Sumário: introdução; 1 Crimes Hediondos; 2 Características gerais do crime; 3 A (in)constitucionalidade da lei dos remédios; Considerações finais. Referências
RESUMO: A Lei nº 9.677 de 1998, conhecida como a Lei dos Remédios, alterou significativamente a redação do artigo 273, do Código Penal. O objetivo deste trabalho é tratar sobre a Lei dos Remédios e a equiparação de cosméticos e saneantes a remédios, mediante uma análise crítica da tipificação da conduta e sua inclusão no rol de crimes hediondos. A relevância do trabalho refere-se ao aumento das penas cominadas aos delitos em questão, desencadeando em discussões doutrinárias acerca da violação ou não de princípios constitucionais penais.
PALAVRAS CHAVES: Crimes hediondos. Lei dos Remédios. Princípio da Proporcionalidade.
INTRODUÇÃO
A Lei nº 9.677 de 1998, que alterou significativamente a redação do artigo 273 do Código Penal, trata como crime a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado para fins terapêuticos ou medicinais, sendo esse crime inserido no rol de crimes hediondos. No parágrafo 1º-A desse mesmo artigo, o legislador equipara medicamentos a cosméticos e saneantes. Com isso, levanta-se enorme discussão acerca de sua (in)constitucionalidade. A título de exemplo, se um indivíduo alterar um hidratante para mãos, poderá será punido pela lei dos crimes hediondos?
Com base nessas considerações, pode-se questionar: a falsificação de remédios, cosméticos e saneantes, fere o mesmo bem jurídico tutelado? Há respeito ao princípio constitucional da proporcionalidade, do princípio da intervenção mínima do Direito Penal? Trata-se de uma lei constitucional?
1 CRIMES HEDIONDOS
A Constituição Federal de 1988, por seu art. 5º, XLIII, introduziu no ordenamento jurídico nacional a figura do crime hediondo. Este termo é sinônimo de “crime alarmante, pavoroso, depravado, horrendo, arrepiante, que causa indignação moral etc., isto é, crime que objetivamente mais ofende aos bens juridicamente tutelados”. Hediondo “é o crime que, pela forma de execução ou pela gravidade objetiva do resultado, provoca intensa repulsa”. Em seguida, o legislador infraconstitucional tratou de elaborar a lei 8.072 de 25 de julho de 1990 – Lei dos Crimes Hediondos, sendo editada e aprovada (BRASIL, 1990; JESUS, 1993, p. 28).
Dentre outros fatores, a violência fortemente marcada nos grandes centros urbanos, uma sociedade insegura e alarmada com o crescente índice de criminalidade foram componentes substanciais para a aprovação da Lei dos Crimes Hediondos. No entanto, o ato foi alvo de muitas críticas e divergências doutrinárias pelo fato de ser uma medida conservadora, sendo para alguns, um retrocesso no processo histórico de humanização do Direito Penal, ao endurecer o sistema punitivo e contrariar princípios jurídicos inscritos no sistema jurídico brasileiro (SALGADO; FREITAS, 2007).
Mas tamanha formalidade dificulta o trabalho do magistrado, pois não irá exigir do juiz a análise dos elementos de composição conceitual, mas sim, a verificação de que o crime atribuído ao agente está constante ou não no rol legal. A consequência disso é a possibilidade de ocasionar grandes injustiças, pois “nem todas as condutas constantes no rol são de fato hediondas, no real sentido da palavra, ou diante das peculiaridades fáticas do caso” (FREITAS, 2010, p.42; FREITAS, 2007; SALGADO).
Talvez, para mitigar o rigor legal, poder-se-ia pensar numa cláusula salvatória em que o caráter hediondo, a critério do juiz, pudesse ser arredado. Em face da garantia da legalidade, que se destina aos acusados, não é possível admitir-se a inclusão de crimes por critério judicial. No entanto, visando alcançar exceções não tão infrequentes, como a do pai que, por exemplo, para vingar o estupro da filha, de emboscada, mata o estuprador, parece viável uma espécie de cláusula de modo a permitir que o julgador exclua a incidência da qualificação hedionda (TORON, 1996, p,1)
Com base nisso, perante o caso concreto, há a possibilidade de o juiz afastar-se a hediondez de um crime que conste na referida enumeração legal em nome da observância da não necessidade dessa etiquetagem. Ressalte-se que lhe seria atribuído apenas o poder de reduzir o rol, mas não ampliá-lo, em respeito à garantia constitucional da legalidade (TORON, 1996).
