Em decorrência de mais de vinte anos de experiência na militância de defesa de concessionárias de veículos automotores, resolvi destacar a visão distorcida de alguns juristas na análise que envolve as relações entre as revendedoras e fabricantes, nos termos do que dispõe Lei Ferrari, que regula as relações comerciais de tal natureza. Aqui em especial, quanto a validade ou não do Foro contratual de eleição.
Por primeiro, de se retratar que a balança que divide um concessionário e um fabricante, possuem distâncias absolutamente sui generis. Uma concessionária jamais representará a grandeza e a força econômica de um fabricante. Tal introdução é importante, pois aos olhos do público e também de se dizer de uma judicância, a concessionária transmite opulência e grandeza de aparente poder econômico. Daí advém o inicial equívoco de análise, em considerar equânime a posição das partes, pois no rompimento ou quebra contratual de qualquer natureza, termina por esvaziar por completo o resultado econômico do concessionário frente ao fabricante. Ao passo que este substitui o revendedor, com naturalidade de sua real dimensão econômica, sem quaisquer prejuízos, ou comprometimentos com a comunidade local.
A conclusão imediata, pela quebra contratual injusta e sem indenização é de que a parte comercial representada pela concessionária, deixa de existir e passa a se esvaziar economicamente, por vezes sem condições de lutar por seus direitos fora de sua circunscrição. Não há condições econômicas de igualdade, que permita ao concessionário litigar fora de sua região territorial, o que geralmente não é compreendido pelas jurisdições que analisam tal tema - confusos com o mundo da aparência - em manifesto equívoco da fraqueza de um, diante da grandeza de outro. É necessário sensibilidade e perspicácia para enfrentamento correto do tema.
Por segundo, desafia-se qualquer empresário do ramo automotivo a alterar as redações de um contrato de concessão mercantil, instrumento que regulamenta as relações entre concedente e concessionário. Do Oiapoque ao Chuí, qualquer empresário que firmar um contrato de concessão com o fabricante terá a eleição de foro de mesma localidade. Isto representa segurança jurídica equânime? A resposta é ampla e retumbantemente negativa. O interesse é exclusivo do fabricante, que em decorrência de tal deliberação tem maior subjugo ao seu concessionário, que por muitas vezes para evitar litígios de impossível acompanhamento fora de seu território, permite aceitar qualquer composição apresentada pelo concedente/fabricante.
O direito precisa ser analisado a luz da realidade, não de um faz de conta jurídico.
A verdade insuperável é que todos os contratos de concessão mercantil, são instrumentos de adesão pura e simples, eis que dito documento não é, nem nunca foi, passível de alteração bilateral, tanto é verdade que todos os contratos em nível de Brasil são absolutamente idênticos, só mudando o nome e a abrangência de atuação do respectivo concessionário. Em suma, ou se assina o contrato na sua formatação ou não integrará a rede de distribuição de veículos automotores escolhida.
O fato de que a cláusula eletiva de foro, estabelecida em contrato de adesão pela parte economicamente mais forte, revela-se abusiva pois impõe, ao contratante mais fraco, sérios (e por vezes insuperáveis) óbices ao pleno acesso à jurisdição e à sua defesa no processo, assim afrontando as correspondentes garantias constitucionais e aspectos processuais, que deveriam ser melhores compreendidos pela a autoridade judiciária, diante de situações que possam, efetiva ou potencialmente, colocar em risco tais desígnios, adotar de imediato as medidas corretivas adequadas, atentas ao dever de permanente vigilância e defesa dos ditames constitucionais, imposto a todos os cidadãos e, em especial, aos integrantes do Poder Judiciário.
Cabe ponderar, não ser pacífico entendimento sobre compatibilidade da cláusula de eleição do foro com o pacto de adesão. Confira-se a respeito o RESP 41.634-5/RS; ac.930034310-6; Rel. Ministro Antonio Torreão Braz, RSTJ 62, que guarda a seguinte ementa, verbis:
EMENTA: FORO DE ELEIÇÃO. ARTIGO 111 DO CPC. CONTRATO DE ADESÃO. O ARTIGO 111 DO CPC, aplica-se aos contratos em que as partes contratantes tem plena liberdade para estabelecer cláusulas disciplinadoras dos seus direitos e obrigações, o que acontece quando elas são economicamente iguais. Está, portanto, fora do seu alcance o contrato de adesão que não proporciona à parte aderente a oportunidade para decidir sobre eleição do foro.
(R.Esp. 36.975-4-RJ, III T., Rel. Min. Cláudio Santos, DJU, 08-08-94, p. 19.563).
