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O terror e o riso

Agenda 13/01/2015 às 07:09

Humor é saudável válvula de escape, formador de consciência, mas isso não dá passe livre à sistemática injúria, só porque travestida de anedota.

O momento é de solidariedade sem risos. Aos franceses e aos cartunistas, que sofrem a dor do massacre contra a revista Charlie Hebdo pela Al Qaeda. Mas isso não deve impedir reflexões necessárias.

Essa irrupção do ódio assassino, outra vez se reivindicando defesa do Islã, demonstra o grau de trevas que reveste grande parcela da prática islâmica em regimes de obscuridade. Após a morte de Maomé, sua herança vergou-se em duas direções. Para os sunitas, o Profeta não deixou sucessores e a revelação islâmica se encerrou com sua morte. Basta ao fiel seguir-lhe as “Sunas”, ensinamentos observáveis em paralelo ao Alcorão. Já os xiítas reivindicaram Ali, genro e primo de Maomé, como herdeiro. Isso deu guerras e golpes de estado entre as correntes, multiplicadas em seitas e subgrupos.

O conceito da “Jihad” é defendido por líderes islâmicos como luta interior pelo auto-domínio e aperfeiçoamento na fé. Mas mesmo esses líderes, dadas as menções do Alcorão a atos de violência, não conseguem excluir a ideia da Jihad como guerra física contra “infiéis” que, a rigor, são os não muçulmanos. Grupos islamitas vão à beligerância porque a dissensão interna alimenta o radicalismo fundado em interpretações literais de trechos do Corão, como a nona surata: "Matai os idólatras onde quer que os encontreis, capturai-os e cercai-os e usai de emboscadas contra eles". Atentados a igrejas cristãs ocorrem em vários países do Islã e aumentam as notícias de condenação de cristãos à morte. Por tudo isso, o historiador Paul Johnson concluiu: “Paz não é uma palavra que possa se encaixar facilmente nessa forma de pensamento”.

Sim, também em nome do cristianismo atrocidades ocorreram. Mas creio que o cristianismo arejou-se com a Reforma Protestante, pilar do pensamento democrático, que fez de qualquer fiel um intérprete com acesso à divindade. Para Deus, o faxineiro da congregação não é menos que o douto e o poderoso. Isso foi revolucionário, permitindo a queda do absolutismo. No islamismo, entretanto, sem reforma similar, governos autoritários ainda predominam. Em países com IDH baixo, fiéis muitas vezes sequer têm possibilidades de lerem diretamente o seu livro sagrado. Portanto, tarefa hercúlea está dada aos líderes muçulmanos pacifistas.

Por outro lado - sem julgar conteúdos da revista francesa que desconheço, e muito menos justificar o terror injustificável - em tempos de maus modos, bullying e desprezo pelo outro em todos os convívios, não se pode adiar a primordial reflexão sobre os limites éticos da liberdade de expressão. Humor é saudável válvula de escape, formador de consciência, mas isso não dá passe livre à sistemática injúria, só porque travestida de anedota. A Constituição não dá direitos absolutos nem ao bobo da corte.

Hoje, como forma de alcançar audiência, muitos usam a piada afrontosa, o mau gosto, o sensacionalismo barato, o pânico na TV. Mas não é verdade que se possa dizer qualquer coisa a qualquer plateia, todo o tempo. Dar os limites não é tarefa simples. Mas vá aqui um exemplo: até os mais liberais reprovaram o poeta Chacal quando, horas depois da queda das Torres Gêmeas, adentrou uma reunião com o péssimo chiste “Osama nas alturas!”. Ao substituir a palavra Hosana na expressão bíblica, afrontou a um só tempo a dor da tragédia, a crença cristã e fez louvação do assassino. Ora, se dor e fé são coisas sagradas, piada mau posta pode ser vilipêndio. E uma piada não pode tudo.

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NOTA IMPORTANTE - Terminei esta crônica na madrugada. Por conta disso, não pude conhecer melhor a revista Charlie Hebdo. Só depois o fiz. E ouso dizer. Caso tivesse visto antes alguns de seus conteúdos, teria dado a esta o título "Eu não sou Charlie", na contramão do movimento de solidariedade à revista atacada. Uma coisa é a solidariedade aos que sofreram tamanha tragédia de crueldade covarde. Outra coisa é fazer como aqueles que, na morte, tudo absolvem do antes errático vivente, e tecem elogios fúnebres imerecidos.

Não tenho coragem de reproduzir aqui as tais charges e me espanta que muitos jornais ocidentais o tenham feito. Mas ao menos preciso descrevê-las (e a descrição também não é agradável) em palavras. Vão aqui duas das mais graves, apenas para dar ideia do tom da revista que agora, quase que incondicionalmente se apoia, numa confusão da solidariedade emergencial. Prepare-se, se não as viu.

 Numa delas aparecem em pé, curvados um sobre o outro Deus Pai, Jesus Cristo, e um símbolo triangular para o Espírito Santo. E estão sodomizando-se mutuamente. É nojento e sacrílego. Em outra, aparece Maomé visto de costas, de quatro e nu, com uma estrela desenhada em lugar do ânus, sob a inscrição: "Nasce uma estrela". E por aí vai.

Nada justifica a covardia, o terror e o assassinato, mas é preciso que se diga: É nojento. É abuso de direito da liberdade de expressão. É injúria e vilipêndio. E só corrobora a parte final da minha crônica, onde, sem ter visto estas imagens já discursara contra abusos até menores que estes.

Sobre o autor
Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso. O terror e o riso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4213, 13 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35456. Acesso em: 22 dez. 2024.

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