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Projeto de Lei nº 1.057/2007: “Lei Muwaji”

O presente ensaio discorrerá sobre o infanticídio que é considerado crime no Brasil, art. 123 CP . Relação da prática realizada pelos índios que é considerada um ato de amor. Conflito de normas. Infanticídio indígena. Medida a ser tomada. Análise.

                                                                                             

Infanticídio – Crime que consiste em matar, durante o parto ou logo após, o próprio filho, sob a influência do estado puerperal, cuja pena é de detenção. Ação de matar feto nascente ou neonato.

Índio – Silvícola, cuja capacidade se rede por norma especial. Habitante de um estado primitivo de civilização. Aborígene da América.

Introdução

O presente ensaio discorrerá sobre o infanticídio que é considerado crime no Brasil, previsto no artigo 123 do Código Penal. A relação da prática pelos índios sobre tal ato e analisando a Carta Magna que dispõe sobre o tratamento dos mesmos, o Estatuto do Índio, além da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho que adentra ao ordenamento jurídico brasileiro por força do §2º do artigo 5º da Constituição Federal, discorrer-se-á também sobre o Projeto de Lei nº 1057/2007 – também denominado de “Lei Muwaji”, que visa eliminar a prática do infanticídio indígena, tornando crime tal ato, além de considerações sobre a da Teoria da Ponderação (de Robert Alexy) a ser discutida e no final um singelo parecer do autor deste para o referido projeto de lei.

Infanticídio

Crime previsto no Código Penal no artigo 123: “Art. 123. Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto logo após: Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos”.

Trata-se de um crime próprio (o que seria isso?). É um crime que só pode ser cometido por determinada pessoa, ou seja, no caso em tela (infanticídio) só pode ser cometido pela mãe; pode ser considerado como um crime de dano, no qual exige um lesão ao bem jurídico tutelado “vida” (será explanado adiante); crime material, aquele em que só é consumado com a produção do resultado naturalístico, por exemplo o homicídio (só se consuma com a morte); crime unissubsistente é o que se perfaz com um único ato; pode ser tratado como um crime de ímpeto, que é cometido em um momento de impulsividade (estado puerperal).

O bem jurídico tutelado (conforme fora dito anteriormente) é a vida, aqui fica consignado à preocupação do Estado em tutelar a vida do indivíduo desde o começo do seu nascimento.

A figura típica contida no crime é o verbo “matar”, no caso abreviar a vida alheia (do próprio filho) pela mãe. A ação deve ser cometida durante o logo após o parto.

Os meios de execução do crime podem ser definidos como crime de forma livre, ou seja, pode ser praticado por qualquer meio, comissivo p ex: enforcamento, afogamento e etc., ou omissivo p ex: deixar de amamentar a criança e etc.

O sujeito ativo do tipo penal é a mãe, genitora (crime próprio) e o sujeito passivo o recém-nascido, neonato.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Convenção nº 169.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi criado em 1919, pelo Tratado de Versalhes que teve por escopo melhorar as condições de trabalho, tendo em vista a justiça social.

Acerca da definição de Convenção retiro esta do artigo (NAZARETH, 2010):

“As Convenções da OIT são tratados internacionais que, uma vez ratificados pelos Estados Membros, passam a integrar a legislação nacional. A aplicação das normas pelos países e é examinada por uma Comissão de Peritos na Aplicação de Convenções e Recomendações da OIT que recebe e avalia queixas, dando-lhes seguimento e produzindo relatórios de memórias para discussão, publicação e difusão[1]”.

Sobre a Convenção nº 169 da OIT temos os seguintes dispositivos que garantem a cultura indígena.

Artigo 2º (...)

2. Essa ação incluirá medidas para:

(...)

b) promover a plena realização dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando sua identidade social e cultural, seus costumes e tradições e suas instituições;

Artigo 3º

  1. Os povos indígenas e tribais desfrutarão plenamente dos direitos humanos e das liberdades fundamentais sem qualquer impedimento ou discriminação. As disposições desta Convenção deverão ser aplicadas sem discriminação entre os membros do gênero masculino e feminino desses povos.
  2. Não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou coerção que viole os direitos humanos e as liberdades fundamentais desses povos, inclusive os direitos previstos na presente Convenção.

Artigo 4º

  1. Medidas especiais necessárias deverão ser adotadas para salvaguardar as pessoas, instituições, bens, trabalho, culturas e meio ambiente desses povos.
  2. Essas medidas especiais não deverão contrariar a vontade livremente expressa desses povos.

