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Filosofia metafísica-transcendental, fenomenologia e giro linguístico:

reflexões sobre hermenêutica clássica e filosófica

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Agenda 25/02/2015 às 10:13

4- Sobre o giro linguístico:

Percebe-se que com o giro linguístico , há uma mudança radical na forma de pensar a origem do conhecimento. Como foi visto no primeiro tópico do nosso estudo, o conhecimento se originaria da relação sujeito-objeto, ora através da busca das essências, ora através da racionalidade lógico dedutiva, ou mesmo através das condições transcendentais do sujeito cognoscente.

Com o giro linguístico, poderíamos retornar à polêmica inicial envolvendo Platão e os Sofistas, e refletir novamente  sobre o ato inicial de nomear. Assim, por exemplo,  quando o primeiro homem deu nome a uma árvore ao vê-la pela primeira vez,  aquele nome passou a significar alguma coisa em determinado contexto linguístico. Aquela árvore não necessariamente passou a existir porque lhe foi conferida uma denominação, tampouco a sua nomeação estaria vinculada a uma essência ou ideal daquela árvore, mas o nome árvore, em determinado contexto passou a significar algo, uma imagem inconsciente em determinada comunicação intersubjetiva.

Destarte, quando se fala a palavra árvore diante de alguém, esse alguém cria uma imagem inconsciente de determinada árvore, baseado em suas memórias acerca daquela representação linguística desde quando ele passou a ter acesso a um mundo linguístico, repleto de significações e interpretações  acerca da palavra árvore. Não se busca mais aqui a noção de um sujeito abstratamente considerado, tentando alcançar o conhecimento absoluto e essencial acerca do objeto árvore, confiando na certeza do conhecimento que essa busca poderia propiciar.  A lingugem aqui não é mais instrumento, mas verdadeiro ''fio condutor''  e se torna imperioso observar, sobretudo, que sujeito/objeto-árvore  estão inseridos em um contexto linguístico, um mundo linguístico que dita as possibilidades de determinada interlocução e do conhecimento acerca de algo.

O linguistic turn  ou ‘’guinada linguística’’,  ocorreu por diversas frentes, dentre as quais pode ser destacado como um dos momentos iniciais o chamado Círculo de Viena. Na Universidade de Viena, entre 1922 e 1936, foi desenvolvida entre os chamados ‘‘neopositivistas lógicos’’ a perspectiva de que as condições acerca do conhecimento se dariam com a perseguição rigorosa das condições de possibilidade de construções linguísticas, pela busca de linguagens ideiais. A filosofia se reduziria  à epistemologia e à semiótica, desprezando  preocupações metafísicas.

Outra frente é capitaneada por Ludwig Wittgenstein, o qual  defendia que não existia uma coisa em si , um mundo em si, mas sim um mundo linguístico. A linguagem deixa de ser um intrumento de comunicação e passa a ser condição de possibilidade para a constituição do conhecimento. (STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica em crise, p.144).


5- A escola fenomenológica, brevíssimas considerações:

Fenomenologia e giro linguístico,  apontam para uma direção similar, em uma relação de coordenação no que toca ao estabelecimento de novos parâmetros de investigação, reposicionando o pensamento filosófico ocidental até então oprimido pelo positivismo e o naturalismo marcantes na idade moderna.

O ponto de partida na fenomenologia é justamente reflexão sobre as implicações acerca do modus operandi  das chamadas ‘‘ciências do espírito’’ (Geisteswissenschaften) frente às ‘‘ciências da natureza’’ (Naturwissenschaften) segundo a divisão proposta  inicialmente por Wilhelm Dilthey (1833-1911).

