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Delação premiada – A nova rainha das provas e o processo medieval

Agenda 07/04/2016 às 16:53

Esse artigo trata das prisões ordenadas no âmbito da Operação "Lava Jato", e aborda os aspectos jurídicos (nulidade das confissões, delações e outras provas) delas decorrentes.

As considerações abaixo foram traçadas ao ensejo do clamor em torno da veiculação, em todos os seguimentos da mídia especializada, de que o MPF defende a manutenção das prisões preventivas dos investigados na Operação "LAVA JATO”, como forma de forçar réus a confessar e delatar.

A questão sob exame, como se percebe, é de elevada importância para a Democracia.

Admitir que uma pessoa seja presa para confessar e delatar, ou pior, que permaneça presa até que confesse e delate, é algo primitivo, afronta ao conceito mais básico do Direito de Defesa, da Democracia, do Devido Processo Legal, à Carta Magna (artigo 5o, LXIII).

Mais que isso, prender alguém até que confesse ou delate, representa, de fato, aperfeiçoamento do que existia na época da ditadura, quando existia a prisão para averiguação.

Colocar tal fundamento em um parecer, como fez o órgão do MPF que atua junto ao TRF da 4a Região, no contraste do que foi por aquele afirmado, não é dar interpretação à lei, mas subvertê-la, violá-la, tendo-se chegado ao absurdo de afirmar textualmente que "passarinho para cantar tem que estar preso".

Ocorre que este não é fundamento para prender ou manter presa uma pessoa, essa afirmação, por si só, macula qualquer confissão, como também a delação já prestada, maculando igualmente a prisão determinada e torna a sua manutenção não apenas um arbítrio no âmbito do processo, como um arbítrio com graves reflexos nos tratados internacionais firmados pelo Brasil, que asseguram que não haverá prisão arbitrária, no que se convolam as prisões em apreço, na medida em que a não disfarçada razão das mesmas é forçar uma confissão e, ato contínuo, uma delação.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 9o, n o 1), a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (artigo 6o), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica (artigo 7o, no 1), a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 5o, n o 1), bem como a Carta das Nações Unidas, e ainda os princípios basilares enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem” (artigo 3o), prestigiam a liberdade ao tempo que condenam a prisão arbitrária.

A legislação de vários países desconsidera a confissão como meio de prova, não sendo admitida no Brasil como único meio de prova, posição já pacificada no âmbito dos Tribunais Superiores, tal entendimento aplica-se, entendemos, à delação daí decorrente.

A melhor doutrina acerca da matéria igualmente desautoriza o grave cenário que se desenha nesse caso, posto que ter na confissão um meio de prova é algo ultrapassado, como se extrai das palavras do notável mestre e magistrado paulista Guilherme de Souza Nucci, vejamos:

Na sociedade moderna, cujo Poder Judiciário em sendo cada vez mais aparelhado para servir os jurisdicionados, não há porquê buscar a admissão da culpa pelo réu visando à satisfação do julgador, tendo em vista que os métodos de apuração devem aprimorar-se e nunca retrocederem. Falar em confissão como rainha das provas é voltar no tempo, afundando-se na ilusão - talvez como um propósito comodista - de que o ser humano arrepende-se com facilidade e quer expiar no cárcere, pois esta é a minoria absoluta. (O valor da Confissão como meio de prova no processo penal, Revista dos Tribunais, 1a edição, 1997, p. 197).

Ora, se a confissão é vista como meio de prova ultrapassado, forçoso concluir que a prisão, como meio de forçar a confissão e a delação, a serem usadas como prova, representa a vanguarda do atraso.

Talvez só na ditadura se ousou tanto, o que se afirma a partir da certeza de que, de tão grave e teratológica, a situação foge até mesmo dos limites da capitulação do crime de abuso de autoridade (Lei Federal 4.898/65, artigo 3o), que em sua concepção, mesmo no auge dos Anos de Chumbo, não se atreveu a imaginar que, sobretudo na vigência do Estado Democrático, haveria prisão para forçar confissão e, simultaneamente, delação.

