A indenização punitiva tem sua origem nos primórdios do direito, junto ao Código de Hamurábi, evoluindo ao longo dos anos até se tornar o método mais eficiente para a punição e prevenção de ilícitos civis e até mesmo penais em larga escala, que pode ser demonstrada, por exemplo, pelo alto índice de adesão ao instituto nos estados norte-americanos, sua baixa necessidade de utilização e significativas mudanças que sua utilização causa em indústrias inteiras [1].
Pode-se argumentar que sua maior qualidade é a de impedir que novos ilícitos sejam cometidos sem adentrar a esfera do direito penal, que, por ser a ultima ratio, tem regras muito mais estritas para responsabilização do ofensor e um período de julgamento deveras longo, o que acaba permitindo que empresário fuja de sua responsabilidade, principalmente a de indenizar, através de diversas manobras jurídicas protelatórias.
É imperativo ressaltar que não é qualquer desventura da vida cotidiana que enseja o direito à indenização, sendo necessário tratar-se de verdadeiro prejuízo à vítima (físico ou psíquico). Daí decorre que a indenização punitiva somente aparece, e deve aparecer, na doutrina e jurisprudência nacionais como parte das três funções da indenização por dano moral, quais sejam indenizar a vítima, punir o ofensor e prevenir que a conduta ilícita seja repetida.
A indenização punitiva não cabe em todas formas de responsabilidade civil e deverá ser utilizada somente quando a conduta do ofensor for necessariamente reprovável e fundada na grave negligência, má-fé ou opressão [2], restando excluídas condutas lesivas decorrentes de ignorância, culpa simples ou engano.
Os diversos argumentos contrários à adoção da indenização punitiva estão elencados a seguir:
a) O risco de violação do princípio da legalidade presente no artigo 5º, que resta superado pelo princípio da dignidade da pessoa humana que garante que devem ser utilizados os meios necessários para prevenção de riscos à mesma;
b) O risco de dupla punição, pelo agente ser punido no âmbito penal e civil, que é superado ao se analisar que um mesmo ilícito pode ser considerado ilícito civil e ilícito penal, devendo ser aplicada a sanção correta por cada um dos ramos do direito. Ademais a indenização punitiva pode ser fixada diretamente no juízo penal e se somar à indenização a qual a vítima teria direito em eventual ação civil ex delicto, privilegiando a celeridade da justiça [3];
c) A alegação contra a dupla punição no âmbitos civil e administrativo é superada ao se verificar que o Código de Defesa do Consumidor prevê a possibilidade de ambas as sanções, uma sem prejuízo da outra;
d) O suposto enriquecimento ilícito ou sem causa da vítima, que auferiria uma vantagem pecuniária desproporcional ao dano que sofreu, é superado ao se colocar na balança o suposto enriquecimento da vítima em relação ao enriquecimento ilícito do ofensor com a prática ilícita, ademais não se pode levar em consideração a capacidade socioeconômica da vítima pois a situação fática que ensejou o dano moral é idêntica para qualquer ser humano, não sendo possível inferir que uma vítima mereça uma compensação menor simplesmente por ser hipossuficiente em questões financeiras;
e) A questão da responsabilidade civil sem culpa já foi superada na análise de em quais tipos de responsabilidade civil caberia a indenização punitiva;
f) O fato de o responsável eventualmente não vir a pagar o valor da condenação é superado ao se utilizar a desconsideração da personalidade jurídica.
Considerando que a indenização punitiva encontra previsão no ordenamento jurídico brasileiro [4] pela utilização dos argumentos supramencionados, passemos a analisar o que motivaria uma empresa a ingressar numa conduta claramente ilícita.
De um ponto de vista estritamente econômico, diversas atividades moralmente reprováveis como exploração de trabalho escravo, venda de produtos superfaturados (tanto pelas falsas propriedades alegadas quanto uma suposta qualidade agregada a marca, comum em caso de suplementos e produtos de beleza), oferta de produtos defeituosos que trazem risco à vida do consumidor, despejo de lixo tóxico em rios e diversas outras atividades ilícitas podem ser consideradas racionais e fazer sentido. O único incentivo para que qualquer pessoa física ou jurídica ingresse numa das condutas ilícitas supramencionadas ao exercer a atividade empresarial é o retorno financeiro.
Ainda que legalmente a empresa deva cumprir sua função social em um plano, esta é muitas vezes completamente esquecida em face da pura e simples obtenção de lucro.
Não se trata de uma questão moral ou ética, mas simplesmente (e infelizmente) de uma questão lógica de sobrevivência no mercado capitalista em que todas as empresas estão inseridas.
Ora, se pela forma atual do sistema uma determinada empresa consegue obter lucros de maneira ilícita e não ser penalizada por isto de qualquer maneira, ela obterá uma vantagem ilícita considerável sobre qualquer outra empresa que não pratique a mesma conduta. Isso torna a conduta ilícita não apenas desejável e atraente do ponto de vista econômico como necessária para a sobrevivência de uma empresa no mercado competitivo. Por exemplo, uma empresa que comercialize roupas manufaturadas em sweatshops de países asiáticos e sonegue tributos terá um produto final com um valor muito mais abaixo do de uma empresa que produza produtos internamente e pague todos os tributos corretamente.
Sendo assim, se não for possível retirar o incentivo econômico para que estas práticas sejam mantidas, não importa quantas ações sejam propostas nem quantas condenações foram obtidas.