Foi Edmund Husserl (1859-1938) um dos marcos iniciais da investigação fenomenológica. Em seus escritos ele não se apega mais a conceitos como consciência ou subjetividade, mas ao conceito de ‘‘vida’’. É  o ‘‘mundo da vida’’ (Lebenswelt) o solo anterior de toda a experiência. A historicidade desse mundo é que marca as condições transcendentais das atribuições de sentido, sempre perpassadas por uma temporalidade circunstancial, uma vez que as coisas uma vez experimentadas já foram experimentadas anteriormente. A própria consciência possui uma vida, e esta passa diante de um horizonte temporal, o que impõe uma auto-limitação que inviabiliza o ontológico originário platonista. O mundo da vida abarca o mundo objetivo e o mundo subjetivo, impondo uma investigação acerca da experiência humana no mundo, inviabilizando qualquer racionalismo unilateral. O mundo da vida é um local compartilhado por todos, dentro do qual se desenvolve o sujeito dentro de um horizonte comum de intersubjetividade social. Assim, a pesquisa fenomenológica busca encontrar um solo de realização desse sujeito-no-mundo.

Nessa trilha podemos perceber,  já com Heidegger (1889-1976), que se a temporalidade é o que marca qualquer atribuição de sentido, a própria compreensão ontológica do ser abre possibilidades de sentido que exigem sempre uma nova compreensão. A compreensão é permanente já que não existe um sentido originário que cessa a atividade de pesquisa ontológica, ‘‘a fenomenologia sempre libera novos horizontes que deverão ser novamente interpretados.’’ (MAZZOTI, Marcelo. As escolas hermenêuticas e os métodos de interpretação da lei, P.34).

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Em sua obra, Heidegger utiliza revisões terminológicas que somente podem ser adequadamente compreendidas à luz de seu próprio pensamento, como Dasein, existência, temporalidade, ser-no-mundo, e a própria fenomenologia. O termo fenômeno, por exemplo, é visto sob a seguinte perspectiva:

‘‘O fenômeno, o mostrar-se em si mesmo, significa um modo privilegiado de encontro. Manifestação, ao contrário, indica no próprio ente uma remissa referencial, de tal maneira que o referente (o que anuncia) só pode satisfazer a sua possível função de referência se for um ‘‘fenômeno’’, ou seja, caso se mostre em si mesmo. Manifestação e aparência se fundam, de maneira diferente, no fenômeno. Essa multiplicidade confusa dos ‘‘fenômenos’’ que se apresenta nas palavras fenômeno, aparência, aparecer, parecer, manifestação, mera manifestação, só pode deixar de nos confundir quando se tiver compreendido, desde o princípio, o conceito de fenômeno: o que se mostra em si mesmo.’’ (MAZZOTI, Marcelo. As escolas hermenêuticas e os métodos de interpretção da lei, p.36)

A ideia básica na fenomenologia de Heidegger é a compreensão do ser. Contudo é preciso ter em mente que a própria compreensão volta sobre si mesma, ela é necessariamente autorreflexiva.  O compreender é algo enquanto tal, mostra-se em si mesmo, assim como o próprio sujeito que compreende se insere dentro da compreensão, o que impõe uma visão interpretativa distinta da hermenêutica tradicional, na medida em que não se separam mais os momentos de interpretação e aplicação, tampouco é possível dividir a interpretação em etapas. O sujeito intérprete não compreende o mundo e as coisas de fora, pelo contrário, ele está dentro da interpretação. Portanto, não mais  é concebível a certeza que o método hermenêutico supostamente poderia conferir, já que a atividade hermenêutica, em um viés filosófico, sempre abre novos horizontes interpretativos.


6- A hermenêutica filosófica de Gadamer:

Hans Georg Gadamer (1900-2002), em sua obra-prima Verdade e Método, postula as variáveis da interpretação com base na ontologia do ser e na fenomenologia. É fascinante a forma como o autor trabalha a questão problemática da pré-compreensão no momento da interpretação. É que, como já foi evidenciado por Heidegger,  o momento interpretativo está eivado de historicidade, a interpretação ocorre dentro de um horizonte temporal. O intérprete está eivado de pré-concepções, hábitos e da própria tradição. No volume I de Verdade e método, Gadamer se dedica a avaliar a experiência da obra de arte, em um constante diálogo com o pensamento Kantiano. É que tal atividade, assim como a interpretação de um texto, realiza-se sempre por meio de um projeto prévio.

