O INACEITÁVEL ERRO DO REGISTRADOR
Conforme o proclamado por majoritária (quiçá, unânime) doutrina e jurisprudência, o ato de registro imobiliário é considerado forma de ato administrativo e, como ato administrativo que é, está sujeito aos princípios de legalidade, ao regulamento do direito material e ainda se submete à livre disposição de vontade do cidadão.
O ato administrativo, sem amparo em norma legal que obrigue os interessados a se sujeitar ao crivo da qualificação, não tem o poder de obrigar qualquer modificação no negócio jurídico realizado ou nos efeitos da livre disposição de vontade.
Pode-se afirmar que, em resumo, o oficial de registro pode qualificar, mas não pode modificar o negócio realizado ou a vontade manifestada pelas partes, se estes estiverem em conformidade com a lei.
A afirmação a seguir pode parecer ofensiva e indelicada, mas é inegavelmente verdadeira: na qualificação dos inventários conjuntos realizados com uma única partilha, um registrador imobiliário, ao recusar o acesso do título ao fólio real estará cometendo, sem nenhum amparo legal, uma falha administrativa grave ao exigir que os interessados modifiquem o ajuste e a livre disposição de vontade que estão reproduzidos em Escritura Pública ou em Formal de Partilha.
Na qualificação registrária de um título apresentado, procedimento que se limita estritamente ao âmbito administrativo, simplesmente falece competência ao oficial registrador (e também ao Juiz Corregedor e ao Conselho Superior da Magistratura), para modificarem uma manifestação de vontade que se realizou perante o juiz de direito ou o tabelião que materializou o título apresentado para registro.
Questiona-se então: como pode o oficial exigir que se façam duas partilhas em inventários conjuntos, se pela vontade livre e consciente, e com pleno amparo na lei (conforme acima se exemplificou), as partes já decidiram pela realização de apenas uma única partilha?
Justificativa aceitável para tanto existiria se fosse possível a realização de uma interpretação da lei material ou processual a indicar que houve ofensa aos ditames e obrigações a todos imposta, mas, como demonstrado acima, efetivamente, com referência à lei processual, isso não ocorre quando os inventários conjuntos se concluem com a realização de uma única partilha.
Ressalve-se, apenas, que a interpretação meramente gramatical do disposto no artigo 1.043 do CPC já foi definitivamente afastada pelos tribunais e que a existência do plural no termo “partilha” não induz à obrigatoriedade de sua ocorrência, na medida em que, conforme demonstrado, perfeitamente legal a realização de partilha singular em inventários plurais.
CONTINUIDADE DO REGISTRO E DIREITO À HERANÇA
O Código Civil ao regulamentar os chamados Direitos Reais (nas Disposições Gerais do Capítulo Único do Título III), em seu artigo 1227, definiu claramente um princípio que jamais pode ser esquecido pelo intérprete do direito imobiliário, sob pena de, sendo ignorado, resultar em erro do tipo que fez surgir a necessidade da realização desse escrito.
A disposição do citado artigo é regra básica e muito simples: para a aquisição, por ato entre vivos, de qualquer dos dez tipos diferentes de direitos reais relacionados naquele capítulo, quando se referir a bem imóvel, o registro do título aquisitivo no Cartório de Registro de Imóveis é condição necessária.
Dentre os diversos direitos reais ali relacionados, é a propriedade, certamente, o mais importante e fundamental e, por tal motivo, esta espécie de direito que o ser humano pode deter sobre coisa material considerada bem imóvel, recebeu ainda maior atenção do legislador, que, especificamente no artigo 1245, repetiu, com maior detalhamento, a mesma regra que determina a obrigatoriedade do registro para a aquisição, entre vivos, deste tipo de direito.
A existência de Registro no cartório competente, portanto, é condição necessária para a aquisição e eventual disposição de direitos sobre imóveis quando a causa da aquisição ou disposição for um ato entre vivos.
O destaque na expressão constante no texto da lei é muito importante para o tema ora em debate, pois ao definir a necessidade de registro para o surgimento ou a disposição de direitos reais entre vivos, explícita e muito claramente, o legislador excluiu da incidência de tal regramento a situação que ocorre quando o ato jurídico de transmissão ou aquisição de direito real sobre imóvel tiver fundamento na morte de uma pessoa.
Conforme acima mencionado, a lei outorgou à transmissão causa mortis um caráter singular, muito diferente da transmissão entre vivos.
A transmissão dos direitos sucessórios representados pela herança que se recebe de alguém que faleceu, conforme o disposto no art. 1784 do CC, ocorre imediatamente ao herdeiro no momento exato em que falece o autor da herança, não havendo se cogitar em registro necessário para a ocorrência de tal transferência de direito.