Em suma, se a vantagem de praticar o ilícito for economicamente mais vantajosa que a de não praticá-lo, ele continuará ocorrendo.
Outro exemplo que pode ser utilizado é o de um paciente com câncer que necessite de um tratamento que custe duzentos mil reais por mês à seguradora. Todavia, caso ele não receba o tratamento necessário e venha a falecer, o custo da indenização, que muito provavelmente será indevidamente baseada na renda da vítima para evitar um suposto enriquecimento ilícito [5], será muito menor que o custo do tratamento. O que torna esta opção, do ponto de vista puramente econômico, extremamente vantajosa para a seguradora.
Sem um claro incentivo contra esta prática reiterada de negação de cobertura uma seguradora que se valha dela e pague menos, desde que os consumidores não tenham acesso a essa informação, lucrará muito mais que uma seguradora que efetivamente pague suas apólices de seguro, o que poderá fazer com que a primeira venha a dominar o mercado e, por exemplo, adquirir forçosamente a segunda ou diminuir tanto os preços de seus seguros que a segunda não tenha capacidade de concorrer com ela.
A mesma lógica é aplicada por um banco ao cobrar juros abusivos, pois mesmo que alguns consumidores, no universo gigantesco de consumidores lesados, venham a ingressar com ações indenizatórias, o banco somente será obrigado a indenizar o valor relacionado a estes consumidores, lucrando todo o valor restante devido a sua atividade ilícita.
Sendo assim, é imperativo que o direito, especialmente no caso da responsabilidade civil derivada de ato ilícito, atue como fiel da balança para que a lógica de acumulação de capital do mercado através de quaisquer meios disponíveis não triunfe sobre os direitos humanos.
A única maneira verdadeiramente eficaz para que isto ocorra é a utilização da indenização punitiva, que deve ser pelo menos proporcional aos lucros obtidos com a atividade ilícita, efetivamente retirando o incentivo monetário para que as empresas mantenham essas atividades e nivelando o mercado, o que permitirá uma competição mais justa e baseada somente em condutas lícitas.
notas
1 O Trabalho de Conclusão de Curso “Indenização Punitiva no Direito Brasileiro”, de minha autoria, traz diversos exemplos de casos em que a indenização punitiva foi diretamente responsável por modificar a conduta de empresas. Por exemplo: “Tampas de garrafa. Em 1985 um homem de 80 anos perdeu a visão do olho esquerdo quando a tampa de alumínio do seu refrigerante 7-Up explodiu e voou em direção a seu olho. Documentos revelaram que a companhia responsável pela produção do produto sabia do possível defeito desde o inicio dos anos 70 e havia simplesmente adicionado um aviso na garrafa como meio de evitar indenizações. Depois do veredicto de 10 milhões de dólares em indenização punitiva, toda a indústria trocou a tampa por um modelo de plástico e incluiu avisos mais específicos nas garrafas.(E-mail correspondence from Colin King, July 21, 2000 (King is the attorney for plaintiff Mae Roberts “Accidents; A Costly Pop In the Eye,” Time, December 21, 1987; Roberts v. Aluminum Company of America et al., No. C86-0013) (Salt Lake County Ct., Utah, verdict December 5, 1987 Apud GOTTLIEB, 2011) (tradução nossa)
2 A indenização punitiva deverá ser utilizada em condutas que seguem a lógica da equação mencionada em “Clube da Luta” de Chuck Palhniuk ": "Aonde quer que eu vá, será para aplicar a mesma fórmula. Manterei o segredo intacto. É matemática simples. O enunciado de um problema. Se um carro novo construído pela minha empresa sai de Chicago em direção ao oeste a noventa e cinco quilômetros por hora, o diferencial traseiro trava, o carro bate e pega fogo com todo mundo dentro, minha empresa inicia um recall? Você pega a população de veículos em uso na região (A), multiplica pelo índice provável de defeitos (B) e depois multiplica o resultado pela média de custos de um acordo extrajudicial (C). A vezes B vezes C é igual a X. Isso é o que nos custará se não fizermos o recall. Se X for maior que o custo do recall, fazemos o recall e ninguém sairá machucado. Se X for menor que o custo do recall, então não o faremos.”
3 Todavia, ao se considerar a lentidão do sistema penal brasileiro e a alta chance de prescrição da pretensão punitiva, o mais indicado é que a indenização punitiva seja resolvida separadamente no âmbito civil
4 Em decorrência do artigo 5º da Constituição Federal, dos artigos 186, 927 e, especialmente, 944 do Código Civil. Especialmente este último pois se a indenização é medida pela extensão do dano é razoável presumir que o mesmo deve ser no mínimo idêntico ao lucro auferido, principalmente pelo fato de ser vedado o enriquecimento que derive de ato ilícito.
5 Este julgado do Superior Tribunal de Justiça explica de maneira clara porque este não deve ser o caso “Em se tratando de danos morais decorrentes da perda de um ente querido, a condição socioeconômica da vítima ou beneficiário do beneficiário não é critério para a fixação do valor da compensação; porque seja qual for a situação econômica da vítima ou do beneficiário, a situação fática que causa dano moral é a mesma para qualquer ser humano, qual seja a perda de uma pessoa querida. Deve-se levar em conta essencialmente a extensão do dano consistente no sofrimento e no abalo psicológico causados pelo falecimento (STJ-RDDP 53/128: 3ª T., REsp 660.267) (grifo meu)