‘‘ Quem quiser ler um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado.’’(GADAMER, Hans-Georg.Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p.356)

Assim, a partir do momento em que o intérprete tem consciência dessa atividade indutora (pré-compreensão) ele pode ser capaz de evitar que sua atividade não caia em um solipsismo. No entanto, faz-se necessário reconhecer a alteridade do texto, sem o abandono das próprias pré-concepções, para que a atividade interpretativa não implique em uma mútua aniquilação entre texto e intérprete. Isso enseja a conclusão de que a atividade interpretativa é sempre um ‘‘recriar’’ (Nachschaffen). Neste ponto, Gadamer reavalia o que era defendido por Platão acerca da atividade interpretativa  a partir do exemplo da encenação da peça teatral,  tomando a seguinte conclusão:

 '' A encenação de um espetáculo teatral não pode ser separada dele como algo que não pertence ao seu ser essencial, já que é tão subjetivo e fugidio como as vivências estéticas nas quais  é experimentado. Antes, é só na execução que encontramos a obra ela mesma - o mais claro exemplo é o da música - assim como no culto encontra-se a divindade. Fica claro aqui o ganho metodológico que se obtém partindo-se do conceito de jogo. A obra de arte não pode simplesmente ser isolada da ''contingência'' das condições de acesso sob as quais se mostra, e onde isso ocorre o resultado é uma abstração que reduz o verdadeiro ser da obra. O espetáculo só ocorre onde está sendo representado, e para o ser a música deve soar''.  (GADAMER, Hans-Georg.Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p.172)

Portanto, está ali um texto necessariamente dentro de determinado contexto, assim como o próprio intérprete está dentro de um horizonte temporal e de um mundo linguístico que estava ali antes dele e que junto com ele também é mundo. Isso impossibilita a criação de legislações que abarquem todo o existir e todas as possibilidades da existência, já que a própria criação da lei cria novas possibilidades de interpretação, a própria interpretação também cria novas possibilidades e a  interpreração só se realiza enquanto ocorre, assim como a música só ocorre quando é tocada,  a peça teatral quando é encenada, o culto quando é cumprida a liturgia e o jogo quando é jogado. Tal postura aproxima a lei da facticidade  na medida em que a interpretação não fica engessada por uma pretensão idealista e abstrativista do espírito do ''legislador''. 

Contudo, Gadamer faz a advertência que essa postura não implica em uma arbitrariedade do intérprete, nesse caso o juiz. O juiz não pode recair em um solipsismo, ele deve ter consciência de sua pertença à tradição justamente para evitar isso. Tal ponto de vista é muito próximo do romance em cadeia  preconizado por Ronald Dworkin. O direito como integridade, segundo Dworkin, constitui-se como teoria norteadora da práxis jurídica, sendo necessária a manutenção de uma coerência de princípios. Em uma lide judicial as partes já devem estar cientes do provável resultado da sua pretensão, deve haver um grau razoável de previsibilidade e nenhum tipo de arbitrariedade.

Ao lado da coerência deve existir também integridade, porque nada impede que a cadeia das decisões seja interrompida e se submeta a outra perspectiva oriunda da mundança de valores que o tempo e as prórpias interpretações encadeadas podem provocar.  Assim, não deve haver um abandono da tradição, deve-se sobretudo continuar a escrevê-la e realizá-la dentro de novas realidades em um processo de renovação que se realiza com coerência, na medida em que se observa o que tinha sido escrito anteriormente. Destarte, a interpretação é uma atividade infinita, eminentemente existencial porque ocorre em todas as esferas da vida e em quaisquer relações intersubjetivas. 

Sobre o autor
Tomás Jobin Coutinho Lopes

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí - UFPI; Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Tomás Jobin Coutinho. Filosofia metafísica-transcendental, fenomenologia e giro linguístico:: reflexões sobre hermenêutica clássica e filosófica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4256, 25 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32380. Acesso em: 22 nov. 2024.

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