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A indefinição jurídica sobre o início da vida humana:

desinteresse legislativo versus aborto

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Agenda 29/03/2015 às 09:15

Não se pode fechar os olhos para o fato de que há um grande número de mulheres que morrem todos os anos por conta de abortos mal sucedidos.

Quando uma pessoa sofre um delírio, se chama loucura. Quando muitas pessoas sofrem um delírio, isso se chama religião.”

Robert M. Pirsig

RESUMO: O trabalho propôs analisar a indefinição do início da vida humana no ordenamento jurídico brasileiro e sua aplicação em uma possível legalização da prática abortiva, apontando algumas teorias biológicas existentes sobre o tema, além de analisar a legislação pátria a respeito. Para tanto, serviram como parâmetro o Código Civil, mais precisamente o art. 2º, o Código Penal, mais precisamente o art. 124, a Lei nº 9.432/97 (Lei de Transplante de Órgãos) e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54). No que concerne à prática do aborto, buscou-se demonstrar que além de possível, é necessária uma releitura do crime de aborto nos moldes da atual sociedade brasileira, no sentido de permitir a sua prática seguindo determinados aspectos clínicos e legais, e que tal medida não é tomada, muito provavelmente, por conta do desinteresse legislativo. Ao final do presente estudo, chegou-se à conclusão de que a discussão a respeito do início da vida humana legalmente definido ainda será bastante debatido, em virtude de ser um tema espinhoso e envolver questões morais e religiosas. Contudo, no que tange à legalização do aborto, é urgente que seja legalizado e regularizado a fim de que muitas mulheres tenham sua saúde preservada.

Palavras-chave: aborto, legislação, concepção, nidação

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO.CAPÍTULO I-1 - Breve histórico...2 -  Teorias sobre o início da vida humana.2.1 - Teoria da fecundação ou concepção.2.2 - Teoria da nidação.2.3 - Teoria da atividade neural..2.4 - Teoria natalista..CAPÍTULO II . 3 - A legislação brasileira sobre o tema.3.1 - Código Civil..3.1.1 - Vida e personalidade civil.3.2 - A vida intrauterina e o Código Penal.3.3 - O conceito de morte da Lei nº 9.434/97 e a ADPF 54.3.4 - Afinal, por que não há legislação?.CAPÍTULO III .4 - Aplicação prática: aborto.CONSIDERAÇÕES FINAIS.REFERÊNCIAS..


Introdução

O questionamento de quando se inicia a vida humana existe desde que o homem se entende como ser pensante, e as respostas a esse questionamento sempre foram mais profundamente ligadas ao misticismo e a subjetivismos do que a critérios científicos e técnicos.

Na antiguidade, por exemplo, Platão defendia que a vida se iniciava somente após o nascimento da pessoa. Já Aristóteles, seu pupilo, discordava de Platão, e pensava que a vida tinha seu início desde que a mulher era fecundada pelo homem. 

A teoria aristotélica para o início da vida humana perdurou por muito tempo, sendo aceita inclusive por filósofos como São Tomas de Aquino e Santo Agostinho. No ano de 1588, o Papa Sixto 5º condenou o aborto, em qualquer tempo, com a pena de excomunhão. Entre uma desavença e outra dentro da própria Igreja sobre o tema, acabou-se por firmar, com Pio 9º no ano de 1869, que a vida definitivamente se iniciava no momento da concepção. E esse é o posicionamento da Igreja Católica até os dias de hoje.

Aliás, as religiões cristãs, junto com o hinduismo, são das grandes religiões a afirmar que a vida começa no momento da fecundação e a equiparar qualquer aborto ao homicídio. No judaísmo, por exemplo, admite-se o aborto, inclusive no momento do parto, nos casos em que há risco de vida para a mãe[1]. No mesmo sentido é o islamismo. Tal postura demonstra que a noção de vida e a estima que dá-se a ela transmutam-se de acordo com as sociedades, culturas e épocas.

