Não raro tem se observado, ultimamente, em sentenças penais condenatórias, notadamente em casos de crimes contra a ordem tributária, a fixação da pena acima do limite legal, a partir da constatação, feita pelo julgador, da existência de condenações anteriores, ao argumento que estas pretéritas decisões bastariam para indicar personalidade voltada ao cometimento de crimes.
Este entendimento, que aqui se demonstrará equivocado, tem levado a injustiças, com significativo prejuízo aos direitos do apenado, posto que o agravamento da pena base, quase sempre, altera o regime de cumprimento inicial da pena, quando não afasta a possibilidade de aplicação dos benefícios das penas alternativas, além de interferir nos prazos prescricionais etc.
É sabido que na primeira fase da aplicação da pena, para que se alcance a necessária e suficiente reprovação e prevenção do crime, o artigo 59 do Código Penal prevê oito vetores, chamados de circunstâncias judiciais, os quais deverão ser considerados pelo juiz na fixação da pena base. Um destes vetores será a personalidade do agente. Vale conferir: "Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime".
Ocorre que a aferição da personalidade humana não é algo tão simples como pode parecer, posto que tal atividade requer se adentre em conceitos afetos ao domínio das ciências da psicologia e psiquiatria.
Com efeito. Das lições dos autores JESS FEIST e GREGORY FEIST se colhe que personalidade significa "um padrão de traços relativamente permanentes e de características singulares, que confere, ao mesmo tempo, consistência e individualidade ao comportamento de uma pessoa. Os traços contribuem para a existência das diferenças de comportamento, de consistência comportamental ao longo do tempo e de estabilidade de comportamento em meio às situações. Os traços podem ser únicos, comuns para alguns grupos ou compartilhados por espécies inteiras, mas seu padrão é diferente para cada indivíduo. Dessa forma, cada pessoa, embora semelhante a outras em muitos aspectos, possui uma personalidade exclusiva. As características são qualidades singulares de um indivíduo, que incluem atributos como temperamento, psique e inteligência." (FEIST, Jess e FEIST, Gregory. Teorias da Personalidade. 2008. AMGH Editora, p. 4, tradução Ivan Souza e outra)
Atento a essa dificuldade, o jurista FERNANDO CAPEZ, adverte que a personalidade "pertence mais ao campo da psicologia e psiquiatria do que ao direito, exigindo-se uma investigação dos antecedentes psíquicos e morais do agente, de eventuais traumas na infância e juventude, das influências do meio circundante, da capacidade para elaborar projetos para o futuro, do nível de irritabilidade e periculosidade, da maior ou menor sociabilidade, dos padrões éticos e morais, do grau de autocensura etc." (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Vol. 1, São Paulo : Saraiva, 2006, 10ª edição, p. 439).
A investigação da personalidade do agente, portanto, não é atividade simples, que possa ser feita a partir de presunções ou suposições objetivas. Requer apoio técnico o qual, infelizmente, nem sempre é disponibilizado ao julgador, ficando prejudicado o juízo de condenação, em face do princípio constitucional da presunção da inocência (art. 5º, LVII, CF).
Com muita precisão, GILBERTO FERREIRA apresenta um panorama da realidade, ao tempo em que descreve as razões que impedem que o juiz, sem apoio em estudo técnico, especificamente realizado em relação ao réu, possa proferir juízo de valor a respeito de sua personalidade, para fins de aplicação da pena: "A realidade nua e crua desse nosso país terceiro-mundista é a de que o juiz, efetivamente, não tem condições de avaliar cientificamente a personalidade do criminoso. Primeiro, porque ele não tem um preparo técnico em caráter institucional. As noções sobre psicologia e psiquiatria as adquire como autodidata. Segundo, porque não dispõe de tempo para se dedicar a tão profundo estudo. Como se sabe, o juiz brasileiro vive assoberbado de trabalho. Terceiro, porque, como não vige no processo penal o princípio da identidade física, muitas vezes a sentença é dada sem ter o juiz qualquer contato com o réu. Quarto, porque em razão de deficiências materiais do Poder Judiciário e da polícia, o processo nunca vem suficientemente instruído de modo a permitir uma rigorosa análise da personalidade". (FERREIRA, Gilberto. Aplicação da Pena. Rio : Forense. 1998. p. 88)
Ou seja, a análise da personalidade requer um exame técnico e aprofundado das características pessoais do acusado, bem como do seu perfil subjetivo, nos aspectos morais e psicológicos, pelo qual se analisa se tem ou não o caráter voltado à prática criminosa, o que somente poderá ser feito pelo profissional com formação na área (expert), não bastando, assim, a mera referência a antecedentes processuais, como foi feito pela respeitável sentença no presente caso.
