EMENTA: 1- O crime de aborto versus a majorante do feminicídio cometido durante a gestação. 2- Princípio da responsabilidade subjetiva. 3- O princípio do ne bis in idem. 4- Casos práticos que atestam a impossibilidade jurídica de aplicar a majorante da primeira parte do artigo 121, § 7º, inciso I, do Código Penal.
Segundo dispõe a primeira parte do artigo 121, § 7º, inciso I, do Código Penal, quando o homicídio é cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, “durante a gestação”, a pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade.
Entendemos que a supracitada majorante não tem a mínima possibilidade de ser aplicada no direito penal por dois motivos:
Primeiro: princípio da responsabilidade subjetiva.
Inexiste no Direito Penal a tenebrosa responsabilidade objetiva, pela qual o agente ativo responde, independentemente de ter agido com culpa ou dolo. A responsabilidade é subjetiva, isto é, deve-se sempre averiguar se o agente agiu com dolo ou culpa. Se a resposta for negativa, o fato é atípico.
STF: O sistema jurídico penal brasileiro não admite imputação por responsabilidade penal objetiva. (STF - Inq. 1.578-4-SP)
STJ: (...) inexiste em nosso sistema responsabilidade penal objetiva. (STJ HC 8.312-SP – 6ª T 4.3.99 – p. 231)
Não sendo possível o estabelecimento de uma responsabilidade penal objetiva, a majorante do artigo 121, § 7º, inciso I (primeira parte), do Código Penal (durante a gestação) só pode ser aplicada se a mesma ingressou na esfera de conhecimento do autor do feminicídio. Ou seja, o autor sabia (dolo direto) ou tinha condições de saber (dolo eventual) que a mulher estava grávida.
Segundo: o princípio do ne bis in idem.
O princípio possui duplo significado:
1º Processual: ninguém pode ser processado e julgado duas vezes pelo mesmo fato.
2º Penal material: ninguém pode sofrer duas penas em face do mesmo crime.
Neste sentido, não é possível, ao praticar o feminicídio, o agente ativo incidir em homicídio qualificado majorado e, também, no crime de aborto, pois, ao matar ou ao tentar matar uma mulher grávida, pagaria duas vezes, pela majorante e pelo crime de aborto.
Assim, considerando que o autor do feminicídio conhecia a gravidez da vítima, teremos, no contexto, prático as hipóteses a seguir delineadas.
Caso forense prático nº 01:
Tício, por mera discussão na convivência familiar, atira em Tícia. Por circunstâncias alheias à vontade do agente, Tícia e o feto sobrevivem.
Solução jurídica: Tício deverá responder pela tentativa de homicídio qualificado pelo feminicídio (art. 121, § 2º, inciso VI, c.c artigo 14, inc. II, do CP) e pela tentativa de aborto sem o consentimento da gestante (artigo 125 do CP, c.c. art. 14, II, do CP) em concurso formal (artigo 70 do CP).
Caso forense prático nº 02:
Tício, por mero menosprezo à condição de mulher, atira em Tícia. A mulher e o feto morrem.
Solução jurídica: Tício deverá responder por homicídio consumado qualificado pelo feminicídio (art. 121, § 2º, inciso VI do CP) e pelo de aborto consumado sem o consentimento da gestante (artigo 125 do CP), em concurso formal (artigo 70 do CP).
Caso forense prático nº 03:
Tício, por mera discussão na convivência doméstica atira em Tícia. A mulher morre e o feto sobrevive.
Solução jurídica: Tício deverá responder homicídio consumado qualificado pelo feminicídio (art. 121, § 2º, inciso VI do CP) e pela tentativa de aborto sem o consentimento da gestante (artigo 125 do CP) em concurso formal (artigo 70 do CP).
Caso forense prático nº 04:
Tício, por mera discriminação à condição de mulher, atira em Tícia. A mulher sobrevive e o feto morre.
Solução jurídica: Tício deverá responder por tentativa de homicídio qualificado pelo feminicídio (art. 121, § 2º, inciso VI, c.c artigo 14, inc. II, do CP) e pelo aborto consumado sem o consentimento da gestante (artigo 125 do CP) em concurso formal (artigo 70 do CP).
Observe que em nenhuma das hipóteses supracitadas é juridicamente possível aplicar a majorante da primeira parte do artigo 121, § 7º, inciso I, do Código Penal (quando o homicídio é cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, durante a gestação).
Concluímos que só a segunda parte do artigo 121, § 7º, inciso I, do Código Penal (quando o homicídio é cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, nos 3 (três) meses posteriores ao parto) terá a pena majorada em 1/3 (um terço) até a metade.