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O julgamento da Reclamação 4374/PE e o temporário esvaziamento normativo do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso

Agenda 03/12/2014 às 08:48

Uma vez que o critério de miserabilidade previsto na LOAS encontra-se defasado e, consequentemente, se revela inconstitucional, podemos afirmar que não existe qualquer parâmetro objetivo a ser encontrado/calculado.

Conforme amplamente divulgado no meio jurídico, o plenário do Supremo Tribunal Federal – STF, em decisão proferida na RCL 4374/PE, de 18 de abril de 2013, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do §3º do art. 20 da Lei 8.742/93 – LOAS.

O mencionado dispositivo legal, ora declarado inconstitucional, previa como critério para a concessão do benefício a idosos ou deficientes físicos a renda familiar mensal per capita inferior a um ¼ (um quarto) do salário mínimo, in verbis:

Do Benefício de Prestação Continuada

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)

(omissis)

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)

O STF entendeu que o critério consagrado pelo legislador restou superado ao longo do transcurso do tempo, estando, consequentemente, defasado para definir a situação de miserabilidade exigida pela LOAS.

A decisão foi assim ementada:

Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo fosse concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovassem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. 2. Art. 20, § 3º da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que ?considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo?. O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Reclamação como instrumento de (re) interpretação da decisão proferida em controle de constitucionalidade abstrato. Preliminarmente, arguido o prejuízo da reclamação, em virtude do prévio julgamento dos recursos extraordinários 580.963 e 567.985, o Tribunal, por maioria de votos, conheceu da reclamação. O STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão ou do ato que é impugnado na reclamação. Isso decorre da própria competência atribuída ao STF para exercer o denominado controle difuso da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação ? no ?balançar de olhos? entre objeto e parâmetro da reclamação ? que surgirá com maior nitidez a oportunidade para evolução interpretativa no controle de constitucionalidade. Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição. 4. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso a Alimentacao; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). 5. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993. 6. Reclamação constitucional julgada improcedente

(STF - Rcl: 4374 PE , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 18/04/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-173 DIVULG 03-09-2013 PUBLIC 04-09-2013)[1]

Como se percebe da simples leitura da ementa supracitada, a qual por sinal é bastante elucidativa, o Supremo Tribunal Federal entendeu que na hipótese houve um processo de Inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critério de concessão de outros benefícios assistências por parte do Estado brasileiro).

Ao justificar a necessidade de alteração nos critérios para a concessão do benefício em questão, o relator, Ministro Gilmar Mendes, pontuou que “é fácil perceber que a economia brasileira mudou completamente nos últimos 20 anos. Desde a promulgação da Constituição, foram realizadas significativas reformas constitucionais e administrativas com repercussão no âmbito econômico e financeiro. A inflação galopante foi controlada, o que tem permitido uma significativa melhoria na distribuição de renda.”

Em apertada síntese, podemos afirmar que o Supremo Tribunal Federal entendeu que o critério fixado pelo Legislador ao elaborar o art. 20, § 3º da LOAS era constitucional em sua origem, uma vez que refletia o cenário fático e jurídico existente à época. Entretanto, tal critério sofreu um processo de inconstitucionalização ao longo dos anos, eis que permaneceu imutável diante das radicas alterações ocorridas em nossa sociedade.

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É justamente por se mostrar distante do novo quadro fático e jurídico existente no país que o critério se torna inconstitucional, haja vista que não se apresenta mais apto a cumprir seu dever previsto constitucionalmente.

Em suma, o STF entendeu que é possível sim a existência de um critério legislativo objetivo para aferição de miserabilidade. Entretanto, entendeu que o critério de ¼ não se revela mais apto a desempenhar tal missão.

Em vista das relevantes e complexas questões que permeiam a questão, cuja análise indubitavelmente ultrapassa o campo jurídico, o Ministro Gilmar Mendes propôs a fixação de prazo para que o Congresso Nacional elaborasse nova regulamentação sobre matéria, mantendo-se válida a aplicação das regras originárias até o dia 31 de dezembro de 2014.