Artigo 5º

Na aplicação das disposições da presente Convenção:

  1. Os valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais desses povos deverão ser reconhecidos e a natureza dos problemas que enfrentam, como grupo ou como indivíduo, deverá ser devidamente tomada em consideração;
  2. A integridade dos valores, práticas e instituições desses povos deverá ser respeitada;

Artigo 6º

  1. Na aplicação das disposições da presente Convenção, os governos deverão:
  2. Consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

Artigo 9º

  1. Desde que sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos, os métodos tradicionalmente adotados por esses povos lidar com delitos cometidos por seus membros deverão ser respeitados.

Artigo 25

  1.  Os governos tomarão as medidas necessárias que garantam que serviços de saúde adequados sejam disponibilizados aos povos interessados ou que eles sejam dotados dos recursos necessários para desenvolver e prestar esses serviços sob sua própria responsabilidade e controle para que possam desfrutar do maior nível possível de saúde física e mental.
  2. Na maior medida possível, os serviços de saúde deverão ser baseados na comunidade. Esses serviços deverão ser planejados e administrados em cooperação com os povos interessados e levar-se-á em consideração suas condições econômicas, geográficas, sociais e culturais, bem como seus métodos tradicionais de prevenção, práticas curativas e medicamentos.
  3. O sistema de assistência de saúde dará preferência à formação e contratação de pessoal de saúde da comunidade local e enfocará a prestação de serviços de assistência primária, mantendo, ao mesmo tempo, vínculos estreitos com outros níveis de assistência de saúde.
  4. A prestação desses serviços de saúde deverá ser articulada a outras medidas sociais, econômicas e culturais adotadas no país.

Essa Convenção adentrou o ordenamento jurídico brasileiro? Sim. Foi ratificada pelo Decreto Legislativo nº 143/02, e entrou em vigor em 2003.

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Através do artigo 5º, § 3º da Constituição Federal com a Emenda Constitucional nº 45/04, todos os Tratados Internacionais que regem o tema Direitos Humanos, estão “cobertos com um manto constitucional”, ou seja, está abaixo da Constituição e acima da legislação infraconstitucional, não podendo ser revogados por lei posterior, posto que não se encontram em situação de paridade com as demais leis nacionais.

O Projeto de Lei 1057/2007 – “Lei Muwaji”.

O objeto principal desta lei é impedir o infanticídio de crianças indígenas, o que é louvável, mas a forma como querem impor (penso) ser uma violência tremenda contra estes povos e uma intervenção em sua cultura, que antes mesmo de terem suas terras colonizadas, já faziam isso.

Os casos previstos como práticas nocivas que atentam contra a vida e a integridade físico-psíquica estão elencadas no artigo 2º do referido projeto de lei.

Art. 2º. Para fins desta lei, consideram-se nocivas as práticas tradicionais que atentem contra a vida e a integridade físico-psíquica, tais como

I. homicídios de recém-nascidos, em casos de falta de um dos genitores;

II. homicídios de recém-nascidos, em casos de gestação múltipla;

III. homicídios de recém-nascidos, quando estes são portadores de deficiências físicas e/ou mentais;

IV. homicídios de recém-nascidos, quando há preferência de gênero;

V. homicídios de recém-nascidos, quando houver breve espaço de tempo entre uma gestação anterior e o nascimento em questão;

VI. homicídios de recém-nascidos, em casos de exceder o número de filhos considerado apropriado para o grupo;

VII. homicídios de recém-nascidos, quando estes possuírem algum sinal ou marca de nascença que os diferencie dos demais;

VIII. homicídios de recém-nascidos, quando estes são considerados portadores de má-sorte para a família ou para o grupo;

IX. homicídios de crianças, em caso de crença de que a criança desnutrida é fruto de maldição, ou por qualquer outra crença que leve ao óbito intencional por desnutrição;

XI. Abuso sexual, em quaisquer condições e justificativas;

XII. Maus-tratos, quando se verificam problemas de desenvolvimento físico e/ou psíquico na criança.

XIII. Todas as outras agressões à integridade físico-psíquica de crianças e seus genitores, em razão de quaisquer manifestações culturais e tradicionais, culposa ou dolosamente, que configurem violações aos direitos humanos reconhecidos pela legislação nacional e internacional.

Dos substitutivos ao PL 1057/07.

Os substitutivos ao Projeto de Lei 1057/07 mencionam a criação do Conselho Nacional Indígena e o Conselho Tutelar Indígena, para intervenção nestas situações de risco.

O acréscimo do artigo 54-A no Estatuto do Índio, no qual “reafirma o respeito e fomento a cultura indígena”., fica claro que isto não passa de letra morta, pois no caso em tela impedir que a cultura deles seja continuada de forma tão incisiva e maçante deixa o direito “a quem”?.

Combater uma cultura que é realizada há centenas, (senão) podemos dizer milhares de anos pelos seus ancestrais isto em meu ver seria uma afronta e um total desrespeito a sua cultura.

Observações pertinentes

Medidas especiais necessárias deverão ser adotadas para salvaguardar as pessoas, instituições, bens, trabalho, culturas e meio ambiente desses povos. Essas medidas especiais não deverão contrariar a vontade livremente expressa desses povos.

Esta medida imposta de forma arbitrária fere a convenção da OIT, o que é absolutamente inaceitável. (Seria a primeira violação)

Consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;

Tal medida está sendo proposta sem discussão com os povos interessados, ou até mesmo com órgão de representação das classes. (Segunda violação)

Os governos tomarão as medidas necessárias que garantam que serviços de saúde adequados sejam disponibilizados aos povos interessados ou que eles sejam dotados dos recursos necessários para desenvolver e prestar esses serviços sob sua própria responsabilidade e controle para que possam desfrutar do maior nível possível de saúde física e mental.

Um dispositivo “perfeito”, mas que na realidade não ocorre, falta de estrutura (profissionais treinados para tal situação; falta de equipamentos necessários; recursos e demais itens pertinentes ao caso). Um serviço prestado de forma precária.

Conclusão

Primeiro deve-se analisar o caso concreto, já que tal medida pode afetar tanto a sociedade quanto à população em questão (indígena). Uma tradição milenar que pode estar com os dias contados? Direito à vida “digna”? (Des)respeito à Constituição? Uma série de questionamentos sem resposta?! Qual seria a resposta certa?! Isso existe?!

O diálogo deve prevalecer! Há tribos que começaram a mudar seus costumes por vontade própria, debates sobre tal questionamento aberto pelos próprios conviventes. Outros pela não aceitação da tribo, buscam ajuda fora dela; ou ainda deixam a tribo para viver sozinhos de forma digna, longe de qualquer “atraso” da vida. Há tribos que não irão mudar seus costumes e nesses casos não pode o Estado agir de forma arbitrária, punir os “responsáveis” pela prática de crime sendo que isso faz parte da cultura deles, uma violência que poderia causar danos irreparáveis pelo Poder Público. Deve ser realizada uma consulta por parte do órgão responsável sobre tal lei, em caso de não concordância em mudar os costumes, e se o Estado estiver preparado para acolher de forma digna tal criança (com estrutura de qualidade, saúde, educação e prestar toda a assistência ao infante, ‘creio’ que preenchidos os requisitos, pode afastar ‘provisoriamente’ já que há tribos que não permitem o (re)ingresso deles; em casos extremos fortalecer o canal de adoção destas crianças.

Ex positis, opino pelo não prosseguimento da presente proposta de lei, seja pelo vício de formação (falta de consulta aos povos afetados diretamente pela norma), seja pelo conflito de normas, seja pela inconstitucionalidade do projeto, seja pela ineficácia que a norma pode apresentar.

Menciono novamente o diálogo que deve ser realizado com todas as tribos existentes, órgão responsável pelos índios (FUNAI), e demais interessados, pois somente com análise dos casos pelos próprios ‘destinatários’ da proteção é que pode ser realizada uma medida que atenda a todos, já que o direito é algo subjetivo e que deve ser analisado caso a caso (no caso em tela).


[1] NAZARETH, Gleydson Gonçalves. As convenções e recomendações de direitos humanos da OIT e sua aplicação no Direito brasileiroJus Navigandi, Teresina, ano 15n. 2702[24] nov. [2010]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17891>. Acesso em: 17 dez. 2014.
 

Sobre o autor
Matheus Fagundes Matos Pereira de Gouvêa

Residente na cidade de Taubaté, no Estado de São Paulo. É graduando da Universidade de Taubaté (Unitau). Estagiou no Escritório de Assistência Judiciária (EAJ) pela Universidade de Taubaté, no Cartório do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Taubaté (Tribunal de Justiça de São Paulo). Estagiou nos anos de 2014/2016 no Ministério Público do Estado de São Paulo, 1ª Promotoria de Justiça Cível da Comarca de Taubaté, Promotoria da Infância e Juventude. Atualmente é advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção São Paulo, sob n 390704.

Informações sobre o texto

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