Até certo tempo atrás, apenas os hábitos experimentados por cada cultura, e mais fortemente os dogmas religiosos, é que davam as respostas ao debate de quando se inicia a vida humana. Nos dias de hoje a ciência tem muito mais a dizer sobre o tal fato, coisa que em tempos passados era difícil, seja por questões de desenvolvimento técnico e científico, seja pela força opressora que a religião impunha à ciência.

Voltando os olhos para o Direito, mais precisamente o pátrio, em nosso inflacionado ordenamento jurídico tem-se definições para quase tudo, desde um simples cheque até o distante e infinito espaço sideral[2]. Apesar disso, o fator originário de toda atividade humana até hoje não foi alvo de uma definição jurídico-legislativa.

Frise-se que o fim da vida é definido pela legislação pátria no art. 3º da Lei 9.434/97[3]. Mas por que não o início dela?

Certo é que definir o início da vida não é tarefa das mais fáceis. Contudo, a resposta para esse questionamento está mais ligada a questões morais e éticas do que à própria capacidade científica. Com isso não se está querendo dizer que o início da vida humana já é clinicamente definida, longe disso. O debate sobre o tema existe e, mesmo entre médicos e pesquisadores, não a consenso. O que se procurará demonstrar nesse trabalho é a possibilidade de se adotar alguma das teorias existentes, ou mesmo se é realmente necessário adotar um critério biológico para tal definição.

O presente trabalho tem como objetivo analisar a falta de uma definição jurídico-legislativa do momento em que se inicia a vida humana, mostrando algumas das teorias que poderiam ser adotadas, suas vantagens e desvantagens no que concerne à prática do aborto.

No primeiro capítulo será feito um apanhado histórico, mostrando como os povos antigos pensavam a respeito do tema, passando pela idade média e toda a influência da igreja católica, até chegar às técnicas da medicina atual.

Ainda no primeiro capítulo, o trabalho apresentará algumas das principais teorias sobre o início da vida humana, notadamente a teoria da fecundação, a teoria da nidação, a teoria neurológica e por fim a teoria natalista.

No segundo capítulo, analisar-se-á a legislação brasileira a respeito do tema. O Código Penal, o Código Civil, a Lei 11.105/2005, conhecida como Lei de Biossegurança e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF 54), que julgou o aborto de fetos anencefálicos, servirão como parâmetros para mostrar a posição atual da legislação brasileira a respeito do início da vida humana.

Posteriormente, tentar-se-á demonstrar as benesses que uma definição legislativa do início da vida humana traria ao ordenamento jurídico, e consequentemente à sociedade, no tocante a uma possível legalização da prática do aborto.

Em síntese, o presente trabalho tentará fazer uma análise sobre o histórico da definição do momento em que tem início a vida humana, mostrando as teorias sobre o tema, além de analisar a legislação pátria nesse tocante, mostrando as visões das áreas civil, penal e da Lei de Biossegurança juntamente com o julgamento da ADPF 54, concluindo com algumas considerações de ordem prática para uma possível regulamentação da interrupção da gravidez.


Capítulo I

1  - Breve histórico

A definição do momento em que a vida humana tem o seu início é alvo de estudos e divagações desde que o homem começou a questionar sobre a sua existência. 

Começando por Hipócrates, filósofo grego e reconhecido como o pai da medicina. Hipócrates buscava retirar o caráter místico da forma como se tratavam os enfermos, introduzindo a observação do doente e posterior combate do mal através de seus opostos. Acreditava que a vida começava no momento da concepção, defendendo que qualquer medicamento que pudesse fazer mal à vida do nascituro não poderia ser ministrado à gestante.

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No livro A República[4], de Platão, o filósofo sustentava a ideia que as mulheres que chegassem aos 40 anos de idade e engravidasse deveriam abortar, pois, dizia ele, que o casal tinha o dever de gerar filhos para o Estado durante determinado período de tempo. Mas, caso esse período de tempo restasse ultrapassado, no caso os 40 anos de idade da mulher, o aborto era a solução. Para o filósofo, a vida se iniciava quando a alma adentrava no corpo do ser humano, o que ocorria após o nascimento. Com base nesse pensamento, em tempos de hoje, Platão seria defensor da teoria natalina, segundo a qual a vida se inicia após o nascimento.

