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A indefinição jurídica sobre o início da vida humana:

desinteresse legislativo versus aborto

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Agenda 29/03/2015 às 09:15

Capítulo II

3  - A legislação brasileira sobre o tema

 De fato, a legislação pátria não tem uma definição legal de quando se inicia a vida humana. Não há definição temporal ou critério clínico, nada. Mas alguns diplomas legais dão conceitos ou ideias que podem levar a um ou outro raciocínio sobre o início da vida.

 O Código Civil, por exemplo, faz um misto entre a teoria da concepção e a teoria natalista. O Código Penal dá pistas de adotar a teoria da nidação. Já a Lei 9.434/97, que regula os procedimentos para o transplante de órgãos, apesar de não definir a vida, define a morte, e ao fazer isso adota a teoria da atividade neural. E nesse sentido também é o julgamento da ADPF 54, onde o Supremo Tribunal Federal decidiu pela possibilidade do aborto de fetos anencéfalos. Toda essa legislação e posicionamentos serão tratados a seguir.             

3.1  – Código Civil              

O Código Civil, em seu art. 2º, dispõe apenas que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Se se for analisar friamente a parte final do referido artigo, poder-se-ia dizer que o Código Civil brasileiro adotou a teoria da fecundação, teoria essa já explicada em tópico anterior. Quando o artigo diz “desde a concepção”, notadamente está assumindo que a vida humana tem início desde o momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozoide. Mas o referido artigo 2º trata da personalidade civil, e não da vida. E, mesmo a capacidade civil estando visceralmente ligada à vida, ambas não se confundem.             

3.1.1  – Vida e personalidade civil

Embora a lei ponha a salvo os direitos do nascituro desde a concepção, esses direitos não poderão, de fato, serem gozados se o nascituro não nascer com vida. Parece algo redundante e confuso, mas não.

A personalidade civil da é uma criação do Direito para que o indivíduo seja considerado pessoa e, portanto, tenha direitos e obrigações. Tal atributo tem início diante do nascimento com vida, fato que pode ser comprovado, dentre outros meios, através da respiração. A personalidade civil perdura por toda a vida e somente se extingue com a morte. Até o nascimento com vida, o nascituro é detentor de o que se chama expectativa de direitos.

Assim, ao dispor o Código que a capacidade civil se inicia com o nascimento com vida, não se está negando a existência da vida intrauterina de um feto ou mesmo diminuindo-lhe o valor, de forma alguma. Vida é uma coisa e capacidade civil é outra.

Da mesma forma que o início da vida, o início da personalidade jurídica também é alvo de teorias, sendo duas basicamente, a teoria natalista e a teoria concepcionista. Do mesmo modo, há quem defenda que a personalidade jurídica comece já na concepção, que são uma minoria, como é o caso de Rubens Limongi França, Francisco Amaral, Renan Lotufo e Maria Helena Diniz. Do outro lado, há os que defendem que a personalidade jurídica se inicia com o nascimento com vida, é o caso de Silvio Rodrigues, San Tiago Dantas, Caio Mario da Silva Pereira e Sílvio de Salvo Venosa.

A doutrina é pacífica, embora não unânime, em asseverar que a capacidade civil se adquire com o nascimento com vida, assumindo desse modo a teoria natalista no que concerne à capacidade civil.

Há quem argumente que a Lei de Biossegurança (11.105/2005), ao dispor que só é permitida, nos estudos científicos, a utilização de embriões inviáveis, estaria conferindo personalidade jurídica ao embrião viável, protegendo-lhe. Isso é um erro, e será debatido aqui em tópico próprio.

Analisando o tema, no art. 4º do Código Civil Brasileiro de 1916, que teve sua redação mantida no art. 2º do código atual, assim aponta João Luiz Alves (1917, p.25):

(...) é preciso reconhecer que, subordinada à cláusula do nascimento com vida, a personalidade desde a concepção não terá outra significação que não seja a de criar, como na teoria do código, uma expectativa de direito. Que importa fazer que o ente apenas concebido tem personalidade, se, mais tarde, nascendo sem vida, não adquiriu direitos? A importância da controvérsia está na solução a dar em caso de sucessão. Não tem, pois, alcance prático a fixação do início da personalidade no ato da concepção. Os efeitos jurídicos surgem no ato do nascimento, com ou sem vida: no primeiro caso, opera-se a aquisição de direitos, que se transmitem pela morte posterior do recém-nascido; no segundo caso, nenhum direito se adquire. Para que dar lhe então existência de direito, a que a própria lei só assegura efeitos após o nascimento? Bem andou, portanto o código em fixar o início da personalidade humana no ato do nascimento com vida.

