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Direito Penal de Jakons e Kafka:

Direito penal do inimigo. Possibilidade de aplicação no Estado Democrático de Direito brasileiro. Análise à luz da obra Na Colônia Penal de Franz Kafka

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Agenda 24/08/2016 às 15:46

4.0 EXISTÊNCIA DE UMA DUPLA MORAL DENTRO DA TEORIADE JAKOBS

No decurso da história da humanidade as leis surgiram para permitir uma convivência social harmônica. Nesse sentido, a partir do momento que se molda modelos de conduta e se elabora as regras, surge à sensação de tranquilidade advinda da mera existência de normas.

Nesse contexto, quando na simples presença de um ordenamento jurídico, se deposita o sentimento de segurança e paz social e a realidade, divulgada e vivenciada, relata o contrário, surge a propagação de discursos repressores.

A evolução da sociedade trouxe a complexidade das ações criminosas. Isso não significa dizer que os crimes se tornaram mais violentos, e nem menos violentos, porém mais arquitetados.

A dificuldade no combate ao crime organizado, somada aos embaraços na solução de tantos outros crimes e a divulgação massiva da criminalidade pela mídia, fez surgir o sentimento de insegurança e a ideia de enrijecimento do ordenamento jurídico. Busca-se a paz com simbolização de uma legislação suprema.

Diante disso, Jakobs apresenta, dentro da Teoria do Direito Penal do Inimigo, a defesa da criação de um dúbio Direito Penal, como já mencionado. De um lado aquele dedicado ao cidadão, o qual faz jus ao respeito de todas as garantias e direitos fundamentais; de outro o inimigo, desmerecedor das vantagens da lei que infringiu.

Já é sabido que o fim da teoria é disciplinar o indivíduo que “ousa” infringir a ordem jurídica e restabelecer o correto cumprimento das leis, as quais sempre deverão prevalecer e ser rigidamente cumpridas. Para tanto se usa do Direito simbólico, sistematizado em normas rigorosas com a relativização ou supressão de direitos.

É de verificar, contudo, a existência de uma dupla moral dentro da teoria em questão. O Direito penal do Inimigo, ao tempo que exige o rigoroso império das leis para punir os criminosos e mostrar que regras devem ser respeitadas, nega sua vigência ao deixar de conferir direitos àqueles classificados como inimigos. Isso em um ato de desrespeito ao ordenamento na busca de respeito ao mesmo.

Assim, a teoria admite a supremacia da lei para castigar, mas dispensa a mesma supremacia no momento de acusar, processar, condenar e executar a pena do inimigo.Jakobs busca a coexistência de uma dupla moral incompatível dentro do mesmo sistema jurídico penal.

A incompatibilidade a teoria também está na contradição do seguinte excerto da obra de Kafka utilizada para reflexão desse trabalho:

– Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o restelo. No corpo deste condenado, por exemplo – o oficial apontou para o homem – será gravado: Honra o teu superior! (KAFKA, 1986, p.39).

Condena-se por infringir a ordem suprema e na execução aniquila-se o princípio máximo da dignidade da pessoa humana.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A novela de Kafka espelha, com simetria, a verdade do sistema penitenciário brasileiro. Na Colônia Penal, Franz Kafka representa o robusto sistema prisional e o restelo a crueldade das execuções. O indivíduo vê-se diminuído por um Estado executor que lhe nega assistência e confere o estigma de “excluso” àquele que está na sociedade mas dela não participa. Para este “tipo” de indivíduo defende-se, como única solução, a exclusão.

O restelo da Colônia Penal de Kafka apresenta-nos um sistema penal, cujas falhas trituram os princípios humanitários, juntamente com o corpo do acusado que, para não pedir explicações, tem a voz abafada por um algodão:

[...]. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apoia primeiro a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ele grite [...]. (KAFKA, 1986, P.36).

Trazendo para a realidade brasileira atual, a ineficácia do sistema jurídico tradicional, em solucionar adequadamente os problemas da criminalidade, e o sentimento de insegurança, patrocinado pela campanha da imprensa sensacionalista,  implantou na população o desejo por um sistema de máxima repressão no combate aos delitos, no endurecimento das penas,  para a restauração da paz.

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Dentro dessa visão, conclui-se que, o personagem “condenado” da “Colônia Penal” personifica-se em inúmeros suspeitos e condenados do sistema penal brasileiro, os quais muitas vezes sofrem a execução antes mesmo da sentença, ação que visa através do simbolismo reprimir condutas desvirtuantes. O condenado, primeiro é levado à máquina e nela após horas de sofrimento e de supressão das garantias fundamentais é que “sente” a sentença.

Esse sentimento é terreno fértil para o crescimento de movimentos de expansão do Direito Penal e para propostas de contenção como o Direito Penal do inimigo de Günther Jakobs. Essa teoria defende que o tratamento penal tradicional deve ser aplicado ao acusado-cidadão, delinquente não habitual, até que se exteriorize uma conduta não eventual de delinquir. Contra esse acusado-inimigo é conferido ao Estado o ius puniendi no estado prévio, pois se combate a sua periculosidade. Ou seja, no caso do inimigo, punem-se, até mesmo, os atos preparatórios, como uma forma de prevenir os perigos (JAKOBS, 2009).

De acordo com Luiz Flávio Gomes (2007, p.107), a ideia de Jakobs assemelha-se a teoria Darwiniana: “a natureza elimina a espécie que não se adapta ao meio, assim também o Estado deve eliminar o delinquente que não se adapta à sociedade e às exigências da convivência.”

Entretanto, a teoria do inimigo encontra obstáculos no ordenamento jurídico brasileiro. Seus meios são incompatíveis com o Direito Penal concebido em um Estado de Direito Democrático como o Brasil.