Já para Aristóteles, discípulo de Platão, a vida se iniciava quando o feto ainda estava no ventre materno, mais precisamente quando o feto dava o seu primeiro movimento, o que ocorria nos bebês do sexo masculino por volta do quadragésimo dia de gestação, e nos do sexo feminino em torno do nonagésimo dia de gestação. E, como é sabido, em tempos tão longínquos, a medicina ainda não era capaz de determinar o sexo do bebê antes do nascimento[5]. Portanto, Aristóteles defendia que o aborto poderia ser praticado até o quadragésimo dia de gestação.

Nesse viés, Aristóteles elaborou a teoria da animação imediata[6], onde tenta explicar que a alma se juntará ao corpo, algumas semanas após a concepção, defendendo a tese que o feto tinha sim vida, afirmando, como já dito, que o início se daria com os primeiros movimentos do bebê no útero materno. A teoria de Aristóteles foi difundida por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho que acabou sendo recepcionada pelo catolicismo, tendo seu ápice no papado de Sixto 5º, que condenava à pena de excomunhão aquelas que praticassem o aborto. 

Baseado nos Concílios de Lerida e Constantinopla, o Papa Sixto 5º fez valer a Bula Effraenatame, condenando qualquer tipo de aborto e impondo penas rígidas aos que dele fizessem uso. Os condenados às penas do crime de aborto só poderiam ser absolvidas pela Santa Sé. Importante destacar que neste documento, a Bula Effraenatame, por óbvio, não se fez qualquer distinção entre feto com potencialidade de vida e o feto sem potencial de vida.[7] 

Gregório 9º, que sucedeu o Sixto 5º no mais alto posto da Igreja Católica (e a bem da verdade, o mais alto posto de todo o mundo naquela época), desconsiderou a ideia do seu antecessor, que considerava o início da vida no momento da concepção, e definiu então que o embrião ainda não formado não poderia ser considerado um ser humano, diferenciando, assim, aborto de homicídio.

Nessas idas e vindas em relação ao aborto, a Igreja Católica teve sua opinião mudada pelo menos três vezes, e foi quando em 1869, no papado de Pio 9º a igreja assumiu novamente a posição imposta pelo vaticano de condenação ao aborto, e que perdura até os tempos atuais.

Em meados do século XVI, o médico inglês William Harvey, foi pioneiro nos estudos intensivos e detalhados do sistema reprodutor através de experiências que fazia com animais. Publicou, no ano de 1651, seus estudos em De generatione animalium, onde chegou a conclusão de que todos os seres se desenvolvem a partir de uma estrutura indiferenciada, semelhante a um ovo. Por conta de suas descobertas, Harvey é tido como a linha que separa ciência do folclore, uma vez que foi um dos primeiros cientistas a utilizar o método experimental como prova para o conhecimento, extinguindo as superstições e a observação casual inconclusiva.

Mas a concretização dos estudos sobre a reprodução, de maneira realmente aprofundada, deu-se com a invenção do microscópio. No início do século XVII, um dos inventores do microscópio, Anton van Leuwenhoek, interessou-se pelo estudo do esperma, e veio a descobrir, posteriormente, os espermatozoides. No entanto, a sua recém descoberta, os espermatozoides, foi encarada como parasitas encontrados no sêmen, chegando a ser denominados de vermes espermáticos.  A descoberta do espermatozoide fez surgir no meio científico diversos debates sobre a sua verdadeira função e importância para a reprodução.

Como se nota, filósofos, cientistas, médicos, biólogos, pesquisadores, enfim, uma gama de profissionais de áreas distintas já se debruçou sobre o tema no intuito de chegar a uma resposta que fosse unânime. Contudo, até hoje não se conseguiu tal unanimidade.