Determinar se o nascimento de uma criança deu-se ou não com vida pode ser um fato essencial para o direito sucessório. Contudo, como anotado pelo brilhante jurista João Luiz Alves, será que é realmente necessário resguardar direitos ao nascituro, se a ele não são dados os efeitos antes do nascimento com vida? É uma questão a ser pensar, pois, na facticidade, o nascimento com vida é condição sine qua non para que os efeitos de qualquer direito recaiam sobre a pessoa, que só assim pode ser denominada, juridicamente, quando adquiri personalidade jurídica. Embora a lei preveja casos em que o nascituro seja sujeito de direitos, como a tutela e a herança, ele ainda não é pessoa, na acepção jurídica da palavra.

Atualmente o Direito vive uma fase de humanização, onde toda e qualquer forma de se tutelar direitos, principalmente os de caráter íntimo e personalíssimo, é válida e bem-vinda. E não seria diferente no caso do nascituro. É pacífico o pensamento de que a vida intrauterina deve ser resguardada e os direitos daquele ser humano que ainda está por nascer têm de ser garantidos.

Fazendo uma analogia, a proteção jurídica aos direitos do nascituro funciona, a grosso modo, como uma cautelar, que visa a garantir resultados futuros caso o nascituro venha de fato a nascer.

Caso o recém-nascido tenha, aparentemente, sido natimorto, há formas de se provar se ele realmente veio a ter vida extrauterina. O método mais utilizado é a análise do sistema respiratório, mais precisamente os pulmões.

Alguns dos exames mais utilizados são a Docimasia Hidrostática de Galeno e a Docimasia Histológica[12]. Na Docimasia Hidrostática, basicamente, o pulmão é retirado do recém-nascido e colocado em recipiente com água. Naturalmente, o pulmão do recém-nascido é mais denso que a água. Contudo, o pulmão que chegou a respirar vai sobrenadar no recipiente com água em virtude do ar encontrado nos alvéolos pulmonares, enquanto aquele pulmão que não respirou descerá ao fundo. Já a Docimasia Histológica consiste na análise microscópica do pulmão do recém-nascido. O pulmão que chegou a respirar tem aspecto semelhante à de um pulmão adulto, com alvéolos dilatados e sangue nos vasos capilares, enquanto que o pulmão que não respirou tem aspecto de pulmão fetal, sem cavidades alveolares.

Frise-se que nesse tópico, especificamente, está-se tratando da personalidade jurídica. Cá não se está a discutir sobre a existência ou não da vida propriamente dita, mas tão apenas o momento que em o sujeito se torna vivo para os efeitos civis, ou seja, quando ele adquire a personalidade jurídica.

3.2  – A vida intrauterina e o Código Penal

 Como visto no tópico anterior, no direito civil, talvez a maior ponto de aplicabilidade para uma definição jurídica do início da vida humana seja no que tange ao direito das sucessões. Neste tópico, entra-se no ramo do Direito onde a vida é o bem jurídico maior, o ramo do Direito onde a vida encontra a sua tutela máxima, que é o direito penal. É aqui onde se encontram tipificados os crimes de homicídio, infanticídio e o aborto, todos protegendo a vida humana.  Para não fugir ao tema proposto por esse trabalho, analisar-se-á apenas o crime de aborto, que tem como principal condição a vida intrauterina.

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 Diferentemente do que se viu no tópico abordando o direito civil, onde a vida jurídica propriamente dita se inicia com o início da personalidade jurídica, portanto após o nascimento com vida, o direito penal tutela de forma clara a vida intrauterina. Assim, por óbvio, não é preciso que a indivíduo seja nascido para que as abas do direito penal lhe protejam. Dentro do ventre materno ele já possui proteção.

 Começando pela acepção da palavra aborto. A palavra aborto vem do latim abortus, que, por sua vez, deriva do termo aborior. Este conceito é usado para fazer referência ao oposto de orior, isto é, o contrário de nascer. Como tal, na medicina, o aborto é a interrupção do desenvolvimento do feto durante a gravidez, desde que a gestação ainda não tenha chegado às vinte semanas. Após a 20ª semana, a interrupção da gravidez antes do seu ciclo completo tem o nome de parto prematuro. A medicina faz uma diferenciação entre os termos aborto e abortamento. Para a Medicina, abortamento é o processo de perda do produto conceptual, enquanto que aborto é o próprio produto da do abortamento, incluídos aí o feto, a placenta, cordão umbilical e todo o produto oriundo da concepção.

