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Coisa julgada nos juizados previdenciários.

Ação rescisória: cabimento ou desnecessidade?

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Agenda 02/12/2014 às 11:25

3. Dos titulares da garantia da intangibilidade da coisa julgada e dos instrumentos para desconstituição de sentença ou acórdão com trânsito em julgado

Todos os argumentos anteriormente expostos se reforçam – ou talvez se tornem supérfluos – por um dado tão óbvio quanto habitualmente esquecido: como tudo o mais que consta do art. 5º da Constituição da República, a imutabilidade da coisa julgada é garantia do cidadão perante o Estado, não do Estado frente ao cidadão. Os entes estatais não são titulares das garantias do art. 5º nem de qualquer das prerrogativas que delas emanam.

Ausente, até aqui, da jurisprudência e da doutrina, tal perspectiva é, no que tange a outras garantias fundamentais, afirmada, de longa data, pelo Supremo Tribunal Federal. No Recurso Extraordinário 184.099, por exemplo, ficou assente que “os princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito são erigidos, pela Constituição, em garantia do indivíduo perante o Estado, e não em sentido inverso.[7]” Especificamente em matéria previdenciária, essa posição é assumida pela Procuradoria Geral da República no Recurso Extraordinário 661.256, interposto pelo INSS contra decisão que reconheceu o direito à desaposentadoria[8]. Merece transcrição o parecer do subprocurador geral da República que oficia naqueles autos, dr. Odim Brandão Ferreira:

o poder público não é, em princípio, titular de direitos fundamentais. (...). Os direitos fundamentais são normas definidas pela outorga de garantias contra o Estado, nos clássicos direitos negativos. O advento dos modernos direitos fundamentais a prestações, à proteção e às garantias institucionais não alterou os termos do problema. Também neles, o particular é o titular do direito, enquanto o Estado, o sujeito obrigado, para empregar a linguagem da teoria geral do direito. (...).

Sobre não ser, em geral, titular de direito fundamental, o Estado não o pode invocar para restringir direito do particular. Tal inversão teleológica do direito constitucional da espécie citada é inadmissível. Assim, dele não se pode extrair a consequência jurídica consistente em se impedir a fruição de determinado direito pela parte privada.

O autor das linhas supra transcritas cita a Súmula 654 do STF como expressão de guarida jurisprudencial à tese que defende em seu parecer. Tal lembrança é particularmente valiosa para os fins do presente artigo, na medida em que o dispositivo constitucional a que se reporta aquele verbete é o mesmo que veicula a intangibilidade da coisa julgada enquanto garantia do cidadão: “A garantia da irretroatividade da lei, prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado”- diz a súmula em comento.

Não há, então, como nem porque deixar de aplicar esse raciocínio à coisa julgada, até mesmo pela estreita relação que, ao menos em algumas circunstâncias, existe entre os três institutos. Reconhecer ao Estado a prerrogativa de sua imutabilidade, interditando a possibilidade de que o cidadão tenha seu pleito apreciado simplesmente por já ter ajuizado demanda anterior com igual objeto, como frequentemente se faz nas instâncias ordinárias da Justiça Federal expressa o fenômeno da tensão entre normas de forma e de fundo[9], identificado por Diana Cañal, ou mesmo aquela “propensão constante das instituições do Estado para refutar ou recusar, por uma espécie de duplo jogo e de dupla consciência coletivamente assumidos, as medidas ou ações realmente conformes à vocação oficial”[10] que Pierre Bourdieu chama de “má fé institucional”[11].

O ministro aposentado Carlos Britto, ao votar no Recurso Extraordinário 415.454[12], bem expôs a questão, ainda que ali não estivesse em jogo o que ora se discute, ao salientar que

a nossa Constituição não proíbe a retroação em si da lei (inciso XXXVI do art. 5º). O que ela proíbe é a retroação lesiva ou prejudicial do direito adquirido, do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada enquanto situações jurídicas intrinsecamente proveitosas para alguém em particular. O que é bem diferente.

O mesmo ministro Britto, em sua Teoria da Constituição[13], discorre sobre a identidade entre os três institutos mencionados no art. 5º, XXXVI e o escopo de sua imutabilidade:

Cada vez mais nos convencemos de que os institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada têm a unificá-los o fato de: a) procederem, originariamente, de uma lei em sentido formal; b) constituírem relações jurídicas do tipo concreto e de conteúdo proveitoso para alguém em particular. Por isso que a Carta Magna fala que “a lei não prejudicará”... e é claro que essa vedação de prejuízo significa tornar incólume algo intrinsecamente valioso (pois que, se valioso não fosse, deixaria de se expor a prejuízo). Já no tocante àquilo que os diferencia, pensamos que tudo se hospeda é na fonte imediata de geração de cada um deles. Por hipótese, se um determinado funcionário alcança o tempo mínimo de 35 anos de contribuição previdenciária, ele ganha o direito à aposentadoria com proventos integrais, e esse direito, por fluir direta e exclusivamente de uma norma geral, se categoriza como adquirido. Contudo, se o funcionário formaliza o seu pedido de aposentação e a Administração Pública expede o respectivo ato, com sequenciada aprovação pelo Tribunal de Contas, o direito subjetivo, que era do tipo adquirido, passa a se chamar ato jurídico perfeito. E se alguém impugna em juízo a validade de tal aposentadoria, vindo o Judiciário a definitivamente confirmar, não a impugnação mas o ato jurídico da aposentação, o direito subjetivo, que já teve a sua fase de direito adquirido e o seu estádio de ato jurídico perfeito, agora muda de nome outra vez e passa a se chamar coisa julgada.