Ocorre que a legitimação da aplicabilidade deste direito penal de contenção, de combate ao “inimigo”, é inadmissível, dentro dos paradigmas do Estado Democrático. A aplicação de um direito penal desvinculado de garantias, pautado em simbolismos e no adiantamento da punibilidade por meras suspeitas (até porque a presunção é de inocência - art.5º, LVII, CF/88), não coaduna com um sistema punitivo democrático, uma vez que despersonalizam o ser humano e fomenta a metodologia do terror.

Ainda que, algumas legislações contemporâneas (RDD, Lei do Abate), tenham permitido vestígios da teoria de Jakobs, a qual visa aumentar o poder estatal e diminuir as garantias fundamentais, o que se deve é frear seu crescimento, pois incompatível com o fundamento maior do Estado brasileiro, a dignidade da pessoa humana.

Assim, o verdadeiro inimigo do direito penal é o Estado perseguidor do “inimigo”, pois busca o autoritarismo. Ao se legitimar um tratamento arbitrário e desigual, renuncia-se o Estado de Direito, uma vez que transforma a pessoa em objeto e a desnuda de seus direitos essenciais. Além disso, abre-se espaço para o avanço do poder punitivo sobre todos os cidadãos, já que o status de inimigo é subjetivo e cabe a qualquer um. No lugar de paz se autorizará um estado de guerra.

Na tentativa de se evitar uma degeneração da moral é que se utilizou, nesse trabalho, a interdisciplinaridade com a obra “Na Colônia Penal” de Franz Kafka. A Literatura pode contribuir para o aperfeiçoamento crítico, para a capacidade de análise da realidade circundante, no auxílio da defesa e promoção dos direitos fundamentais e na formação dos que trabalham com o Direito. 

Propõe-se, para evitar a formação de uma dupla moral, que a sociedade se vista da figura do “explorador” da Colônia de Kafka. Oportuno colocar-se em uma posição mais afastada possível do senso comum propagado na imprensa sensacionalista. É preciso, porém dúvida a legitimidade dos discursos repressores.

Com suas explanações incisivas, o “oficial” busca o apoio do “estrangeiro” para dar continuidade ao modelo de punição do “antigo comandante”, considerado ultrapassado pelas autoridades da época. Da mesma forma, a mídia (o oficial), adepta do simbolismo impactante das imagens, tenta atrair seguidores, para dar continuidade a um modelo penal autoritário (o antigo comandante) de épocas passadas e que contraditoriamente é exigido embora considerado superado o período do autoritarismo.

Tal como hodiernamente a máquina (execução penal, por vezes antecipada) é apresentada de maneira fria pelo oficial (mídia sensacionalista) remetendo a uma alienação diante do horror da cena de sofrimento do condenado ou acusado (o personagem “condenado” da obra), pois é necessário que ele sinta na pele a culpa e que a sociedade perceba a efetivação da justiça, a força da lei.

Como o novo comandante não pode valer-se dos próprios poderes, para conter um modelo de punição arcaico, ele aproveita a visita do explorador na tentativa de combater os discípulos do seu antecessor e da máquina ultrapassada por ele deixada. Paralelamente o Poder Legislativo (novo comandante) não pode sozinho, utilizar o poder para rechaçar a criação de leis de máxima repressão. O povo (o explorador), verdadeiro detentor do poder, com um olhar externo (estrangeiro), o mais isento possível de qualquer influência, é quem deve reprimir a propagação de leis inconstitucionais, já que os legisladores são meros representantes do povo.

Dessa maneira, o olhar crítico da sociedade vai evitar o renascimento do modelo de punição inquisitorial e arbitrário, que penosamente foi sendo superado, e as ilações fundadas em senso comum serão suplantados. Tal qual o novo comandante, ao perceber que não consegue apoio do viajante/explorador, se coloca na máquina de tortura e é vencido.

 Acrescenta-se que essa reflexão é mais uma demonstração que o Direito Penal do Inimigo não procede. Esse Direito, de bases subjetivas, acabará por classificar todos como inimigos e atingir até mesmo seus defensores, em um verdadeiro extermínio humano.

Por fim, reforçando o posicionamento tomado nesse trabalho, repete-se esta última metáfora, escrita na lápide do antigo comandante (sistema penal autoritário), que ajudou criar o torturante procedimento:

Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome, cavaram-lhe o túmulo e assentaram a lápide. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determinado número de anos, ressuscitará e chefiará seus adeptos para a reconquista da colônia. Acreditai e esperai! (KAFKA, 1986, p. )

Em conclusão, sempre haverá adeptos da ideologia da supressão de direitos daqueles que infringem o ordenamento jurídico. Porém é necessária a vigilância social, uma vez que o ius puniendi do Estado não pode ser exercido de forma discricionária. Ele encontra limites nos direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição, em especial a dignidade da pessoa humana. Diante disso, é que se percebe na teoria do Direito Penal do Inimigo uma total incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito, configurando-se um retrocesso para a sociedade.


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Sobre o autor
Thatiana Katiussia de Sousa Veras

Advogada, Especialista em Direito Civil e Processo Civil, Membro do Tribunal de Justiça Desportiva-TJDPI e Membro da Comissão de Defesa das Prerrogativa do Advogado-CDPA. <br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERAS, Thatiana Katiussia Sousa. Direito Penal de Jakons e Kafka:: Direito penal do inimigo. Possibilidade de aplicação no Estado Democrático de Direito brasileiro. Análise à luz da obra Na Colônia Penal de Franz Kafka. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4802, 24 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35693. Acesso em: 22 nov. 2024.

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