 A leitura da definição da palavra aborto acima descrita, contudo, não é totalmente correta no campo jurídico, levando-se em consideração a sua parte final. A definição referida diz respeito tão somente ao aborto natural. Para fins de delito penalmente punível, o aborto deve ser provocado (tanto por terceiro quanto pela própria gestante, com ou sem consentimento desta), e para isso, não importa se o aborto ocorreu antes ou depois da 20ª semana. Em qualquer tempo, juridicamente falando, a interrupção da gravidez provocada é aborto, não tendo de se falar em parto prematuro. Nesse sentido, lecionam os legistas

Coelho e Jarjura (2008, p. 144-154) que “aborto é a interrupção da prenhes, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja o seu estado evolutivo, desde a concepção até o parto.”.

 Continuando, a definição, tanto morfológica quanto legal, a palavra aborto traz que aborto pressupõe vida, vida essa intrauterina. Mas essa vida deve ser, no rigor da palavra, intrauterina? Melhor dizendo, o óvulo fecundado que se encontra, por exemplo, ainda nas trompas de falópio ou o óvulo fecundado fora do corpo da mãe, como na fertilização in vitro, estaria acobertado pelo direito penal ou apenas o óvulo/zigoto já fixado na parede uterina, e, portanto, intrauterino?

 O Código Penal, na redação do artigo 124, traz que aborto consiste em “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque.”. Como visto, o texto legal não faz qualquer diferenciação entre o óvulo que apenas foi fecundado e o óvulo já fixado na parede uterina.

 Na doutrina, há autores que defendem que o a tipicidade do crime de aborto está necessariamente ligada ao óvulo/zigoto já fixado no útero materno e, portanto, com potencial de desenvolvimento viável.

Para o professor Damásio de Jesus (2007, p.430), expoente brasileiro no direito penal, aborto “É a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto.” (2007, p.430). Essa explicação é bastante simples e é a conceituação predominante na doutrina (claro, com as firulas de cada autor). A definição dada pelo ilustre jurista não faz nenhuma menção à condição do óvulo estar ou não fixado no útero.

Já Heleno Cláudio Fragoso (1981, p.116), ensina que aborto seria "pois, a interrupção do processo fisiológico da gravidez desde a implantação do ovo no útero materno até o início do parto.". (grifo nosso)

 Fernando Capez (2008, p.124), ao falar sobre o feto que veio a nascer, mas logo em seguida vem a óbito em virtude das práticas abortivas, diz que "embora o resultado morte tenha se produzido após o nascimento, a agressão foi dirigida contra a vida humana intrauterina, com violação desse bem jurídico.". (grifo)

 Na mesma esteia de Fragoso e Capez, Rogério Greco (2009, p. 247) assevera que:

 A vida tem início a partir da concepção ou fecundação, isto é, desde o momento em que o óvulo feminino é fecundado pelo espermatozoide masculino. Contudo, para fins de proteção por intermédio da lei penal, a vida só terá relevância após a nidação, que diz respeito à implantação do óvulo já fecundado no útero materno, o que ocorre 14 dias após a fecundação. Assim, enquanto não houver nidação não haverá possibilidade de proteção a ser realizada por meio da lei penal. Temos a nidação como termo inicial para a proteção da vida, por intermédio do tipo penal do aborto. Portanto, uma vez implantado o ovo no útero materno, qualquer comportamento dirigido finalisticamente no sentido de interromper a gravidez, pelo menos à primeira vista, será considerado aborto (consumado ou tentado). Se a vida, para fins de proteção pelo tipo penal que prevê o delito de aborto, tem início a partir da nidação, o termo ad quem para esta específica proteção se encerra com o início do parto. (grifo)             

Como se nota, embora haja divergência de posicionamento entre autores, o que é corriqueiro, a doutrina majoritária entende que para se falar em aborto é necessário que o óvulo já esteja fixado na parede uterina. Assim, o óvulo fecundado, mas que ainda se encontra nas trompas, não faz jus à proteção do código penal no que concerne ao aborto.

 Veja-se o caso da pílula pós-coital e do DIU, tratados anteriormente, onde não há criminalização alguma sobre o uso desses métodos contraceptivos. Ambos os métodos podem agir de maneira a não permitir a fixação do óvulo fecundado no útero materno. Se não há vedação à utilização desses métodos, claro está que a legislação penal brasileira é adepta da teoria da nidação a respeito do início da vida humana. Se não se pune os artifícios que impedem de fixação do óvulo fecundado na parede uterina, e o aborto é a criminalização de qualquer método ou maneira que venha há ceifar a vida intrauterina, logo o crime de aborto só pode ocorrer a partir da nidação.

 Há também o caso da gestação ectópica, conhecida também como gestação tubária, onde a gravidez se desenvolve na trompa e não no útero, em virtude de anomalias, inflamações uterinas ou o uso de determinados medicamentos. Nesse tipo de gestação, a viabilidade do feto é quase nula e, em contrapartida, as complicações para a gestante são altas, ocorrendo sangramentos vaginais intensos por conta da ruptura dos tecidos tubários. O normal é que esse tipo de gestação nem venha a se desenvolver e a mulher nem saiba que está/esteve gestante, pois a gravidez costuma morrer e é absorvida pelo organismo. Contudo, essa gravidez pode vir a persistir, e nesse caso, necessário se faz uma cirurgia abdominal para remover a gravidez. Como visto, é uma situação deveras perigosa para a mulher. Nesses casos, onde há necessidade de uma cirurgia para retirar o embrião, está-se diante de um aborto terapêutico, caso o embrião esteja vivo, pois se morto estiver, não há de se falar em aborto. O aborto terapêutico, ou aborto necessário, é uma das modalidades de aborto não puníveis pelo Código Penal, e está expresso em seu art.128. Nos casos em que há risco à vida ou à saúde da gestante, pode-se fazer o aborto em embrião/feto.

3.3  – O conceito de morte da Lei nº 9.434/97 e a ADPF 54

Em 1997, após aprovação no Congresso Nacional, entrou em vigor a Lei nº 9.434/97, conhecida com Lei de Doação de Órgãos. A referida lei legisla sobre a remoção e doação de órgãos e tecidos humanos.

Repetindo-se o que aqui já foi bastante dito, não há definição legal do momento em que se inicia a vida humana, contudo é de se trazer à baila o outro lado, o antônimo, a face contrária à vida, ou seja, a morte. E para esse fato, a morte, o ordenamento jurídico pátrio tem uma definição legal, e encontra-se na lei em comento. 

Em seu artigo 3º, dispõe a lei 9.434/97 que “A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.” (grifo)

Como pode ser observado da leitura do art.3º acima transcrito, a doação post mortem de órgãos e tecidos deve ser precedida de laudo que constate a morte encefálica do doador, laudo esse registrado por dois médicos não participantes da equipe de remoção e transplante, e seguindo critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

A resolução de que trata o art.3º é a resolução CFM nº 1.480/97, que já em suas considerações iniciais traz: “CONSIDERANDO que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela comunidade científica mundial;”. (grifo)

O legislador, ao adotar que a doação de órgãos post mortem deve ser feita mediante laudo que comprove a morte encefálica do doador, considerou que não há vida sem atividade cerebral, e esse é justamente o conceito trazido pela teoria da atividade neural, já abordado anteriormente.

Além do legislador, o Conselho Federal de Medicina, segundo critérios pacíficos na comunidade médica mundial, considera que a parada das funções encefálicas equivale à morte, corroborando com a ideia de que sem atividade cerebral não há que se falar em vida.

 Para se constatar a morte cerebral, de acordo com a Resolução do CFM, devem ser observados parâmetros clínicos, quais sejam o coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apneia. Além disso, devem ser feitos exames complementares para constatação de morte encefálica, que devem demonstrar de forma inequívoca ausência de atividade elétrica cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral.

Apesar de opiniões contrárias, a teoria mais lógica de definição do início da vida humana é a teoria da atividade neural, tendo-se como base a definição que a lei brasileira dá à morte. Se se tem que o fim da vida, ou seja, a morte, ocorre com o fim da atividade cerebral, o mais racional e lógico que se pode concluir é que o início da vida ocorre quando se inicia a atividade neural.

Na mesma esteia do conceito de morte apresentado pela Lei nº 9.434/97, é o julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal, ocorrido em 2012. Em tal julgamento, o STF decidiu por liberar as gestantes de fetos anencélos a interromperem a gestação, se assim o quiserem, sem estarem cometendo o fato típico criminalmente punível do aborto.

Anencefalia é uma má formação congênita que faz com que o embrião não desenvolva a caixa craniana, e logicamente o cérebro, ou, quando há algo que se assemelhe ao cérebro, é totalmente desorganizado e não cumpre as funções básicas que um indivíduo precisa. 

O Ilustre Ministro Carlos Ayres Britto, uma das mais brilhantes mentes jurídicas desse país, assim diz em seu voto na referida ADPF: 

A segunda intelecção é mais discursivamente sutil:  inexiste o crime de aborto naquelas específicas situações de voluntária interrupção de uma gravidez que tenha por objeto um “natimorto cerebral”. Um ser padecente de “inviabilidade vital” (expressões figurantes da mesma resolução nº 1.752/04, do Conselho Federal de Medicina, ali empregadas no plural para os casos de anencefalia fetal). Quero dizer: o crime deixa de existir se o deliberado desfazimento da gestação não é impeditivo da transformação de algo em alguém. Se o produto da concepção não se traduzir em um ser a meio caminho do humano, mas, isto sim, em um ser que de alguma forma parou a meio ciclo do humano. (...) Uma crisálida que jamais, em tempo algum, chegará ao estádio de borboleta. O que já importa proclamar que se a gravidez “é destinada ao nada” sua voluntária interrupção é penalmente atípica.

 Em toda a extensão do seu voto, Ayres Britto é enfático ao se posicionar que não existindo atividade cerebral não há de se falar em existência de vida. Sustenta o Ministro que a interrupção terapêutica da gestação de feto anencéfalo é fato típico, mas não configura uma prática punível. Para tanto, utiliza o exemplo das duas excludentes de ilicitude previstas no Código Penal, quais sejam a gravidez resultante de estupro e a gravidez que põe em risco a saúde da gestante, que visam proteger a saúde mental e física da gestante, respectivamente. Na acertada visão do Ministro, a interrupção da gestação de um feto anencéfalo visa proteger a integridade psíquica e física da gestante. Mental porque, da mesma forma que uma gestação resultante de estupro, obrigar uma mulher a prosseguir com a gestação de um feto anencefálico só geraria trauma e dor, pois aquela mulher está carregando em seu ventre a morte e não a vida. Física porque a gestação de feto anencéfalo é extremamente perigosa para a gestante. Como bem alerta o Doutor Thomaz Gollop, médico  e professor de Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, em entrevista ao Doutor Drauzio Varella[13], o líquido da bolsa das águas tem um sistema extremamente dinâmico, sendo formado pela urina do feto e consumido pela deglutição também do feto. O feto anencéfalo praticamente não deglute líquido nenhum, pois tem menos reflexo que um feto normal, fazendo com que o líquido vá se acumulando dentro do útero, distendendo-o excessivamente. Além disso, o fenômeno físico do parte exige um crânio, coisa que o anencéfalo não possui, pois sem o crânio o feto fica em uma posição anômala, geralmente sentado, o que dificulta o parte. Também os ombros do feto anencéfalo são maiores que o normal, embora ainda não se saiba o motivo de tal fato. Juntando-se esses fatores, o útero da mulher pode não se contrair posteriormente, levando a uma série de hemorragias.  Diante do exposto, resta evidente que tanto a Lei 9.434/97 quanto o STF, em julgamento da ADPF 54, estão de acordo com a teoria da atividade neural.

3.4  - Afinal, por que não há legislação?

 Como pôde ser observado até aqui, a legislação brasileira é bastante confusa no que concerne à definição jurídica do início da vida humana. Tem-se legislação adotando desde a teoria concepcionista, como é o caso do Código Civil, passando pelo Código Penal e a teoria da nidação, chegando até a Lei 9.434/97 e a teoria da atividade neural. E, dentre os problemas que essa desuniformização pode gerar, o maior deles talvez seja a insegurança jurídica. Um tema tão importante sobre o qual não há legislação, não há súmulas, enfim, sem dúvida pode gerar tremenda insegurança.

 Mas por que motivo será que tal definição nunca foi feita pelo legislativo brasileiro? Falta de base científica? Ideologia? Estratégia política? Nesse tópico, o presente trabalho tentará analisar os possíveis motivos da não definição legislativa do início da vida humana no Brasil.

 Para começar, traz-se a baila a composição da população brasileira atualmente. Segundo dados do último censo realizado, no ano de 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, a população evangélica no Brasil saltou de 6% no ano 2000 para 22% em 2010. Isso significa um crescimento assombroso em tão curto período de tempo. A continuar nessa toada, o Brasil deixará de ser um país notadamente católico para se tornar um país evangélico muito em breve. Mas ainda assim, o Brasil ainda é o maior país católico do mundo, com 123,3 milhões, cerca de 64,6% da população, de acordo dados do censo.

 Bem, sabe-se que os dogmas religiosos, em sua maioria esmagadora, são definitivamente contra a prática do aborto, e isso não é diferente na religião católica ou nas diversas igrejas evangélicas. Um parlamentar que ousasse elaborar um projeto de lei que visasse definir o momento do início da vida humana, e também sobre a legalização do aborto, estaria fadado a desagradar parcelas importantes de sociedade, e isso não seria interessante politicamente.  Melhor explicando, suponha-se que um parlamentar elabore um projeto de lei que determine que o início da vida humana se dá no momento da nidação, por exemplo. Como bem explicado anteriormente, tanto a Igreja Católica quanto as evangélicas defendem que a vida se inicia no exato momento da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, ou seja, o parlamentar autor do suposto projeto lei estaria desagradando uma enorme parcela da população brasileira e, assim sendo, deixaria de receber vultuosa quantidade de votos na eleição seguinte. E se a suposta lei definir como o momento inicial da vida o instante da fecundação? Novamente estaria desagradando outra parcela da população, a parcela que entende não estar ao alcance do homem definir tal fato, e nessa parcela inserem-se tanto católicos quanto evangélicos ou pessoas sem religião, não em sua totalidade, óbvio. Fato é que parlamentar nenhum teria interesse em tomar frente em empreitada tão cheia de riscos políticos, seja por convicção própria ou, principalmente, interesse político.  Além da ser politicamente arriscado, outro fator que dificulta a definição jurídica do início da vida humana é a divergência que a ciência tem sobre o fato. Todas as teorias apresentadas anteriormente tem seus fundamentos e podem muito bem ser adotadas, contudo, a verdade é que não há um pensamento uno sobre o tema e isso acaba emperrando o Direito quando se fala em legislação sobre o início da vida humana, isso se o que se pretenda for uma definição biológica.

 Pois bem, base científica para se definir juridicamente o início da vida humana existe, embora não seja pacífica. Quaisquer das teorias apresentadas no início desse trabalho, bem como algumas outras existentes, podem servir, contanto, é claro, que tenham fundamento científico. Mas será que é realmente necessário uma determinação da biologia do momento em que se inicia a vida humana para que, por exemplo, o aborto seja autorizado?

 Quando se reflete sobre o bem jurídico vida, tudo leva a crer que esse bem é absoluto, não podendo ser atacado de forma alguma sem que sanções sejam impostas. Nem tanto. O próprio ordenamento jurídico brasileiro dá oportunidades em que o bem jurídico vida pode ser sacrificado, seja em detrimento de outra vida ou não. A legítima defesa e o estado de necessidade são exemplos de que uma vida pode ser ceifada sem maiores prejuízos punitivos ao agente do fato, bem como a pena de morte em caso de guerra declarada a inimigo estrangeiro, onde a ordem e a segurança pública estão colocados acima da vida, ou mesmo no caso de interrupção de gestação decorrente de estupro, onde a saúde mental da mãe prevalece em detrimento da vida do feto.

 O que esses exemplos mostram é que o bem jurídico vida não é absoluto, pois se fosse, nenhum dos exemplos acima seria possível. E não sendo o bem jurídico vida absoluto, a interrupção da gestação poderia muito bem acontecer mesmo que o feto tenha vida, bastando para isso que se queira (entenda-se por "se queira" como sendo a vontade do legislador), que se opte, como nos casos acima citados. E, novamente, volta-se ao fato de que nenhum legislador quer assumir tal risco.

 Ocorre que se tem a falsa impressão de que o início da vida, juridicamente, depende de uma posição da biologia, e isso não é correto. Melhor dizendo, vida biológica e vida jurídica são conceitos diferentes. O problema reside em se buscar a vida jurídica pela vida biológica. Não que seja errado buscar essa harmonia (e até seria o ideal), mas é que a vida biológica é só mais um critério, e não necessariamente o mais acertado e nem o único possível, para se definir a vida jurídica. E seja como for, a adoção do critério biológico é, por si só, uma escolha política, e não biológica. As descobertas biológicas só têm valor jurídico se uma decisão política atribuir esse valor a elas. A biologia não tem valor jurídico por si mesma, é necessário que o mundo do Direito assim o queira.

Sobre o autor
Stefano da Silva Rios

Bacharel em direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIOS, Stefano Silva. A indefinição jurídica sobre o início da vida humana:: desinteresse legislativo versus aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4288, 29 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37481. Acesso em: 22 nov. 2024.

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