De qualquer forma, com fulcro no princípio da proporcionalidade, o constituinte reservou aos crimes de menor potencial ofensivo tratamento penal mais brando, enquanto que, aos considerados de maior repercussão social e jurídica, aplica-se tratamento penal mais severo.
2 CARACTERÍSTICAS GERAIS DO CRIME
Conforme Greco (2006, p. 158), concernente ao núcleo penal incriminador, o ato de corrupção é o mesmo que “estragar, decompor, tornar pode; adulteração é sinônimo de deturpação ou deformação; falsificação significa reproduzir, imitar; e, por fim, alterar é o mesmo que mudar, modificar ou transformar”.
Quanto à classificação do crime aqui em estudo, ainda segundo o autor acima, trata-se de um crime comum, tanto no que diz respeito ao sujeito ativo, quanto ao passivo; doloso e culposo (tendo em vista a previsão expressa constante do §2 do art. 273 do CP); comissivo (podendo, também nos termos do art. 13, §2 do CP, ser praticado via omissão imprópria, na hipótese de o agente gozar do status de garantidor); de perigo comum e concreto (embora haja divergência doutrinária nesse sentido, pois que se tem entendido, majoritariamente, tratar de um crime de perigo abstrato, presumido); de forma livre; instantâneo (no que diz respeito às condutas de falsificar, corromper, adulterar, alterar, vender, importar, distribuir, entregar) e permanente (quanto às condutas de expor à venda e ter em depósito); monossubjetivo; plurissubsistente; não transeunte (GRECO, 2006, p. 160).
Para Mirabete (2005, p. 158), o crime consuma-se quando praticado a ação típica, independentemente de qualquer outro resultado. O perigo de saúde pública é presumido por lei, não exigindo, pois, a sua comprovação. Mas há divergência. Assim, a simples falsificação do produto já é conduta típica, independentemente da comprovação de se causar lesão com esta prática.
O legislador, no parágrafo 1o – A, equipara a medicamentos, dentre outros, os cosméticos e os saneantes. Os primeiros referem-se aos produtos de uso externo, destinados à proteção ou ao embelezamento das diferentes partes do corpo, por exemplo, cremes para hidratação, talcos, loções para mãos, batons, etc. Os saneantes são aqueles produtos destinados à limpeza e desinfecção de ambientes (PRADO, 2004)
3 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA LEI DOS REMÉDIOS
Há alarme na doutrina quanto à consideração por parte do legislador de que o cosmético e saneante é como um produto medicinal ou medicamentoso que, se falsificado, configura prática de crime hediondo. A discrepância da norma se verifica quando ela peca por não se referir expressamente à condição e nocividade positiva do produto falsificado, alterado ou corrompido para a saúde pública (LEAL, 2008).
Conforme Monteiro (2008, p. 74), tanto os cosméticos, quanto os saneantes não guardam a mesma importância jurídica dos medicamentos e, ao receberem o mesmo tratamento punitivo, banaliza-se o próprio conceito de crime hediondo.
O mais grave é que um governo tido como democrático tenha lançado mão do Direito Penal para equiparar a potencialidade ofensiva à saúde pública de produtos com fins terapêuticos ou medicinais com outros que nada ou pouco têm que ver com a saúde e a vida da pessoa humana, tais como cosméticos, ou saneantes. E o pior, é que a pena cominada é a mesma: dez a quinze anos de reclusão e multa (MONTEIRO, 2008, p. 74).
Constata-se que o difícil entendimento de que a adulteração de um batom ou um desinfetante sejam comparados, do ponto de vista de cominação da pena, com a falsificação de um antibiótico (FREITAS, 2010).
