As Feiticeiras de Salem (Salem, Massachusetts, EUA - 1692)
Há três séculos, o vilarejo de Salem, na colônia americana da Nova Inglaterra, foi tomado de assalto por uma onda de intolerância e de fanatismo religioso, vitimando quase vinte pessoas. Esse infeliz incidente e a caça às feiticeiras que então se desencadeou serviu como um alerta para que os princípios de liberdade religiosa fossem assegurados na história dos Estados Unidos.
Mister Parris, o reverendo de Salem, estava exasperado. Betty, a sua única filha de apenas nove anos, acometida por uma série de estranhos espasmos, jogou-se petrificada sobre o leito, negando-se a comer. Naquela perdida cidadezinha, ao norte de Boston, não existiam muitos recursos além de um velho médico que por lá se perdera. Chamado para diagnosticar a doença, atestou para o aterrado pai que a menina estava era enfeitiçada e que nada lhes restava a fazer além de uma boa e sincera reza. A conclusão do doutor correu de boca em boca e em pouco tempo os pacatos habitantes do pequeno porto tomaram conhecimento de que Satanás resolvera coabitar com eles.
Simultaneamente outras garotas, as amiguinhas de Betty, começaram a apresentar sintomas semelhantes aos da filha do clérigo. Rolavam pelo chão, imprecavam, salivavam, grunhiam e latiam. Foi um pandemônio. Pressionado a tomar medidas, Parris resolveu chamar um exorcista, um caçador de feiticeiras, que prontamente começou sua investigação.
No século XVII, poucos punham em dúvida a existência de bruxas ou de feiticeiras porque uma das máximas daqueles tempos é de que "é uma política do Diabo persuadir-nos que não há nenhum Diabo".
Inquiridas por Cotton Mather, que iria se revelar uma espécie de Torquermada americano, as garotas contaram que o que havia desencadeado aquela desordem toda fora uns rituais de vodu que elas viram Tituba fazer. Essa era uma escrava negra que viera das Índias Ocidentais, e que iniciara algumas delas no conhecimento da magia negra. Durante o último longo inverno da Nova Inglaterra, ela apresentara várias vezes os feitiços para uma platéia de garotas impressionáveis. Educadas no estreito moralismo calvinista e no ódio ao sexo que o puritanismo devota, aquele cerimonial animista deve ter despertado as fantasias eróticas nelas. Provavelmente culpadas por terem cedido à libido ou apavoradas por sonhos eróticos, as garotas entraram em choque histérico. Seja como for o caso, merecia ser ouvido num tribunal. Toda a Salem se fez então presente no salão comunitário.
Quando colocadas num tribunal especial, presidido pelo juiz S. Sewall, e inquiridas pelos juízes Corwin e Hathorne, as meninas começaram a apontar indistintamente para várias pessoas que estavam na sala apenas como curiosas. O depoimento mais sensacional foi o da escrava Tituba, que não só confessou suas estranhas práticas como afirmou que várias outras pessoas da comunidade também o faziam.
A partir daquele momento, a cidadezinha que já estava sob forte tensão se transformou. Um comportamento obsessivo tomou conta dos moradores. Uma onda de acusações devastou o lugarejo. Vizinhos se denunciavam, maridos suspeitavam das suas mulheres e vice-versa, amigos de longa data viravam inimigos. Praticamente ninguém escapou de passar por suspeito, de ser um possível agente do demônio. Não demorou para que mais de 300 pessoas fossem acusadas de práticas infames, sendo presas cerca de cento e cinquenta pessoas. O tribunal que entrou em função em junho de 1692 somente parou em outubro.
Os julgamentos de Tituba e de outras foram realizados perante o juiz Samuel Sewall. Cotton Mather, um pregador colonial que acreditava em bruxaria, encarregou-se das acusações. O medo da bruxaria durou cerca de um ano, durante o qual vinte pessoas, na sua maior parte mulheres, foram declaradas culpadas de realizar bruxaria e executadas.
Em outubro de 1692, o governador William Phipps de Massachusetts ordenou que as Cortes de Over e Terminer fossem dissolvidas e substituídas pela Corte Superior de Judicatura, que proibiu esse tipo de testemunho sensacionalista nos julgamentos subsequentes.
As execuções cessaram e a Corte Superior finalmente libertou todos os acusados que aguardavam julgamento e indultou aqueles sentenciados à pena de morte. Terminava assim os processos das feiticeiras de Salem que resultaram na execução de 19 mulheres e homens inocentes. Mais tarde, o juiz Sewall confessou que as suas sentenças haviam sido um erro.
