só garantir a produtividade agrária do presente, mas também a produtividade agrária das gerações futuras. A produtividade agrária futura somente estará assegurada se preservados os recursos naturais necessários ao desempenho da agropecuária como água, solo e ar.
O inciso II do Artigo 186 encontra-se em perfeita comunhão com o inciso I do mesmo dispositivo Constitucional, uma vez que a propriedade rural deverá, para efeitos do cumprimento da sua função social, atingir os índices de produtividade respeitando e preservando o meio ambiente e os recursos naturais. O legislador pátrio atrelou esses requisitos (inciso I e II do Art. 186) de tal forma que é impossível o cumprimento da função social por meio da produtividade degradante ou da preservação improdutiva.
O terceiro requisito diz respeito ao aspecto social da função da terra. Tem-se nesse requisito a obrigação do proprietário das terras para com os empregados, que deve respeitar a legislação trabalhista e manter uma exploração que favoreça o bem estar dos trabalhadores e dos proprietários.
A realidade normativa constitucional atual registra a valorização do trabalho humano como fundamento da República (Art. 1º IV); como direito do homem como indivíduo (Art. 5º XIII); como direito e garantia individual social (Art. 7º) e coletivo social (Art. 8º e Art. 9º); como fundamento da ordem econômica (Art. 170) e como base da ordem social (Art. 193). Ou seja, a valorização do trabalho humano encontra-se disciplinada em todos os grupos de direitos fundamentais do homem existentes na Constituição Federal.
Sem prejuízo do princípio da livre iniciativa, da propriedade privada, da defesa ao meio ambiente entre outros, a atividade econômica agrária deverá se desenvolver de forma a respeitar as normas protetoras das relações do trabalho rural como forma de promover e valorizar o trabalho humano garantido constitucionalmente.
Caso não haja respeito às obrigações trabalhistas rurais, de forma a ameaçar a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho humano e o próprio trabalho, estará infringindo não só as leis reguladoras do trabalho agrário (Lei n. 5.889/73[11]), mas todo o corpo constitucional, conforme preconiza o inciso III do Artigo 186.
A observância das disposições que regulam as relações de trabalho, conforme descrito no artigo supracitado corresponde às legislações trabalhistas, previdenciária e tributária, para que ocorra o atendimento do comando constitucional, do vetor da função social da propriedade imobiliária agrária, garantidor da dignidade do trabalho humano agrário. Sem o respeito à dignidade do trabalho humano e ao próprio trabalho não se justifica, nos termos da Constituição Federal de 1988, a garantia da propriedade rural privada.
Não há propriedade que cumpra sua função social se não respeita os ditames que orientam as relações de trabalho e que garantem a dignidade do trabalho humano. Portanto, neste caso, aludida propriedade é passível de desapropriação para fins da reforma agrária nos termos do Artigo 184 da Constituição Federal.
Entretanto, da mesma forma como foi observado, quanto ao requisito ambiental da função social da propriedade (inciso II do Art. 186), no caso em análise, a infração às normas de segurança do trabalho, dependendo da grandeza da proporção, poderão fazer incidir o Artigo 184 da Constituição Federal, na desapropriação do imóvel por interesse social para fins da reforma agrária, como no caso dos imóveis em que tiver sido comprovada a existência de trabalho escravo, por exemplo.
Também componente do aspecto social, o inciso IV do Artigo 186 da Constituição Federal, diferencia-se dos demais incisos já analisados, pois diversamente daqueles, além de estabelecer responsabilidade ao proprietário agrário, também estabelece responsabilidade ao Estado, tornando-o agente promotor da função social da propriedade rural, uma vez que a ele (Estado) cabe a tarefa de propiciar a todos os que exerçam a atividade agrária as condições mínimas de bem-estar e de progresso social por meio da implantação de políticas agrárias públicas como, por exemplo, seguro de safra, fomentos, assistências técnica e tecnológica, controle fito e zoossanitário, entre outros.
A falta de condições de bem-estar e de progresso social e econômico faz com que o rurícola abandone a terra, emigrando para as zonas urbanas, em busca de melhores condições de vida, ou seja, um produtor ineficaz.
O parágrafo 5º do Artigo 9º da Lei n. 8.629[12] de 25 de fevereiro de 1993 define a exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais como a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.
Os requisitos do Artigo 186 da Constituição Federal de 1988 estão no mesmo nível hierárquico e possuem três finalidades expressas: uma finalidade de ordem econômica; outra finalidade de ordem social; e uma finalidade de ordem ambiental.
Examinando, pois, o mencionado art. 186 da Constituição Federal de 1988, serão três as finalidades da norma que se pode aduzir do espírito mesmo dos patamares de exigência: uma finalidade de ordem econômica, especialmente consagrada no inciso I que, revela a preocupação com a produção e a produtividade; uma outra finalidade de ordem social, especialmente consagrada no inciso III, que demonstra o cuidado com a segurança advinda das relações de trabalhistas; e por derradeiro uma finalidade de ordem ecológica, especialmente consagrada no inciso II, que claramente determina a obrigação de se proteger o meio ambiente.[13]
Tais requisitos devem ser atendidos simultaneamente na propriedade rural para que sua função social esteja caracterizada, sendo que deixará de cumprir a função social a propriedade que não atenda a qualquer destes requisitos. Sobre o disposto, leciona Rafael Egídio da Silva[14]:
A propriedade que produza e gere empregos, mas que não preserve o meio ambiente, não cumpre a função social e, portanto, está passível de desapropriação para a reforma agrária. Dessa forma, se ela preservar o meio ambiente e produzir, mas não respeitar as leis trabalhistas, nem gerar empregos, ela não cumpre sua função social. É o que se depreende diretamente do art. 186.
No entendimento de Luciano de Souza Godoy[15]:
A propriedade agrária, como corpo, tem na função social sua alma. Se a lei reconhece o direito de propriedade como legítimo, e assim deve ser como é da tradição de nosso sistema, também condiciona ao atendimento de sua função social. Visa não só o interesse individual do titular, mas também ao interesse coletivo, que suporta e tutela o direito de propriedade. A propriedade agrária como bem de produção, destinada à atividade agrária, cumpre função social quando produz de forma adequada, respeita as relações de trabalho e também observa os ditames de preservação e conservação do meio ambiente.
Assim, para que se considere cumprida a função social da propriedade rural é necessário que sejam obedecidos simultaneamente todos os requisitos previstos no art. 186 da Constituição Federal, sendo que a violação a qualquer deles autoriza a propositura de competente ação de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária e conseqüente destinação do imóvel ao assentamento de trabalhadores rurais, por meio do Programa Nacional de Reforma Agrária.