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À luz dessas premissas é que deve-se avaliar se e como é cabível a reversão da coisa julgada nos juizados especiais federais previdenciários em favor do(a) segurado(a) ou dependente.

Quanto ao primeiro problema, não pode haver dúvida: a imutabilidade da coisa julgada, como a do direito adquirido ou a do ato jurídico perfeito, não é oponível pelo Estado a pretensões deduzidas por cidadãos que buscam aceder a prestações previdenciárias. O sentido da garantia de sua incolumidade é claramente protetivo dos indivíduos, não do interesse estatal. A reversão de decisão judicial, portanto, sempre será possível, em favor do cidadão, nos juizados e varas revestidos de competência para o julgamento de tal matéria.

No que tange aos meios para procedê-la, é preciso, de início, ter em mente que a ação rescisória é apenas um deles. Mesmo no sistema processual do CPC, há ao menos uma situação em que se pode reverter decisão judicial transitada em julgado sem necessidade dela: a do art. 113 prg. 2º, que declara a nulidade dos atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente. O STJ já afirmou, aliás, que “a Lei 9.099/95 não obsta a utilização da ação declaratória de inexistência de ato jurisdicional como meio de se reconhecer a ausência de pressupostos de existência da relação processual”[14]. Não haveria, então, ao menos em princípio – e abstraída aqui a questão, anteriormente mencionada, da inconstitucionalidade do art. 59 da Lei 9.099 em seu campo original de incidência, i.e., os juizados especiais cíveis – , problema algum na vedação do manejo da ação rescisória nos juizados previdenciários, desde que colocado à disposição da parte outro(s) instrumento(s) tendente(s) ao mesmo fim.

Em verdade, a ação rescisória, por suas particularidades de instrumento processual apto a desconstituir coisa julgada entre detentores das garantias do art. 5º, não se coaduna mesmo com os princípios básicos do sistema de juizados especiais. Trata-se de modalidade processual complexa, sujeita a várias restrições: depósito de percentual do valor da causa pelo autor a título de caução (CPC, art. 488, II) sob pena de indeferimento da petição inicial (art. 490. II); prazo estendido para contestação (art. 491); prazo decadencial de dois anos para propositura (art. 495), além do rol restrito de hipóteses de cabimento.

Num subsistema que tem como princípios basilares a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade (Lei 9.099, art. 2º); que admite até mesmo a postulação sem advogado (Lei 10.259, art. 10); e no qual, invariavelmente, uma das partes é ente estatal que não tem em seu favor a garantia da intangibilidade da decisão anterior transitada em julgado, a solução que se afigura mais adequada é admitir a propositura de outra ação, independentemente de sentença ou acórdão anterior com trânsito em julgado[15]. Ou seja: não se trata de sustentar o cabimento da ação rescisória, mas sua desnecessidade, com fulcro nos princípios do subsistema de juizados especiais e no próprio art. 5º, XXXVI da Constituição. Diferentemente do que ocorre numa relação em que a garantia em comento opera em favor das duas partes, não é necessário, aqui, aferir a existência de vício grave na decisão anterior: se favorável ao ente estatal, ela será mutável por esse simples fato.

Duas questões incidentais

Decorrem daí – para arrematar – duas questões um pouco mais espinhosas, que transbordam o escopo deste trabalho e aqui se mencionam de passagem, como contributo a quem queira aprofundá-las.

Uma é se o INSS poderia ajuizar ações rescisórias de decisões proferidas em causas sujeitas ao rito dos juizados, caso verificada alguma das hipóteses do art. 485 do CPC (exceto, naturalmente, a do inciso IV, por tudo o que já se expôs). De um lado, cada uma dessas hipóteses refere-se a uma circunstância suficientemente grave para que não se possa ou não se deva simplesmente afastá-las. Por outro, o Estado pode negar a si próprio a desconstituição da coisa julgada viciada, e até faz algum sentido que negue em causas de pequeno valor (não é isso o que, de outra forma, faz quando fixa piso para execuções fiscais, por exemplo?). Mesmo que se tenham em mente hipóteses como fraude ou dolo, vale lembrar que o Judiciário tem considerado insignificantes, com base tão só no valor e sem levar em conta o artifício usado, quaisquer condutas que acarretem lesão de até R$ 20 mil à ordem tributária. Ao menos enquanto vigorar essa postura, não parece haver razão para que se adote entendimento diverso quanto a, v.g., benefícios previdenciários recebidos indevidamente.