Como não poderia deixar de ocorrer, regulamentando o tema em perfeita sintonia com o disposto no Código Civil, a Lei dos Registros Públicos definiu, sobre a aquisição da propriedade imobiliária com base no direito sucessório, que exista a obrigatoriedade da realização do registro de “ ... atos de entrega de legados de imóveis, dos formais de partilha e das sentenças de adjudicação”. (Lei 6015/73, art. 167, inc. I, alínea 25).
Conforme se verifica no dispositivo acima transcrito, a Lei de Registros Públicos não pretende obrigar o interessado na aquisição da propriedade de imóvel a título causa mortis a fazer o registro do pagamento da própria herança recebida (ou do legado), o que se obriga é que se registre o documento que torna formal e inconteste tal entrega de herança ou legado, ou seja, é obrigatório o registro do ato de entrega e não a própria herança que se recebe.
Não por outro motivo a Lei dos Registros Público, ao invés de simplesmente indicar a necessidade de registrar o pagamento da herança utiliza-se dos termos “atos de entrega de legado”, “formais de partilha” e “sentenças de adjudicação”.
Muito diferentemente, conforme citado anteriormente, quando trata da aquisição da propriedade intervivos, sinteticamente, a lei define a obrigatoriedade de registrar a compra e venda, a permuta, a dação em pagamento, a doação (alíneas 29, 30, 31 e 33 do inc. I do art. 167, respectivamente).
O que se deve concluir acerca da inteligência deste dispositivo é que ele, como não poderia deixar de ocorrer, confirma a regra geral e o princípio fundamental do sistema de aquisição da propriedade imobiliária em nosso país, que determina não ter o registro de imóveis, na aquisição CAUSA MORTIS, função constitutiva do próprio direito de propriedade, mas tão somente a função de tornar pública, notória e inconteste tal forma de aquisição da propriedade (a chamada função publicitária), situação muito diferente da que ocorre com a transferência da propriedade imobiliária por ato intervivos, pois esta forma de aquisição somente ocorre com o registro (cf. art.1227 do Código Civil).
CONCLUINDO
Com base nos dispositivos da Lei de Registros Públicos, interpretados à luz do princípio que regula a aquisição da propriedade pela sucessão, em sua essencial diferença em relação à aquisição da propriedade entre vivos, é possível afirmar com tranquilidade que o princípio da continuidade, que regula a transmissão de propriedade intervivos, não atinge a sucessão fundamentada na morte do proprietário, ou seja, na transmissão causa mortis, a continuidade que precisar ser observada - pois ela é fundamental para a segurança das transmissões de direitos - não é a continuidade de registro, mas a continuidade dos direitos dos sucessores (herdeiros) no encadeamento das sucessões (falecimentos).
No momento exato do falecimento de um proprietário, sua propriedade se transferiu ao sucessor. Se logo depois desse fato, seu herdeiro beneficiado vier a falecer, o direito por ele recebido irá se transferir, por sua vez, a seu sucessor. Não haverá, nesta hipótese, quebra de continuidade registrária se apenas a segunda sucessão for publicada no registro de imóveis.
A continuidade das sucessões estará garantida se no título de entrega da herança ao herdeiro beneficiário final das sucessões estiver noticiada (como de rigor deve ocorrer) a ocorrência dos óbitos sequenciais e reconhecidos os direitos sucessórios daqueles que receberam o pagamento da herança.
Escusas pela insistente repetição: por expressa determinação da lei dos Registros Públicos, é o título de entrega de herança que deve obrigatoriamente ser registrado no cartório competente, não o próprio direito (a herança).
O fato é que se mostra desnecessária a duplicação de registros, sugerida como necessidade por alguns registradores. Além de não atender os princípios e preceitos da Lei Civil e específica (Lei dos Registros Públicos) esta duplicação de atos representa formalidade excessiva e ônus significativo para o herdeiro final.
Não é necessário nem razoável realizarem-se dois registros de pagamento de direitos sucessórios em situações de inventários conjuntos - quando ocorrem duas sucessões - mesmo porque é possível e relativamente comum que na primeira sucessão não exista partilha alguma, mas apenas e tão somente, separação ideal do direito de meação, própria do viúvo sobrevivente, da totalidade da herança que permanece idealmente igual, em condomínio, na propriedade dos sucessores do falecido, filhos comuns do meeiro e do autor da herança (exatamente como ilustrado no hipotético exemplo concebido e citado anteriormente).
Provado que existe erro na interpretação (meramente gramatical) feita do disposto no artigo 1043 do Código de Processo Civil e que inexiste fundamento legal para a, efetivamente desnecessária, duplicação de partilhas e de registros no Cartório de Registro de Imóveis, quando ocorrer inventário conjunto, com respeito à divergência, entende este autor restar comprovado o erro que representa qualquer exigência feita por registrador imobiliário neste sentido, ainda que tal ordem de exigência esteja apoiada pelas recentes e inicialmente citadas, decisões do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo.