Ao se observar a Constituição Federal de 1988 é possível notar um extenso rol de direitos e garantias individuais que, como é de conhecimento de todos, não estão apenas estampados no art. 5º, mas difundido em todo o texto constitucional.
Para que tais direitos sejam efetivados, torna-se imprescindível que o Estado adote medidas para fazer cumprir o estabelecido pelo legislador constituinte, por meio das políticas públicas, que nada mais é do que: o conjunto de atividades realizadas pelo Estado com o intuito de garantir aos administrados a efetividade de, pelo menos, uma parcela mínima de direitos assegurados pela Constituição Federal.
Cabe ao Judiciário, nos termos do art. 5º, XXXV, da CF/88, conhecer, efetivar e resguardar o direito àquele que busca uma tutela jurisdicional.
Inúmeros são os casos em que os demandantes têm seus direitos fundamentais constitucionais violados, devido à ausência de políticas públicas. Ausências estas, muitas vezes, em virtude da inércia do executivo e legislativo.
Diante dessa situação, o judiciário, ao fazer aquilo que lhe é atribuído constitucionalmente, ou seja, de dizer o direito, acaba, de uma forma ou outra, interferindo nas competências dos demais poderes. Ato este que, a princípio, vai de encontro ao princípio da separação dos poderes estampados no art. 2º da Constituição Federal que estabelece que: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".
Ocorre que a alegação de que o judiciário acaba por interferir nos demais poderes não merece prosperar!
Aristóteles, Locke e Montesquieu revestidos com o manto da ideologia liberal, defendiam o fim do poder absoluto por meio da separação dos poderes de legislar, administrar e julgar.
O Barão Charles de Montesquieu se preocupou, pura e simplesmente, em limitar o poder absolutista, ou seja, não havia a preocupação, no momento da elaboração de sua teoria de separação dos poderes, em limitar os poderes a ponto de impedir, por exemplo, com que o judiciário não interferisse em atos de responsabilidade do Executico/Legislativo, mas sim em pôr fim à opressão monárquica, através do liberalismo.
Além da separação dos poderes, o liberalismo defendia certa abstenção estatal, ou seja, queriam que o estado não mais interferisse em assuntos privados dos administrados/súditos.
Podemos dizer que houve uma transição do Estado de Direito para um Estado Social (direito de 2ª dimensão).
Percebe-se que a separação dos poderes teve sua origem no liberalismo, onde a preocupação maior de seus idealizadores era com a limitação do poder monárquico. O judiciário não era bem visto pelos liberalistas, pois o rei ainda tinha certa influência sobre o mesmo.
Diante da nova sistemática de valores, ou seja, agora como um Estado Social e não mais aquele exclusivamente de Direito, o judiciário ficou dotado de certo destaque. Se solidificando de uma vez por todas com o Neoconsitucionalismo e suas características, quais sejam: eficácia normativa da Constituição, fortalecimento do Judiciário, eficácia normativa da jurisprudência e judicialização das políticas públicas/ativismo judicial.
Nesse sentido, percebe-se a importância em se estabelecer um novo viés hermenêutico à teoria da separação dos poderes estampados no art. 2º da CF/88.
Pois bem, em meados da década de 70, mais precisamente em 18 de julho de 1972, surge na doutrina e na jurisprudência Alemã (Bundesverfassungsgericht), a Teoria da Reserva do Possível (Der Vorbehalt des Möglichen).
A referida teoria, nos termos da jurisprudência alemã, estabelece que o Estado só estará vinculado a realizar as políticas públicas, inclusive as previstas constitucionalmente, mediante uma prévia análise de razoabilidade do ato.
Nesse sentido, percebe-se que a Corte Alemã levou em consideração, no que tange à conceituação da reserva do possível, o Princípio da Razoabilidade e não a questão financeira-orçamentária do Estado.
Logo, a reserva do possível jamais poderá se referir única e exclusivamente à inexistência de recursos financeiros para tentar justificar a impossibilidade da efetivação das políticas públicas, tão importantes para se efetivar os direitos e garantias fundamentais.
Nessa perspectiva, é possível notar que o verdadeiro sentido da teoria da reserva do possível se dá em virtude de um juízo de razoabilidade e não devido a ausência de recursos financeiros, conforme difundido no Brasil e conhecido em nossa legislação pátria como reserva do "financeiramente possível".
A menção de inexistência de recursos financeiros capazes de fazer cumprir o disposto no texto constitucional é a principal argumentação da Administração Pública, evidenciando uma enorme distorção da teoria alemã.