Nesse sentido, já se pronunciou a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em Recurso Especial relatado pelo Ministro Felix Fischer:
"PENAL. RECURSO ESPECIAL. DOSIMETRIA DA PENA. INQUÉRITOS E PROCESSOS EM CURSO. MAUS ANTECEDENTES. NÃO CONFIGURAÇÃO. PERSONALIDADE. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PARA SUA AFERIÇÃO.I - Em respeito ao princípio da presunção de inocência, inquéritos e processos em andamento não podem ser considerados como maus antecedentes para exacerbação da pena-base (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ).II - Não havendo elementos suficientes para a aferição da personalidade do agente, mostra-se incorreta sua valoração negativa a fim de supedanear o aumento da pena-base (Precedente).Recurso especial desprovido." (REsp 745530/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 04/05/2006, DJ 12/06/2006, p. 536)
Vale conferir o que constou do voto do relator:
"Com efeito, as circunstâncias judiciais previstas do art. 59, do CP devem ser sopesadas pelo Magistrado que, por meio de um critério juridicamente vinculado (sistema da relativa indeterminação), deverá valorá-las, seja em benefício ou em detrimento do acusado. No caso em tela, a pena-base foi majorada, com base na personalidade do agente, ao argumento de que esta é voltada à prática delitiva ("Personalidade com desvios, revelados na inclinação ao ilícito" - fl. 145).
O e. Tribunal a quo, por sua vez, reformou a r. sentença condenatória ao argumento de que "a personalidade desviada, a minha ótica, também não pode gerar aumento; a formação jurídica não abrange conhecimentos psicanalíticos, área que exige habilitação específica para atuação; outrossim, cada cidadão tem a personalidade que lhe é possível" (fl. 132).
De fato, irrepreensível o posicionamento externado no v. acórdão vergastado. É lamentável que a personalidade ainda conste do rol das circunstâncias judiciais do art. 59, do CP, pois se trata, na verdade, de resquício do Direito Penal de Autor.
Além do mais, dificilmente constam dos autos elementos suficientes para que o julgador (que, de regra, não é psiquiatra e nem psicólogo - não sendo, portanto, expert) possa chegar a uma conclusão cientificamente sustentável.
Por conseguinte, não havendo dados suficientes para a aferição da personalidade do agente, mostra-se incorreta sua valoração negativa a fim de supedanear o aumento da pena-base."
Na mesma linha, em Recurso Especial relatado pela Ministra Laurita Vaz, a 5ª Turma do STJ assentou:
"HABEAS CORPUS. PENAL. DOSIMETRIA DA PENA. CRIME DE ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PERSONALIDADE VOLTADA À PRÁTICA DE DELITOS COM BASE EM INQUÉRITOS E CONDENAÇÕES ANTERIORES. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N.º 444/STJ. OUTRAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. AMEAÇA EXERCIDA COM ARMA DE BRINQUEDO. CANCELAMENTO DA SÚMULA N.º 174 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA NÃO CARACTERIZADA. REGIME INICIAL FECHADO MANTIDO. ORDEM DE HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONCEDIDA.1. Pacientes presos em flagrante delito em 01/07/2009 e condenados, em ambas as instâncias, como incursos no art. 157, § 2.º, incisos I, II e V, do Código Penal, porque, segundo a denúncia, em concurso de pessoas e com emprego de simulacro de arma de fogo, abordaram um automóvel e fizeram a vítima descer, vindo posteriormente a colidir o veículo contra uma árvore.2. Esta Corte de Justiça já se posicionou no sentido de que a personalidade do criminoso não pode ser valorada negativamente se não existirem, nos autos, elementos suficientes para sua efetiva e segura aferição pelo julgador. Precedentes.3. Inquéritos e processos em andamento não podem ser considerados para fins de majoração da pena-base, em respeito ao princípio da não culpabilidade. Súmula n.º 444/STJ.4. Com o cancelamento da Súmula n.º 174 do Superior Tribunal de Justiça, ficou assentado o entendimento segundo o qual a simples atemorização da vítima pelo emprego da arma de brinquedo não mais se mostra suficiente para configurar a causa especial de aumento de pena, dada a ausência de incremento no risco ao bem jurídico, servindo, apenas, para caracterizar a grave ameaça já inerente ao crime de roubo.5. Pena definitivamente fixada, para RODOLFO MARTINS DOS SANTOS, em 07 (sete) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, e 17 (dezessete) dias-multa; e, para GIANDERSON MARTINS DOS SANTOS, em 08 (oito) anos, 09 (nove) meses e 18 (dezoito) dias de reclusão, e 20 (vinte) dias-multa.6. Deve ser mantido o regime inicial fechado, com relação a RODOLFO em razão da existência de circunstâncias judiciais desfavoráveis, nos termos do art. 33, §3.