2  - Teorias sobre o início da vida humana              

Após uma breve explanação sobre a visão do início da vida humana no passado, e o posterior desenvolvimento de novas tecnologias aptas a ajudar no deslinde dessa questão tão espinhosa, necessário se faz a apresentação das principais teorias sobre o início da vida humana. Nesse tópico abordar-se-á algumas das diversas teorias biológicas sobre o início da vida humana, explicando, da maneira mais clara possível, seus fundamentos.

As teorias hora apresentadas são biológicas, não jurídicas, mas poderiam ser aplicadas pelo direito para criar uma definição legal de quando se inicia a vida humana. Seus aspectos e fatos que ensejariam uma possível adoção, ou não, pelo Direito serão tratados a seguir.

2.1  – Teoria da fecundação ou concepção

De maneira sucinta, segundo essa teoria, a vida humana se inicia tão logo ocorra a fecundação do óvulo pelo espermatozoide. Numa análise um pouco mais atenta, a teoria da fecundação sustenta que no momento em que o gameta masculino vence a parede ovular e o material genético dos pais se une formando um DNA totalmente novo, aí está presente uma nova vida.

Essa teoria, inclusive, foi a base do raciocínio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510 (ADI 3510), que tentou a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança). Em sua petição, o então Procurador da República e autor da referida ADI, Dr. Cláudio Fonteles, citando o Dr. Dernival da Silva Brandão, especialista em Ginecologia e Membro Emérito da Academia Fluminense de Medicina, diz: 

 O embrião é o ser humano na fase inicial de sua vida. É um ser humano em virtude de sua constituição genética específica própria e de ser gerado por um casal humano através de gametas humanos – espermatozoide e óvulo. Compreende a fase de desenvolvimento que vai desde a concepção, com a formação do zigoto na união dos gametas, até completar a oitava semana de vida. Desde o primeiro momento de sua existência esse novo ser já tem determinado as suas características pessoais fundamentais como sexo, grupo sanguíneo, cor da pele e dos olhos, etc. É o agente do seu próprio desenvolvimento, coordenado de acordo com o seu próprio código genético. O cientista Jérôme Lejeune, professor da universidade de René Descartes, em Paris, que dedicou toda a sua vida ao estudo da genética fundamental, descobridor da Síndrome de Dawn

(mongolismo), nos diz: Não quero repetir o óbvio, mas, na verdade, a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos da mulher, todos os dados genéticos que definem o novo ser humano estão presentes. A fecundação é o marco do início da vida. Daí para frente, qualquer método artificial para destruí-la é um assassinato. (grifo)

Contudo, existe uma observação a ser feita nesse pensamento. Existem teromas[8], que são um tipo de tumor de células germinais derivado de células pluripotentes, que apesar de terem um DNA diferente do corpo da mãe, nunca serão capazes de originar um novo ser humano. Portanto, ter um material genético diferente do da mãe não garante que aquela célula seja uma vida em potencial, que dirá um ser humano.

Não bastasse, no âmbito jurídico, é de se notar o trecho extraído do voto do Ministro Ayres Britto no julgamento dessa mesma ADI:

Não que a vedação do aborto signifique o reconhecimento legal de que em toda gravidez humana já esteja pressuposta a presença de pelo menos duas pessoas: a da mulher grávida e a do ser em gestação. Se a interpretação fosse essa, então as duas exceções dos incisos I e II do art. 128 do Código Penal seriam inconstitucionais, sabido que a alínea a do inciso XLVII do art.5º da Magna Carta Federal proíbe a pena de morte (salvo “em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”).

Apesar do posicionamento anteriormente referido, do Dr. Dernival da Silva Brandão, existem cientistas que defendem que a fecundação não se dá num momento exato, um momento particular. Assim, a fecundação não ocorre no momento em que o espermatozoide entra no óvulo. A fecundação ocorre em um período de tempo, que dura em torno de 12 horas. Portanto, não há um momento exato e que se afirme que o óvulo foi fecundado. A fecundação é um processo, e como tal, não ocorre instantaneamente.

Outro problema encontrado, quando se pensa na adoção da teoria da fecundação, é no que diz respeito a alguns métodos contraceptivos.