A manutenção de uma pessoa presa até que confesse e delate importa, ainda, grave ofensa ao direito ao silêncio que, segundo a Carta Magna (artigo 5o, LXIII) não pode, por si só impor ônus de ordem processual, tampouco abalo à presumida inocência do réu (CPP, artigo 186, caput e parágrafo único).

Nessa toada, se o direito constitucional de permanecer em silêncio não pode sofrer constrangimento, muito mais grave que se imponha que o réu abra mão de tal relevante direito, não apenas para falar, mas para confessar e delatar, sob pena de, em não o fazendo, permanecer preso até que o faça, circunstância que possui contornos de coação e não de confissão ou delação, de forma a subtrair-lhe seu mais precioso conteúdo, contaminando a estas e a todos os frutos daí decorrentes, mesmo os correlatos, posto que a partir daquela obtidos.

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É essa a inteligência do artigo 157 do Código de Processo Penal,  segundo o qual “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, sendo possível que, a exemplo de entendimento já adotado em processos anteriores, a exemplo da Operação Satiagraha, se conclua que as confissões e delações, provas obtidas por meio de verdadeira coação, consistente nas ordens de prisão, e manutenção destas, com o confessado propósito de estimulo de uma confissão ou delação pelos réus, sejam declaradas inválidas.

Na ocasião, a decisão emanada do Colendo Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do HC 149.250 SP, com os nossos destaques, restou assim ementada:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS OPERAÇÃO SATIAGRAHA. PARTICIPAÇÃO IRREGULAR, INDUVIDOSAMENTE COMPROVADA, DE DEZENAS DE FUNCIONÁRIOS DA AGÊNCIA BRASILEIRA DE INFORMAÇÃO (ABIN) E DE EX-SERVIDOR DO SNI, EM INVESTIGAÇÃO CONDUZIDA PELA POLÍCIA FEDERAL. MANIFESTO ABUSO DE PODER. IMPOSSIBILIDADE DE CONSIDERAR-SE A ATUAÇÃO EFETIVADA COMO HIPÓTESE EXCEPCIONALÍSSIMA, CAPAZ DE PERMITIR COMPARTILHAMENTO DE DADOS ENTRE ÓRGÃOS INTEGRANTES DO SISTEMA BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE PRECEITO LEGAL AUTORIZANDO-A. PATENTE A OCORRÊNCIA DE INTROMISSÃO ESTATAL, ABUSIVA E ILEGAL NA ESFERA DA VIDA PRIVADA, NO CASO CONCRETO. VIOLAÇÕES DA HONRA, DA IMAGEM E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. INDEVIDA OBTENÇÃO DE PROVA ILÍCITA, PORQUANTO COLHIDA EM DESCONFORMIDADE COM PRECEITO LEGAL. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE. AS NULIDADES VERIFICADAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL, E DEMONSTRADAS À EXAUSTÃO, CONTAMINAM FUTURA AÇÃO PENAL. INFRINGÊNCIA A DIVERSOS DISPOSITIVOS DE LEI. CONTRARIEDADE AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, DA IMPARCIALIDADE E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INQUESTIONAVELMENTE CARACTERIZADA. A AUTORIDADE DO JUIZ ESTÁ DIRETAMENTE LIGADA À SUA INDEPENDÊNCIA AO JULGAR E À IMPARCIALIDADE. UMA DECISÃO JUDICIAL NÃO PODE SER DITADA POR CRITÉRIOS SUBJETIVOS, NORTEADA PELO ABUSO DE PODER OU DISTANCIADA DOS PARÂMETROS LEGAIS. ESSAS EXIGÊNCIAS DECORREM DOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS E DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS INSCRITOS NA CONSTITUIÇÃO. NULIDADE DOS PROCEDIMENTOS QUE SE IMPÕE, ANULANDO-SE, DESDE O INÍCIO, A AÇÃO PENAL.