Durante muito tempo a reserva do possível se tornou uma forma cômoda e convincente de fazer com que a Administração Pública se eximisse de suas responsabilidades.
Ora, o Estado possui um grande poder arrecadatório! A arrecadação tributária bate recordes todos os anos e a simples banalização do instituto, criado pela jurisprudência alemã, que, originalmente, repita-se, tinha como premissa básica a razoabilidade ou não em adotar determinada política pública, e não a questão financeira-orçamentária do Estado, como amplamente adotado no Brasil, não poderá ser utilizado como justificativa para a não efetivação dos direitos e garantias fundamentais.
Logo, arguir a ausência de recursos financeiros (reserva do possível fática) como pressuposto para a não adoção de políticas públicas que garantam os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, seria uma tremenda irresponsabilidade na gestão dos recursos financeiros auferidos pelo Estado. O que deveria levar os integrantes dos poderes Executivo e Legislativo, principalmente aquele, a responderem por crime de responsabilidade.
É inadmissível que o Estado não mantenha em seu "caixa" valores suficientes para garantir eficácia mínima aos dos direitos e garantias fundamentais.
Mas e o "mínimo existencial"? O que viria a ser esse termo?
O mínimo existencial está vinculado às necessidades básicas para que o ser humano viva dignamente e possui como cerne o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88).
A condição mínima de existência exige do Estado um caráter assistencialista, onde os direitos de 2ª dimensão (saúde, alimentação, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados e etc.) possam ser assegurados, justificando a perspectiva do Estado Social de Direito.
O fato é que o mínimo existencial não está previsto apenas no art. 5º da CF/88, mas sim em todo o texto constitucional.
Cumpre ressaltar que o mínimo existencial constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, vez que possui ampla equivalência com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88).
Assim sendo a Administração Pública não poderá, única e exclusivamente, alegar a ausência de recursos financeiros para o não cumprimento das políticas públicas previstas constitucionalmente, mas sim garantir que o mínimo existencial seja assegurado e as políticas públicas sejam analisadas no campo da razoabilidade e ponderação!
Quem não se lembra do caso da menina Sophia que, aos 5 (cinco) meses de idade, sofre da síndrome denominada de "Síndrome de Below". Pacientes diagnosticados com essa síndrome precisa, urgentemente, segundo os médicos, realizar um transplante multiviceral.
Acontece que o referido transplante é realizado com maior segurança em um hospital de Miami-EUA, em virtude da existência de aparelhos mais tecnólogicos do que os existentes aqui no Brasil. O que obrigou os pais da criança a travarem uma longa "batalha" nos tribunais no intuito de obrigar o Estado a custear todo o procedimento.
Ao final da lide, o judiciário obrigou a União, através do SUS (Sistema Único de Saúde), a custear todas as despesas com o transplante, incluindo o transporte em uma espécie de UTI aérea, o que custou aos cofres públicos mais de R$ 2 milhões de reais.
Portanto, a teoria da separação dos poderes, que a todo o momento se preocupou em libertar o indivíduo das garras do monarca, não poderá servir como argumento no intuito de impedir a atuação jurisdicional na implementação de políticas públicas para garantir os direitos fundamentais, devido à evolução do Estado Liberal para o Estado Social, onde tais garantias acabaram ganhando uma maior conotação.
A propósito, o mínimo da reserva do possível deverá sempre ser garantido vez que é um fundamento disposto na Constituição Federal de 1988 e caberá ao judiciário, uma vez provocado, fazer cumprir as normas ali expostas. Lembrando que, uma provável não atuação estatal na implementação das políticas públicas com enfoque no Princípio da Reserva do Possível não poderá se justificar apenas na insuficiência de recursos financeiros, mas sim através de uma análise razoável do que se postula na via administrativa ou até mesmo na judicial, sob pena de banalizar o instituto, interpretando-o de forma contrária à doutrina alemã, que a criou.
O raciocínio é simples, o Poder Judiciário apenas fará cumprir aquilo que o Executivo e o Legislativo, sempre pautados pela legalidade, realizam ou deveriam realizar, principalmente no campo das políticas públicas. Assim, retirar essa característica jurisdicional é aniquilar, de uma vez por todas, a democracia conquistada, a duras penas, pela sociedade.
A propósito, negar as características do constitucionalismo e, também, do neoconstitucionalismo significa retroceder com o modelo jurídico-constitucional, que durante todo o seu desenvolvimento histórico se mostrou amplamente progressista.