A pílula pós-coital, comumente conhecida como pílula do dia seguinte, é um tanto controvertida. Analisando sua composição, vê-se que ela é composta por dois comprimidos que com altas doses de hormônio (50 microgramas de estrogênio e 250 microgramas de progestogênio)9. Os comprimidos liberam esses dois hormônios sintéticos na corrente sanguínea. O estrogênio e o progestogêneo diminuem o nível de outro hormônio no organismo feminino, o FSH (hormônio folículo estimulante). O FSH é responsável, dentre outras coisas, pelos movimentos da trompa que liberam o óvulo e o empurram em direção ao útero. Sem FSH, a trompa sossega, o óvulo estaciona e não encontra o espermatozoide. Para maior garantia, as pílulas agem também na mucosa que reveste o útero, o endométrio. Os hormônios provocam uma descamação nessa mucosa, o que impede que o óvulo fecundado fixe-se nas paredes do útero.

E tudo depende de em que momento do ciclo menstrual a mulher está e também do intervalo de tempo entre o ato sexual e o efetivo momento em que a mulher fez uso da pílula pós-coital.

Agora, analisando os fatos, se o óvulo realmente tiver sido fecundado durante, a pílula pós-coital estaria, nesse caso, agindo como abortivo e não contraceptivo. Ao fazer uso desse medicamento, totalmente legalizado e de uso liberado pelas agências reguladoras, estar-se-ia cometendo aborto? Segundo a teoria da concepção, sim, o aborto é evidente. No entanto, esse não é o posicionamento tanto da legislação quanto das agências reguladoras brasileiras.

O dispositivo intrauterino, comumente conhecido como DIU, é outro método contraceptivo que, se levar-se em consideração a teoria da fecundação, seria considerado abortivo em determinadas circunstâncias.

Existem dois tipos de DIU, os não medicados e os medicados, sendo o último o mais utilizado. Enquanto o DIU não medicado (ou inerte) é composto apenas por uma matriz de polietileno, o DIU medicado (ou ativo) é composto por uma matriz (corpo) de polietileno, que contém substâncias (metais ou hormônios) que exercem ação bioquímica local, aumentando a eficácia dos DIUs medicados, os mais utilizados são os que contêm cobre (Cu) ou progesterona[10].

Como se vê, é muito difícil que ocorra a fecundação do óvulo em mulheres que fazem uso do DIU, pois sua ação bioquímica, através de hormônios ou metais, age matando os espermatozoides, impedindo que o mesmo encontre o óvulo.

Contudo, apesar de difícil, a fecundação pode ocorrer, e nesse caso, o uso DIU não permitirá a fixação do óvulo fecundado na parede uterina, condição indispensável ao desenvolvimento do óvulo. Nessa situação, onde a mulher engravida usando o DIU, devido à grande concentração de hormônios ou metais no útero, o óvulo não se fixa na parede uterina, desenvolvendo-se nas trompas. Esse tipo de gravidez é considerada pela medicina como de alto risco. E a probabilidade de o óvulo fecundado vir a ser inutilizado é muito grande, face à ação do DIU. No caso do DIU, bem como no caso da pílula póscoital, a legislação brasileira não veda a sua utilização.

Pois, partindo-se de todos os posicionamentos acima, é de se notar que a teoria da concepção não é a adotada no país, embora o Código Civil aponte que a personalidade civil da pessoa natural comece a partir do nascimento com vida (esse ponto será tratado em tópico oportuo). Para o Código Penal, por exemplo, o ser humano só assim o é considerado a partir da nidação, que vem a ser a fixação do embrião no útero. 

2.2  – Teoria da nidação              

 Para a teoria da nidação, a vida tem início quando o óvulo fecundado se prende à parede do útero materno, tendo, desta forma, condições para se desenvolver de maneira satisfatória.