1.Uma análise detida dos 11 (onze) volumes que compõem o HC demonstra que existe uma grande quantidade de provas aptas a confirmar, cabalmente, a participação indevida, flagrantemente ilegal e abusiva, da ABIN e do investigador particular contratado pelo Delegado responsável pela chefia da Operação Satiagraha.

2. Não há se falar em compartilhamento de dados entre a ABIN e a Polícia Federal, haja vista que a hipótese dos autos não se enquadra nas exceções previstas na Lei no 9.883/99.

3. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, no qual, como nos ensina a Profa. Ada Pellegrini Grinover, in “Nulidades no Processo Penal”, "o direito à prova está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da ampla defesa, de sorte que o seu exercício não pode ultrapassar os limites da lei e, sobretudo, da Constituição."

4. No caso em exame, é inquestionável o prejuízo acarretado pelas investigações realizadas em desconformidade com as normas legais, e não convalescem, sob qualquer ângulo que seja analisada a questão, porquanto é manifesta a nulidade das diligências perpetradas pelos agentes da ABIN e um ex-agente do SNI, ao arrepio da lei.

5. Insta assinalar, por oportuno, que o juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. Ele não deve, jamais, perder de vista a importância da democracia e do Estado Democrático de Direito.

6. Portanto, inexistem dúvidas de que tais provas estão irremediavelmente maculadas, devendo ser consideradas ilícitas e inadmissíveis, circunstâncias que as tornam destituídas de qualquer eficácia jurídica, consoante entendimento já cristalizado pela doutrina pacífica e lastreado na torrencial jurisprudência dos nossos tribunais.

7. Pelo exposto, concedo a ordem para anular, todas as provas produzidas, em especial a dos procedimentos no 2007.61.81.010208-7 (monitoramento telefônico), no 2007.61.81.011419-3 (monitoramento telefônico), e no 2008.61.81.008291-3 (ação controlada), e dos demais correlatos, anulando também, desde o início, a ação penal, na mesma esteira do bem elaborado parecer exarado pela douta Procuradoria da República.

Diante da similitude do modus operandi adotado em ambos os processos, igualmente pautados na ilicitude da forma de colheita das provas, indaga-se acerca da efetividade das medidas em curso, na real possibilidade das provas – confissões e delações – obtidas serem declaradas inválidas no futuro, tão somente pela equivocada estratégia de condução do processo pelo órgão ministerial, no que contou, pelo menos, com a leniência do órgão jurisdicional.

Daí emerge a reflexão proposta no titulo desse texto, trata-se de um processo judicial ou de um processo medieval?

Ao desfecho temos – e tememos – que, configurado, validado e perpetuado tal arbítrio, em que pese o precedente citado, se pretenda conduzir ao trono uma nova rainha das provas, a delação, que embora conte com toda uma corte composta dos que aplaudem as arbitrariedades, possui a mesma linhagem maldita de outra rainha anteriormente deposta, a confissão, sendo que aquela possui, pela sua sofisticação e amplitude, potencial nocivo de significância ainda maior, mas que, a exemplo desta, se analisada sob a luz de um dia claro, como só os dias de uma Democracia podem ser, por observada por olhos isentos, como só os de um julgador equidistante podem ser, e sob a égide de um Judiciário integrante de um Estado livre do arbítrio e da pressão do clamor popular, como desejamos, também se constatará que a nova rainha é moribunda e, por baixo de seu manto, puído e esfarrapado, está nua.

Sobre o autor
Bruno Dall'Orto Marques

Inscrito sob o no 8.288 na Seccional do Espírito Santo da Ordem dos Advogados do Brasil Sócio em Varella, Dall’Orto & Malek Advogados Associados, com atuação nas áreas de Direito Público, Direito Penal e Direito Coletivo; Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES; Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Bruno Dall'Orto. Delação premiada – A nova rainha das provas e o processo medieval. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4663, 7 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34464. Acesso em: 23 dez. 2024.

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