Sobre o tema, cabe trazer a baila elucidativo trecho do voto do relator:

“Uma vez declarada essa inconstitucionalidade, ante todas as convincentes razões até aqui apresentadas, poderão os Poderes Executivo e Legislativo atuar no sentido da criação de novos critérios econômicos e sociais para a implementação do benefício assistencial previsto no art. 203, V, da Constituição. Assim, será necessário que esta Corte defina um prazo razoável dentro do qual o § 3º do art. 20 da LOAS poderá continuar plenamente em vigor. O prazo de dois exercícios financeiros, a vigorar até o dia 31 de dezembro de 2014, apresenta-se como um parâmetro razoável para a atuação dos órgãos técnicos e legislativos na implementação de novos critérios para a concessão do benefício assistencial.”

Entretanto, em que pese a louvável iniciativa, a proposta de modulação dos efeitos não alcançou a necessária adesão dos dois terços dos ministros (quorum para modulação), sendo que apenas os Ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Celso de Mello perfilaram-se ao lado do Ministro Gilmar Mendes.

Feitas tais considerações, podemos notar que a ausência de modulação da decisão ora analisada fez surgir uma situação sui generis em nosso ordenamento jurídico, uma vez que o acórdão proferido pelo STF, na forma como se deu, acabou por retirar a força normativa do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, tornando-o, temporariamente, sem qualquer valia.

O parágrafo único do artigo 34 da Lei nº 10.741/2003 - Estatuto do Idoso, dispõe que:

Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas. (Vide Decreto nº 6.214, de 2007)

Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.

O mencionado parágrafo único, o qual também foi objeto de declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial, sem pronuncia de nulidade, no RE 580.963/PR [2]-  o que não se mostra relevante para nossa análise, tem por objetivo apresentar um rol de benefícios que, embora concedidos a qualquer membro da família, não serão computados para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere justamente o § 3º do art. 20 da Lei 8.742/93.

Desse modo, uma vez que no atual cenário o critério de miserabilidade previsto na LOAS encontra-se defasado e, consequentemente, se revela inconstitucional, podemos afirmar que não existe neste momento qualquer critério objetivo a ser encontrado/calculado.

Em outras palavras, se não há uma definição legal de miserabilidade para fins de concessão de Benefício de Prestação Continuada, certo é que não há que se falar em exclusão desse ou daquele benefício para os fins do cálculo referido pelo LOAS, eis que não se busca mais qualquer patamar objetivo.

Em sendo assim, podemos concluir que a previsão constante no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, ante a decisão proferida pelo STF na Rcl. 4374/PE e a inércia do Legislador em adequar-se ao decidido pelo Supremo, encontra-se temporariamente sem qualquer força normativa, não apresentando serventia ao ordenamento jurídico.

Tal situação sui generis poderia ter sido evitada com a modulação dos efeitos da decisão da Rcl. 4374/PE, nos moldes como proposto pelo Relator Ministro Gilmar Mendes, eis que que o prazo fixado seria razoável para atuação dos órgãos técnicos e legislativos na implementação de novos critérios para a concessão do benefício assistencial, “devolvendo” a constitucionalidade ao então reformulado art. 20, §3º da Lei 8.742/93. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal optou por silenciar-se em relação ao tema, construindo, de pronto, tal aberração jurídica.

Em vista do exposto, no cenário atual, podemos concluir que a única forma de o parágrafo único do art. 34 do Estatuto do idoso retomar seu papel no ordenamento jurídico e restabelecer sua força normativa é a partir de uma futura manifestação do Congresso Nacional a fim de estabelecer um novo critério objetivo de miserabilidade, condizente com o quadro fático e jurídico existente, a ser utilizado par aos fins previsto na LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. DOU 05.10.1988.

BRASIL. Lei n. 8.742 de 07 de dezembro de 1993, Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. DOU 08.12.1998.

BRASIL. Lei n. 10.741 de 1º de outubro de 2003, Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. DOU 03.10.2003.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, disponível em www.stj.jus.br, acesso em 03/11/2014.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, disponível em www.stf.jus.br, acesso em 31/10/2014.

Sobre o autor
Gustavo Rosa da Silva

Procurador Federal, lotado na Procuradoria Federal no Estado de Minas Gerais. Ex-Procurador-Chefe da Procuradoria Federal no Estado de Rondônia. Ex-Procurador-Chefe da Procuradoria Federal junto ao Instituto Federal de Rondônia - IFRO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gustavo Rosa. O julgamento da Reclamação 4374/PE e o temporário esvaziamento normativo do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4172, 3 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34533. Acesso em: 22 dez. 2024.

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