A nidação ocorre entre o 5º e o 15º dia de gestação, e é talvez o momento mais crucial para a viabilidade do ovo ou zigoto. Durante o deslocamento do óvulo fecundado da trompa até a parede uterina, o óvulo sofre grande multiplicação celular, o que pode fazer com que o organismo da gestante o reconheça como um corpo estranho e, consequentemente, expulseo do organismo[11]. Pesquisas médicas indicam que apenas 1 em cada 3 óvulos fecundados consegue fixar-se no útero.

De acordo com seus fundamentos, a teoria da nidação justifica o uso da pílula pós-coital como método realmente contraceptivo, coisa que, como demonstrado anteriormente, não acontece com a teoria da fecundação. Melhor explicando, como na teoria da nidação a vida só teria início a partir do momento em que o óvulo se fixa na parede uterina, a pílula pós-coital não seria considerada abortiva, já que sua ação ocorre antes da fixação, ou até mesmo impedindo essa fixação do óvulo no útero. A pílula pós-coital tem efeito até 72 horas após a fecundação do óvulo, e a nidação, como já dito, ocorre entre o 5º e o 15º dia de gestação.

Essa teoria é defendida por grande parte dos ginecologistas, sob o argumento de que, caso o embrião fertilizado não chegar a ser implantado no útero, não poderá ter desenvolvimento. O maior nome da pesquisa genética no Brasil, Dra. Mayana Zatz, defende que não há vida se o óvulo não se fixar no útero. Isso vale tanto para a fertilização natural como para a artificial, ou fertilização in vitro. Portanto, como os óvulos fertilizados e não implantados no útero não teriam condição de se desenvolverem, não teriam, assim, condição humana, não podendo ser tutelados pelo direito como se assim o fossem.

Outro argumento a favor da teoria da nidação é o fenômeno da gravidez gemelar. Nas palavras de Ângela Mara Piekarski Ribas, em seu artigo intitulado Direito à Vida sob uma ótica contemporânea, publicado no sítio eletrônico Âmbito Jurídico:

O argumento científico que dá base à teoria da nidação é a segmentação do indivíduo, que consiste no fato de os gêmeos monozigóticos, que possuem o mesmo código genético, separaremse no momento da implantação do zigoto no útero, ou ao menos, obrigatoriamente, antes que se finde a nidação. Desse modo, só se poderia cogitar de um ser humano quando presente a característica da unicidade e, até que se ultrapassasse essa fase de segmentação, não haveria como reconhecer ambos os seres como uma pessoa.

De fato, um dos fatores que dá ao ser humano sua condição humana é a individualidade. Se se considerar que a vida teria início, por exemplo, na fecundação, os gêmeos univitelinos seriam duas pessoas detentoras de uma única vida, já que a duplicação do óvulo fertilizado ocorre, por óbvio, depois da fertilização. 

Seguindo no pensamento de Ângela Maria Piekarski,

Para fins de cometimento do aborto, a vida intrauterina se inicia com a fecundação ou constituição do ovo ou zigoto, ou seja, a concepção. Entretanto, tendo-se em vista a ausência de proibição de comercialização, no país, do DIU e das pílulas anticoncepcionais do "dia seguinte", que impedem a implantação do zigoto no útero, devese aceitar, para fins penais, sob pena de considerar tais práticas como abortivas, o posicionamento de que a vida se inicia com a implantação do ovo no útero materno (nidação).

A teoria da nidação parece ser mais aceita no âmbito científico do que a teoria da concepção. E no campo do Direito, conforme se verá adiante, principalmente no âmbito penal, a teoria da nidação é também mais aceita do que a teoria concepcionista. Claro, há divergências quanto a isso, mas o posicionamento majoritário da doutrina é no sentido da teoria da nidação.

2.3  – Teoria da atividade neural

Conhecida também como teoria da formação rudimentar, essa teoria sustenta, basicamente, a ideia de que a vida humana se inicia no momento em que tem início a atividade neural. Assim, no momento em que a crista neural se faz presente no feto, e junto com ela as primeiras sinapses, terminações e atividade neurológica, ali está começando a vida.