Em caso símile, envolvendo a BMW decidiu o Tribunal de Justiça de Brasília/DF:
Exceção de Incompetência. Pretensão indenizatória embasada na desconstituição unilateral do negócio. Contrato de Adesão. Concessão Comercial. Eleição de Foro. 1. É de adesão o contrato de concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre. 2. Posto que não se trate de contrato de consumo, a validade da cláusula de eleição de foro dele constante, adequadamente questionada pela parte interessada, subordina-se à inexistência de grave dificuldade para aderente ter acesso ao Judiciário, haja vista que o amplo exercício da defesa não é privilégio do consumidor, mas, sim, direito de qualquer litigante. 3. Afastado o foro eleito no pacto de adesão, a competência no caso é definida conforme o artigo 100, IV, “d”, do CPC, pois a pretendida indenização é mero sucedâneo da ação de exigir o adimplemento. 4. Confirma-se a competência do foro de Brasília, onde seria executada a obrigação nuclear dos produtores.
STJ - AGRG NO AG 478167-DF, RESP 79083-SP (RSTJ 134/346), CC 30712-SP (RT 809/212, RSTJ 162/221), CC 32877-SP (RNDJ 42/118)
A exemplo disso, em franca evolução, no regime do Código de Defesa do Consumidor, as mencionadas garantias constitucionais ganharam ainda maior vulto e relevo, mercê da generosa e inescondível intenção da lei em proteger, nos intrincados e complexos negócios dos dias correntes, aquele contratante que, por razões pessoais e/ou econômicas, se encontre em situação de desvantagem perante o outro. E essa intenção se revela em sua plenitude quando a lei reconhece como abusiva - e comina de inválida - a cláusula contratual que viole o direito básico, garantido ao consumidor, de facilitação de sua defesa (arts. 6º, VIII e 51, IV e XV, conjugados).
O fato é que a eleição do Foro em Contrato de Concessão mercantil, não pode ser um óbice ao devido processo legal e impossibilidade de acesso ao judiciário pela parte prejudicada, pois se deve compreender que uma concessionária em rescisão contratual sem indenização, torna-se carente na maior acepção de seu termo. De repente deixa de ter faturamento da sua consecução contratual, com a manutenção do mesmo custo fixo, em verdadeiro esvaziamento econômico/financeiro, não consegue regular o desencaixe imediato que tal situação gera, por vezes levando a sua quebra.
É de se discorrer, por importante, que atual redação do artigo 112 do CPC, assevera em seu parágrafo único:
Parágrafo único. A nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo de domicílio do réu." (NR)
Tal inserção, permite ao juízo a análise imediata da nulidade do Foro de eleição em contratos de adesão, como os inserto nos contratos de concessão mercantil, aqui abordados. Entretanto, o espírito de análise há de compreender a distância econômica das partes contratantes e o esvaziamento financeiro que uma rescisão gera nas concessionárias de veículos automotores, que não lhe permite demandar fora de suas cercanias. Ao passo, que as fabricantes, tem condições em demandarem em quaisquer localidades do País, pois sempre substituem os concessionários destituídos por outros e não absorvem quaisquer prejuízos das operações comerciais locais.
No tocante à isonomia processual, as normas citadas criam condições de equilíbrio entre os litigantes, contribui para que o mesmo possa exercer seu direito de defesa da mesma forma que o fabricante pode exercer seu direito de ação, ou seja, sem dificuldade e dispêndios financeiros exacerbados, uma vez que nas regras atuais, o concedente pode escolher a localidade onde ajuizará a demanda e ao concessionário não cabe tal escolha. As novas regras terminam com tal desigualdade - tal norma vem a coadunar-se com o espírito e princípios do Código de Defesa do Consumidor, tentando ao máximo diminuir a hipossuficiência da parte carente, em especial nos contratos de adesão.
Com efeito, a Lei nº 6729/79, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 8132/90, ao disciplinar o contrato de concessão comercial, impõe a padronização de várias cláusulas (arts.13, par 2º, 16, III e 21), com o que se evidencia, por um lado, o pacto de adesão e por outro, conforme anotado pelo mestre Orlando Gomes[1], o reconhecimento do desequilíbrio entre os contraentes, a ponto de o legislador cuidar, com a padronização, de proteger a parte mais fraca, a saber, o concessionário. Aliás, com o devido respeito, é gritante o absurdo de proclamar-se que um concessionário qualquer se acha em pé de igualdade com o concedente/fabricante, muitos com faturamento superior ao PIB de diversos países em desenvolvimento.
Assim, a eleição de foro (art. 111 do CPC) só obriga quando assegurada plena liberdade de contratar, liberdade essa inexistente nos contratos de adesão, nos quais predomina a vontade do proponente em detrimento à do aderente. Forçar este a litigar em foro de eleição, através de cláusula que não teve oportunidade de discutir, porque lhe foi imposta, significa inviabilizar-lhe a tutela de seus direitos decorrentes da relação negocial. Tratando-se de contrato de adesão, a cláusula que elege foro diverso do domicílio do aderente é nula de pleno direito, face a sua potestatividade, pois implica violação aos princípios constitucionais basilares, como da ampla defesa, acesso ao Poder Judiciário e do contraditório.
[1] Contratos, pags. 421/422, 12ª ed., 2ª tiragem, Forense.