Há ofensa de maneira tão distinta a saúde pública que se torna um equívoco ainda mais patente quando, se observa que tal delito é hediondo e que, claro, todas as suas consequências podem alcançar falsificar, corromper, adulterar ou alterar cosméticos e saneantes. Há desproporção entre o desvalor do injusto e gravidade das penas, resultado em clara transgressão ao principio constitucional da proporcionalidade, aos princípios da ofensividade e aos reclamos por um direito penal mínimo (PRADO, 2004).
Neste mesmo raciocínio, Greco (2006) afirma que essa equiparação feita pelo legislador não cuidam do mesmo bem jurídico que se buscou proteger (a saúde pública). Ao ser considerado crime hediondo, são cominadas penas reclusivas chocantes, o que evidencia a total carência de proporção entre a gravidade das condutas empreendidas e as consequências punitivas delas decorrente. Assim, da mesma forma, Greco entende que houve ofensa aos princípios constitucionais da ofensividade e da proporcionalidade.
Entretanto, há possibilidade de tal equiparação ser constitucional.
Nucci (2007) afirma que tanto a falsificação de remédio, quanto os cosméticos e saneantes, principalmente quando utilizados na limpeza de hospitais, por exemplo, podem causar danos de igual proporção, inexistindo afronta ao primado da proporcionalidade ou ofensividade nesse tocante.
Pode-se vislumbrar um cosmético, como um bloqueador solar, utilizado para prevenção de câncer de pele; ou mesmo um saneante utilizado para desinfecção de instrumentos cirúrgicos, que devem estar isentos de micro-organismos patogênicos, quando adulterados, podem ferir o bem jurídico tutelado pelo legislador, no caso a saúde pública. Daí, Nucci (2007) ressalva que deve-se observar a utilidade do produto falsificado, bem como quais as consequências danosas a serem provocadas pelo mesmo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A equiparação de medicamentos a cosméticos e saneantes pode não ser considerada como crime hediondo pois não ferem o bem jurídico tutelado de forma mais grave, havendo, neste sentido, uma deficiência técnica legislativa e, ao mesmo tempo, desrespeito a princípios constitucionais e do direito penal, a saber, o da proporcionalidade, ofensividade e do direito penal mínimo.
Todavia, o magistrado deve analisar as consequências provocadas pela adulteração dos cosméticos (exemplo: protetor solar) e saneantes (exemplo: desinfetante) pois, há possibilidade de ofender de forma grave a saúde pública quando estes são utilizados, por exemplo, para prevenção de doenças como câncer de pele e mantimento da salubridade do ambiente hospitalar.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p.
BRASIL. Lei N. 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Lex: Presidência da República Casa Civil: Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072.htm. Acesso em 15 de maio de 2012.
FREITAS, Giullia Gandra. Lei dos remédios: a normatividade principiológica em cortejo com a regra concernente à equiparação de cosméticos e saneantes a remédios para fins de penalização em caráter hediondo. São Luís: UNDB, 2010, dissertação (monografia). Curso de Direito, Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, São Luís, 2010.
FREITAS, Jayme Walmer de. Crimes hediondos: Uma visão global e atual a partir da lei 11.464/07. 2007. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/25009. Acesso em 15 de maio de 2012.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Vol. 4.Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
JESUS, Damásio Evangelista de. Novas Questões Criminais. São Paulo, Saraiva, 1993.
LEAL, João José. Crimes Hediondos: a lei 8.072/90 como expressão do Direito Penal da Severidade. 2. ed. 5ª tir. – Curitiba: Juruá, 2008.
Legislação Brasileira)
MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: textos, comentários e aspectos polêmicos. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Vol. 3. 3. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004).
SALGADO, Gustavo Vaz. Comentários à lei dos crimes hediondos. Disponível em: http://www.advogado.adv.br/artigos/2000/art11.htm. Acesso em:P 15 de maio de 2012.
TORON, Alberto Zacharias. Crimes hediondos: lei 8072. Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/numero7/artigo5.htm. Acesso em: 10 de maio de 2012.