Neste sentido, tanto a Medicina quanto o Direito reconhecem de forma pacifica que o fim da vida se dá com o término das atividades neurais. Então, de forma análoga, é possível conceber o início da vida com o surgimento das atividades neurais, pondo um fim nas discussões jurídicas a cerca do início da vida. 

Contudo, um dos problemas dessa teoria é que os estudiosos do tema não chegaram a um consenso de quando, de fato, a atividade neural tem seu início. Alguns defendem que ela começa na 8ª semana de gestação, outros defendem que somente na 20ª semana de gestação.

Embora não haja esse consenso, essa teoria poderia facilmente ser adotada, bastando, para tanto, que uma possível lei que regulamente o aborto trate do tema o aborde sem cravar uma data específica.

Explicando melhor: há quem defenda que a atividade cerebral tem início na 8ª semana de gestação. Para afirmar tal fato, de que a atividade neural se inicia na 8ª semana de gestação, só se pode fazê-lo mediante análises, experimentos e exames. E do outro lado, do lado daqueles que afirmam que a atividade neural tem início lá pela 20ª semana de gestação, também o fazem pelos mesmos meios, embora, provavelmente, por exames ou critérios diferentes. Assim sendo, bastaria que uma possível legislação atinente ao tema condicionasse a existência de atividade neural à exame comprobatório, onde cada caso seria único, como de fato o é. O legislador deveria, desse modo, de acordo com a teoria em questão, vincular a o início da vida, e consequentemente a prática abortiva, a exame clínico que comprovasse a existência de atividade neural. Isso, é claro, se o legislador não preferir adotar um meio termo, um período entre a 8ª e a 20ª semanas, o que seria mais viável tanto prático quando economicamente.

Infelizmente, nas pesquisas e estudos para a realização desse trabalho, não foi possível encontrar uma fonte que informasse que exame ou procedimento clínico é utilizado para aferir, diretamente, a existência ou ausência de atividade neural num feto logo em suas primeiras semanas. Há exames mais comuns que podem atestar, indiretamente, a existência de atividade neural no feto, como é o caso da ultrassonografia, que pode detectar toda a movimentação, atividade cardíaca e formação do feto.

Contudo, como exposto acima, as afirmações de que a atividade neural se inicia na 8ª ou na 20ª semana de gestação são pautadas em exames comprobatórios, pois tais não podem ser pautadas em “achismos”. No Direito pátrio, mais recentemente, essa teoria foi usada como corolário para julgamento da ADPF 54, que julgou a possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencéfalos, e será tratada a seguir em tópico específico. Além da referida ADPF, o Supremo Tribunal também usou do mesmo raciocínio no julgamento da ADI 3510, sobre a constitucionalidade do art. 5º da lei de biossegurança. É pacífico, portanto, naquela mais alta Corte do judiciário brasileiro, a posição de que a vida se inicia juntamente com as atividades neurais.

2.4  – Teoria natalista

 Essa teoria diz que somente há vida após o parto, e que necessariamente o nascido precisa apresentar sinais vitais, como choro ou movimentos próprios, e o mais peculiar de todos os sinais, a respiração. Simples assim. Só é vivo aquele que tem sinais vitais fora do organismo materno. Sem tais sinais, o indivíduo é apenas um natimorto.

Tal teoria foi bastante aceita na antiguidade, onde não se cogitava falar em vida intrauterina. Só era vivo aquele já parido pela mãe.

Atualmente, essa teoria não é mais aceita no que concerne ao início da vida humana, já que a ciência aponta como vivo aquele que ainda está no ventre materno. Além disso, o Direito também já conhece o feto como ser humano, atribuindo-lhe proteção jurídica. O Direito atual está pautado na dignidade humana e reconhece a humanidade no feto.

Contudo, essa teoria é aceita no tocante à personalidade jurídica da pessoa, e isso será abordado em tópico pertinente. 

Sobre o autor
Stefano da Silva Rios

Bacharel em direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIOS, Stefano Silva. A indefinição jurídica sobre o início da vida humana:: desinteresse legislativo versus aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4288, 29 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37481. Acesso em: 23 dez. 2024.

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