Outra é se, nas causas previdenciárias não sujeitas aos juizados especiais – e sujeitas, portanto, a outros princípios informadores – , basta à parte o mero ajuizamento de nova ação para ter seu pleito novamente discutido em juízo[16]. A resposta parece ser afirmativa, sobretudo na esteira da reflexão desenvolvida por José Antonio Savaris acerca da coisa julgada secundum eventum probatonis[17]. É necessário advertir, contudo, que essa tese, tal como até aqui formulada, não dá conta, sozinha, do problema, uma vez que não abrange os processos que independam de prova por versar matéria puramente de direito nem aqueles em que não se trata de apresentar novas provas, mas de rever a valoração probatória inadequadamente procedida pelo(s) órgão(s) judicante(s). Para essas hipóteses (sobretudo a segunda), talvez seja de bom alvitre a criação legislativa de algum instrumento processual de uso menos restrito que a ação rescisória, destinado, especificamente, à rediscussão de matérias decididas em ação anterior transitada em julgado. Enquanto isso não ocorrer, parece, porém, será cabível a rediscussão pela simples propositura de nova lide, como corolário do entendimento que embasa a Súmula 654 do STF.


Bibliografia

- BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Porto Alegre: Zouk, 2007.

- BRITTO, Carlos A. Teoria da Constituição. São Paulo: Forense, 2006

- CAÑAL, Diana R. Decisiones Judiciales: la relación entre normas de fondo y de forma. Buenos Aires: Errepar, 2011.

- SAVARIS, José A. Coisa julgada previdenciária como concretização do direito constitucional a um processo justo. Revista brasileira de direito previdenciário nº 01, Ano 01, 2011, pp. 65-86.


Notas

[1] Competência absoluta e competência exclusiva não são sinônimos. Tenhamos em mente, por exemplo, uma causa entre particulares, elencada entre aquelas que podem tramitar nos juizados especiais cíveis. A competência da justiça estadual para julgá-la, em detrimento da federal, é absoluta. Mas a competência de seus órgãos (juizados especiais cíveis e varas cíveis estaduais) para conhecer dessa mesma ação não é exclusiva, e sim concorrente. Esse é um debate que ainda falta travar com relação aos juizados federais.

[2] Lei 9.099, art. 8º.

[3] Não se ignora que os benefícios previdenciários vêm sendo tratados pelos tribunais federais (inclusive o Superior Tribunal de Justiça) como direitos patrimoniais disponíveis. Sem aprofundar uma questão estranha ao tema deste artigo, cabe salientar que, ainda que assim seja, o direito, v.g., à aposentadoria deve ser entendido como algo distinto do direito àquela aposentadoria determinada, identificada por seu número de registro no INSS. É dado ao trabalhador renunciar à prestação que titulariza, mas não ao direito às prestações cujos requisitos preenche. De mais a mais, a questão da troca de um benefício por outro se resolve à luz da doutrina do melhor benefício, que independe da natureza dos direitos em questão.

[4] “Não cabe Recurso Especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos juizados especiais” (Súmula 203 do STJ).

[5] Teor do referido enunciado: “Não cabe ação rescisória no Juizado Especial Federal. O artigo 59 da Lei n 9.099/95 está em consonância com os princípios do sistema processual dos Juizados Especiais, aplicando-se também aos Juizados Especiais Federais.”

[6] Incluído pela Medida Provisória 1.798-3/99.

[7] 1ª Turma, relator Néri da Silveira, DJ 18.04.97.

[8] No momento em que este artigo é escrito, o processo em questão encontra-se em fase de julgamento pelo STF, com pedido de vista da ministra Rosa Weber após dois votos contrários e dois favoráveis à pretensão do INSS.

[9] CAÑAL, Diana R. Decisiones Judiciales: la relación entre normas de fondo y de forma. Buenos Aires: Errepar, 2011.

[10] BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Porto Alegre: Zouk, 2007, p. 245.

[11] Idem.

[12] DJ de 28.10.2007.

[13] Forense, 2006, pp. 9-10.

[14] MC 15.465, rel. Nancy Andrighi,

[15] Para coibir eventuais abusos na reiteração excessiva de ações com idênticas partes e objeto, existem as hipóteses de litigância de má fé do CPC.

[16] Na já aludida hipótese de nulidade dos atos decisórios por incompetência absoluta, parece claro que sim.

[17] SAVARIS, José A. Coisa julgada previdenciária como concretização do direito constitucional a um processo justo. Revista brasileira de direito previdenciário nº 01, Ano 01, 2011, pp. 65-86.

Sobre o autor
Henrique Júdice Magalhães

Advogado (OAB/RS 72.676), ex-pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e ex-consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Cursa atualmente o doutorado em Direito na Universidad de Buenos Aires.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Henrique Júdice. Coisa julgada nos juizados previdenciários.: Ação rescisória: cabimento ou desnecessidade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4171, 2 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34497. Acesso em: 22 dez. 2024.

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