“Petrolão”, Brasil, 2014/2015 (a comparação não é mera coincidência)
Aguardada com ansiedade por todo o Brasil desde que estourou o escândalo na Petrobrás, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu ao STF a abertura de inquéritos para investigar políticos “suspeitos” de participar das fraudes. Eles serão investigados e, se denunciados, serão julgados.
Em tese, o esquema teria sido usado para desviar dinheiro da Petrobras, através de contratos superfaturados para benefício de executivos da empresa e políticos, sendo que a lista da PGR apresenta o nome de dezenas de políticos.
A bem da verdade, é de se ressaltar a enorme diferença entre a simples abertura de inquérito (aqui, o papel tudo aceita), denúncia e a condenação propriamente dita.
A denuncia pode ser (ou não) oferecida; se oferecida, pode ser aceita ou rejeitada pelo Judiciário. Ainda que seja oferecida e aceita, poderá não haver condenação alguma, caso haja o convencimento de que o réu é inocente dos crimes que, em tese, lhes são imputados (depois de se percorrer um longo caminho). Entretanto, é nesse longo e tortuoso caminho que reside o perigo.
À semelhança dos fatos ocorridos há três séculos, em Salem, quando falsas acusações e testemunhos sensacionalistas, potencializados pela histeria geral acometida naquela primitiva sociedade, provocando toda sorte de tragédias em pessoas e famílias inocentes, a simples investigação do Petrolão poderá provocar danos irreparáveis na reputação de pessoas que nada tem a ver com a essência e desvios do esquema a ser investigado.
Essas dezenas de pessoas foram apontadas, indistintamente, pelos delatores, à semelhança do que ocorrera há mais de três séculos com as meninas e a escrava Tituba, em Salem.
É de sabença geral que sempre as empresas sempre financiaram campanhas políticas, tanto que esse é um assunto que está na agenda política (conveniência ou não de se manter essa possibilidade legal).
Por outro lado, os políticos sempre recorreram às doações financeiras de empresas para as campanhas eleitorais, sendo razoável considerar a licitude da origem dos recursos, mormente quando se trata de empresa de grande capacidade econômica e, em especial, se for líder em sua área de atuação.
Posto isso, é de se questionar o seguinte: seria lógico que determinado político/candidato indague ao seu interlocutor, representante de empresa de grande porte, qual a origem dos recursos a ser doada, especialmente se o valor recebido está em plena conformidade com a capacidade financeira da empresa doadora? Penso que não.
De outra forma, é evidente que chamaria a atenção a doação financeira de um valor muito além e notoriamente incompatível com o porte do doador. A título de mero exemplo, não parece lógico (sendo até muito suspeito) uma modesta “pastelaria da esquina” (nada contra as pastelarias!) doar R$ 300.000,00 para determinado candidato. Entretanto, para qualquer uma das empresas supostamente envolvidas e citadas até o momento no “Petrolão”, a circunstância de doar valores absolutamente compatíveis com os seus portes, para um ou vários políticos, afasta, por si só, qualquer receio por parte do beneficiário quanto à licitude dos recursos recebidos, eis que nada de extraordinário houve.
Por essa razão, nessa nova versão tupiniquim das “Feiticeiras de Salem”, quando a PGR lançou suspeitas contra dezenas de pessoas, mesmo à poderosa evidencia de doações eleitorais, plenamente lícitas (por parte de quem as recebe), é preciso que não se confundam alhos com bugalhos, enfim, que sejam separados o joio do trigo, sem qualquer influência do famigerado “clamor popular” que, ignorante e irracional, até pouco tempo foi responsável pelos linchamentos (literalmente) de pessoas absolutamente inocentes. É o mesmo “clamor popular” que inflamou a Santa Inquisição, levando a humanidade a um longo período de trevas, ocasião em que era comum presenciar turbas histéricas (formadas por cidadãos “de bem”) em perseguição à pessoas inocentes, aos gritos de “mata!, mata!, queima!”.
Há que se recordar da morte da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, em maio de 2014, selvagemente agredida por dezenas de moradores de uma comunidade em Guarujá, litoral de São Paulo, depois da publicação de um retrato falado em uma página no Facebook, de uma mulher que supostamente realizava rituais de magia negra com crianças sequestradas. A vítima apenas “parecia” com o tal retrato falado, e apenas isso foi o suficiente para a sua morte, perpetrada por pessoas “comuns e trabalhadoras”, ditas de “bem”.
Caberá ao Supremo Tribunal Federal, instituição responsável pela guarda da Constituição e competência para julgar os membros do Congresso Nacional, conduzir de forma serena e imparcial os trabalhos inerentes ao “Petrolão”, observando o disposto no art. 5º inciso XXXVII da Carta Magna: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Nos tempos que correm, não há mais espaço para julgamentos ao estilo “Feiticeiras de Salem”.