Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Cautelares satisfativas?

Exibindo página 3 de 6
Agenda 01/11/2002 às 00:00

6- Pressupostos da Antecipação dos Efeitos da Tutela

Este é um ponto de capital importância para nossa análise conforme adiante se verá. Não podemos passar adiante em nossa análise sem verificarmos quais são os requisitos da antecipação de tutela, ou seja, em que condições será deferida. Tais elementos encontram-se no artigo 273 do CPC e passaremos a analisá-los doravante. Reza o artigo citado: "Art. 273- O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I- haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II- Fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manisfesto propósito protelatório do réu. § 1º Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões de seu convencimento. § 2º Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. § 3º A execução da tutela antecipada observará, no couber, o disposto nos incisos II e III do art. 588. § 4º A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada. § 5º Concedida ou não a antecipação de tutela, prosseguirá o processo até final julgamento"

Primeiro ponto que salta à vista é o de que a antecipação dos efeitos da tutela carece de provocação da parte, a contrario sensu dos provimentos cautelares (não medidas) que podem ser tomados ex offício pelo magistrado com base no poder geral de cautela [24]. A referência à antecipar a tutela pretendida no pedido inicial é equivoca. Como dissemos, não se antecipa a tutela, mas apenas alguns de seus efeitos práticos. Mas o grande diferencial à cautela, sob o ponto de vista dos requisitos, reside na necessidade de prova inequívoca. O juízo de verossimilhança que resulta da prova inequívoca possui um grau de convencimento bem mais consistente que o juízo de mera verossimilhança das cautelares. Prova inequívoca, a rigor, é a prova capaz gerar um juízo de certeza próprio da cognição exauriente [25]. No entanto, a cognição levada a efeito para a antecipação dos efeitos da tutela é sumária. Não haveria aí uma incongruência ao falar-se em prova inequívoca e em juízo de verossimilhança [26]? Não. Pode resultar de uma cognição sumária um juízo de certeza sem problema algum. Sumariedade ou exauriência dizem com a profundidade da investigação levada a termo e não necessariamente com o grau de convencimento equivalente a probabilidade ou certeza. É claro que quase sempre a certeza exsurge de uma cognição exauriente e a verossimilhança, enquanto mera probabilidade, de uma cognição sumária. Mas nem sempre.

Podemos ter uma cognição exauriente da qual resulte mera probabilidade e então o julgamento será de improcedência. Da mesma forma, poderemos ter uma cognição sumária com o resultado de um grau de convencimento equivalente à certeza e neste caso as chances de um julgamento procedente, após uma cognição mais profunda, é muito grande. Mas é preciso que se diga que, conforme visto, a tradição de nosso processo é a de que juízo de certeza apto a conceder um julgamento de procedência só tem cabimento após uma cognição exauriente, entendida como aquela em que há um aprofundamento na investigação e a ampla participação dos contenedores. Por isso, os juízo que resultam de prova inequívoca realizados em cognição sumária não são exatamente equivalentes ao juízo que resulta das mesmas provas realizados em cognição exauriente, embora se pudesse dizer já na cognição sumária, que ao direito pleiteado realmente fazia jus o postulante.

Temos de compreender então a referência simultânea a prova inequívoca da qual só resulta, no entanto, juízo de verosimilhança em vista da espécie de cognição que é sumária. Em geral a prova inequívoca dá suporte a um juízo de certeza. Mas para que isto ocorra é necessária a realização de uma cognição exauriente, ou seja cognição de rito ordinário via de regra, e tal só ocorre após o regular trâmite processual, assegurada a ampla defesa, o contraditório e a produção de material probatório pela parte atingida pela antecipação de tutela. Deste modo, consoante a letra do dispositivo o que temos é um caso de uma cognição sumária que leva em linha de conta prova inequívoca. A diferença entre o juízo daí resultante quanto ao convencimento, e aquele que resultará ao fim do processo está unicamente relacionada ao fato que o juízo resultante ao fim do processo é o culminar de um procedimento de investigação mais aprofundada e em cujo bojo foi plenamente franqueada a participação do réu. Neste juízo de antecipação de efeitos de tutela, sumário, pode até surgir clara a procedência de um eventual juízo final, mas como está prevista uma cognição mais consistente não se pode efetuar o julgamento desde já, reservando-se este para uma fase em que haja cognição exauriente, mesmo que a conclusão a que lá se vai chegar já se saiba será a mesma. Portanto a presença de prova inequívoca gera na consciência do julgador na prática certeza, ou seja, grau de convencimento equivalente ao que teria em cognição exauriente, posto que o direito se apresenta evidente. Mas juridicamente, como está prevista uma cognição exauriente posterior, esta certeza de fato só permite antecipar os efeitos em caráter provisório.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A certeza jurídica, ou seja, aquela que aos olhos do direito é capaz de embasar um julgamento definitivo de mérito só surgirá com a cognição exauriente ainda que se saiba desde já que seu resultado será igual ao obtido na cognição sumária. Conclui-se que o que o dispositivo quer é que em sede de cognição sumária resulte um grau de convencimento equivalente na prática ao que será de ter-se em cognição exauriente haja vista a clarevidência do direito [27].

O que aqui se nota é que na verdade não estamos diante de outra coisa senão do fumus boni iuris, mas aqui não um fumus boni iuris de feição cautelar [28] que tem característica de um juízo perfunctório. Estamos sim, diante de um fumus boni iuris, enquanto juízo, mais consistente porque lá, no processo cautelar, não há necessidade de prova inequívoca e do juízo realizado não resulta certeza nem prática nem de direito. A fumaça de bom direito que resulta de uma prova inequívoca é na pratica equivalente a um juízo de certeza, logo não é uma mera fumaça, mas sim o reconhecimento da materialidade do direito, que só não é juridicamente tratada como tal porque resulta de uma cognição sumária e provisória. Só um direito que se mostre previamente às escancarras é que pode dar margem à antecipação de tutela. Há uma verossimilhança jurídica, mas um a certeza de fato, porque a prova inequívoca demonstra que o resultado do julgamento final será fatalmente o mesmo.

Mas não basta que haja uma certeza de fato que surgiu de um juízo de cognição sumária devido á evidência verificável prima facie do direito pleiteado. Uma vez que estamos presos a tradição romano-canônica, ainda neste caso não se legitima á luz do direito positivo vigente que se subverta o iter a ser percorrido para a concessão definitiva do direito. É preciso que se verifique que há a probabilidade de dano irreparável ou de difícil reparação [29], e note-se bem esta probabilidade deve se revestir da feição de "fundado receio". Logo não basta a mera invocação genérica de dano, sendo necessário que da situação narrada se possa concluir que há um grau grande de probabilidade de que este dano venha a ocorrer e que ele seja irreparável ou de difícil reparação. Alternativamente deve ocorrer hipótese de manifesto propósito protelatório do réu. A bem da verdade o propósito protelatório nada mais é do que uma forma de abuso do direito de defesa. Neste caso estaremos diante de uma situação em que o réu sustenta uma defesa absolutamente descabida, insustentável, inadmissível primu ictu oculi frente ao ordenamento jurídico.

O parágrafo primeiro do dispositivo é uma superfetação inútil, posto que a Constituição já determina, em seu artigo 93, inc. IX, que todas as decisões judiciais deverão ser fundamentadas e decisão mal fundamentada é decisão sem fundamentação. O parágrafo segundo nos traz limitação que diz respeito a reversibilidade dos efeitos. Se houver irreversibilidade dos efeitos não se poderá antecipá-los em que pese a certeza de fato de que o autor tem razão. Adverte Calmon de Passos acerca da concessão de antecipação de tutela em casos de irreversibilidade: "Admitir a antecipação do que será irreversível é transformar em definitiva uma execução que dessa natureza não se pode revestir ou se colocar o executado, dada a falta da caução, sem garantia de ressarcimento" [30] Em outro trecho, o citado autor preleciona que: "O que disciplina o art. 273 do Código de Processo Civil, pelo amor de todos os deuses (invocar um só insuficiente) não significa a permissibilidade de se requerer liminar em todo e qualquer processo e de o juiz concedê-la com generosidade ímpar, convencido de que o réu, no processo, um sujeito indesejável, que põe obstáculos à celeridade da justiça, sua efetividade, sua instrumentalização, sua eficácia decisiva etc." [31]. No mesmo diapasão Cândido Rangel Dinamarco afirma que:" É preciso receber com cuidado o alvitre de Marinoni para quem se legitimaria o sacrifício do direito menos prol da antecipação do exercício ‘de outro que pareça provável’. O direito não tolera o sacrifício de direito algum e o máximo que se pode dizer é que algum risco de lesão pode-se legitimamente admitir. O direito improvável é direito que talvez exista e, se existir, é porque na realidade inexiste aquele que era provável. O monografista fala da coexistência entre princípio da probabilidade e da proporcionalidade, de modo a permitir-se o sacrifício de bem menos valioso em prol do mais valioso. Mesmo com essa atenuante, não deve o juiz correr riscos e, muito menos expor o réu aos males da irreversibilidade, expressamente vetados pela lei vigente(art. 273, parágrafo 2º)" [32].

O parágrafo terceiro manda aplicar a antecipação de tutela as disposições dos inc. II e III do artigo 588 do CPC. Isto faz com que a antecipação fique limitada, não indo até atos que importem alienação de domínio e requerendo-se caução para o levantamento de dinheiro, de um lado e, de outro, determinando o retorno ao status quo ante uma vez que sobrevenha sentença que modifique o conteúdo da decisão antecipatória.

O parágrafo 4º deixa bem clara a natureza provisória da antecipação os efeitos da tutela que pode ser revogada a qualquer tempo. Mais uma vez a inútil referência à necessidade de fundamentação. Por fim o parágrafo 5º determina que concedida ou não a antecipação o processo prosseguirá. O que também era desnecessário dizer pois caso contrário a antecipação se transmutaria em verdadeira sentença definitiva.

Na prática, estas disposições comportam alguns temperamentos. Um dos exemplos mais claros reside na antecipação de efeitos revestidos de irreversibilidade quando esteja em jogo, verbi gratia, a vida do postulante, necessitando de tratamento médico ou medicamento. Nestes casos a confluência de valores superiores em confronto coma letra da lei tem o condão de desbordá-la, elidindo a sua aplicação [33]. É por outro lado interessante observar como a tradição da ordinarização está arraigada em nosso processo. Mesmo ante a insofismável procedência do pedido do autor, a lei não se contenta com a sua prova, requerendo o abuso de direito ou o propósito protelatório, fazendo conscientemente com que o tempo jogue a favor do réu que não tem razão.

O que há de ficar desta nossa análise, em especial, é a maior rigidez dos requisitos da antecipação de efeitos da tutela. Reconhecida que seja a possibilidade de cautelares satisfativas, ou seja, provimentos cautelares que antecipam efeitos da tutela pretendida ( que deveria sê-lo) em processo acautelado, é de se notar que não há, a priori, vedações quanto a irreversibilidade dos efeitos. Tampouco se fala em aplicação dos incisos do artigo 588. Logo, a cautelar satisfativa obtém o mesmo resultado prático da antecipação os efeitos da tutela sem os mesmo óbices.


7- As Cautelares Satisfativas

O processo é instrumento e como tal se amolda às necessidades das contingências às quais é aplicado. Há como em todos os ramos do Direito uma incessante luta entre a norma e a realidade, aquela tentando inutilmente acompanhar esta. Esta diferença se faz sentir com muito maior intensidade nos ordenamentos positivados em que a lei escrita demanda um processo de produção mais demorado. Nos sistemas desenvolvidos sob a influência do direito consuetudinário, como é o caso dos países de tradição anglo-saxã, o Direito se amolda com maior facilidade à realidade, e o fenômeno de tensão permanente entre realidade e o direito que visa abarcá-la decresce de intensidade.

Quando o direito positivo não consegue acompanhar a realidade e a diferença entre um e outro atinge um ponto crítico, o sistema trata de compor remédios anômalos a fim de não deixar estas situações não previstas inermes ao manto jurídico. Estes remédios anômalos geralmente não surgem ex nihilo mas representam, outrossim, deturpações de institutos já existentes. Como exemplo podemos citar a utilização do mandado de segurança para a obtenção de efeito suspensivo em recursos para os quis não estava previsto, principalmente no caso do agravo, e a utilização de cautelares satisfativas. Ambos os casos representavam aberrações dentro da sistemática processual pátria, mas eram tolerados por que não se poderia simplesmente ignorar que em alguns casos não contemplados no permissivo legal pertinente (art. 558 do CPC) havia risco de produção de danos de difícil reparação, quiçá irreparáveis, não fosse concedido efeito suspensivo ao agravo que a princípio não teria. Da mesma forma, em certos casos, ante a impossibilidade legal de antecipação dos efeitos da tutela de conhecimento que correspondessem aos próprios efeitos da tutela pretendida, era de se admitir a cautelar satisfativa, saída que, aberrante, era a que menos agredia a lógica dos sistema.

Assim, por muitos anos foram toleradas tanto as cautelares satisfativas [34] quanto o uso de mandado de segurança para a obtenção de efeito suspensivo. Mas o processo legislativo haveria de abarcar tais lacunas e o fez na reforma processual de 1994, criando a antecipação dos efeitos da tutela e a ampliação da possibilidade de concessão de efeito suspensivo ao agravo, ampliando inclusive para as sentenças do artigo 520 do CPC este possibilidade [35]. O objetivo da reforma neste ponto era um só, expressamente exposto aliás: acabar com os instrumentos anômalos criando disciplina específica para ambas as situações dentre tantas outras contempladas no plano de reforma.

As cautelares satisfativas, aquelas nas quais durante muito tempo o jurisdicionado buscava antecipar efeitos da tutela de conhecimento a ser buscada no processo acautelado, deveriam estar proscritas a partir do artigo 273 do CPC, mas isto não ocorreu, restando ainda quem use deste anomalia, sob os auspícios de magistrados desatentos, para obter uma verdadeira antecipação dos efeitos da tutela de conhecimento no bojo de uma cautela sem necessidade de observância da mais rígida disciplina das antecipações após a reforma.

Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Cautelares satisfativas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -243, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3412. Acesso em: 23 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!