º, do Código Penal, e, quanto a GIANDERSON, em razão do quantum de pena aplicado (art. 33, §2.º, "a", do Código Penal), e também por ser reincidente específico.7. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida para o fim de, mantida a condenação e o regime inicial fechado para o cumprimento de pena, afastar a valoração negativa das personalidades dos agentes e retirar a majorante de emprego de arma de fogo, reduzindo, por conseguinte, a pena de ambos os Pacientes, nos termos do voto." (HC 219.524/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 15/08/2013, DJe 26/08/2013)
Seguindo essa ordem de ideias, a 4ª Seção do Tribunal Regional Federal da Quarta Região prolatou o seguinte julgado:
"PENAL E PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. MOEDA FALSA. MATERIALIDADE. EXTRAVIO DAS CÉDULAS. ABSOLVIÇÃO. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. DOSIMETRIA. LEI 6.368/76. PERSONALIDADE. CONSEQUÊNCIAS. CONFISSÃO. CRITÉRIOS DE VALORAÇÃO. 1. Extraviadas as cédulas apreendidas resta inviabilizada a análise de questões relevantes ao crime de moeda falsa, especialmente acerca do conhecimento do réu sobre a inidoneidade da nota e sua aptidão em enganar, o que afronta os princípios fundamentais do contraditório e da ampla defesa. Não sendo o laudo pericial prova absoluta, resta assim extinta a própria materialidade do delito, impondo-se a absolvição do réu. 2. A personalidade constitui atributo subjetivo da pessoa e não pode ser avaliada negativamente a partir de elementos objetivos da realidade, sendo necessário o embasamento em conclusões técnicas, mediante laudo pericial. Precedentes. 3. Afasta-se a vetorial consequências, tendo em vista a apreensão da droga que não chegou ao consumidor final. 4. Embora o sistema de fixação da pena adotado pelo Código Penal contemple uma relativa indeterminação, a adoção de critérios matemáticos de proporcionalidade, para além do pragmatismo, permite também a concretização do princípio da igualdade, ao evitar que réus em situações muito assemelhadas venham a ser tratados de forma diversa com base apenas em pautas subjetivas de valoração. Assim, a proporcionalidade matemática é conveniente para a maior parte dos casos, ressalvado o temperamento de casos que destoem da normalidade, em função do grau acentuado de relevância de determinada circunstância judicial que possa receber valoração mais aguda. 5. O entendimento do STJ é no sentido de que, não havendo no Código Penal a fixação do quantum de aumento ou diminuição de pena pela incidência de atenuantes ou agravantes, elas devem ser aplicadas, em regra, na fração de 1/6, exceto quanto alguma particularidade determine valoração diferenciada, devendo, nesse caso, ser expressamente fundamentada."(TRF4, ENUL 0005472-39.2006.404.7205, Quarta Seção, Relator José Paulo Baltazar Junior, D.E. 24/04/2014)
Do exposto, resta claro que a existência de condenações anteriores não se presta a fundamentar a exasperação da pena-base como personalidade voltada para o crime ou uma conduta social desfavorável. Como visto, a personalidade do agente, à luz das premissas da psicologia e psiquiatria, deve ser analisada com vistas às qualidades morais do apenado, a sua boa ou a má índole, o sentido moral do criminoso, bem como sua agressividade e o antagonismo em relação à ordem social e seu temperamento, não sendo possível que se considere que tal personalidade é voltada para a prática de delitos, apenas pelo fato de existirem condenações anteriores.
Partindo do princípio que o juiz não detém habilitação técnica e legal para fazer a aferição reclamada pela ciência da psicologia e psiquiatria, e quase sempre não dispõe do assessoramento técnico do profissional competente para fazê-lo, por meio de laudo específico para cada caso, conclui-se que o agravamento de pena, imposto sob tais condições, representa violação ao princípio da legalidade, bem como dá incorreta interpretação e aplicação ao artigo 59 do Código Penal.