A par do que se expõe na redação do artigo 26 do Código Penal em vigência, de que é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se conforme esse entendimento, adotando-se o chamado critério biopsicológico ou misto para a questão da imputabilidade penal, tem-se a lição de Dalmo de Abreu Dallari, em debate promovido em abril de 1990, quando disse que os índios brasileiros estão em diferentes estágios em relação ao conhecimento de hábitos da sociedade nacional. Há índios que freqüentam Universidades e outros que sequer falam o português.
O índio tem uma cultura diferente razão por que é preciso ser recebido e respeitado em nosso meio, dentro do que chamamos Estado Democrático de Direito.
O Projeto do Código Penal, dentre diversos pontos polêmicos, como por exemplo, incluir ao lado da legitima defesa e do estado de necessidade, uma estranha causa de exclusão de ilicitude, a insignificância(artigo 28, § 1º, do Projeto)[1], dá ao índio um tratamento ímpar em face da culpabilidade de seus atos, no direito penal, defendendo a aplicação do erro de proibição para afastar a sua condenação(artigo 36), consoante laudo antropológico.
Por sua vez, há previsão, no artigo 36, parágrafo primeiro, de que a pena será reduzida de um sexto a um terço se, em razão dos referidos costumes, crenças e tradições o indígena tiver dificuldade de compreender ou internalizar o valor do bem jurídico protegido pela norma ou o desvalor de sua conduta.
A pena será cumprida em regime especial de semiliberdade, ou mais favorável, no local de funcionamento do órgão federal de assistência do índio mais próximo de sua habitação.
O erro de proibição, na redação que foi dada ao artigo 21, caput, e parágrafo único, do Código Penal, pela Lei 7.209/84, parte geral, assim está previsto: ¨O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena: se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.¨
Correto o entendimento de que no erro de proibição há três elementos fundamentais: a lei, o fato e a ilicitude. A lei como proibição, o ente abstrato; o fato como ação, entidade material; a ilicitude como relação de contrariedade entre o fato e a norma.
O Projeto do Código Penal, voltando-se para um pluralismo que inexistia, por certo, à época do Código Penal de 1940, erigido no Estado Novo, e a reforma de sua parte geral, de 1984, ao final da ditadura militar, no caso de crimes de índios, defende que se trata de erro de proibição, quando o índio pratica o fato agindo de acordo com os costumes, crenças e tradições de seu povo(artigo 36). Seria um erro de proibição culturalmente condicionado, que exclui a culpabilidade. Assim disseram Zaffaroni e Pierangeli: [2]
¨Muito embora exista delito que o silvícola pode entender perfeitamente, existem outros cuja ilicitude ele não pode entender, e, em tal caso, não existe outra solução que não a de respeitar a sua cultura no seu meio, e não interferir mediante pretensões de tipo etnocentrista, que escondem, ou exibem, a pretendida superioridade da nossa civilização industrial, para destruir todas aas relações culturais a ela alheias.¨
Acertado o entendimento dos que entendem que ou seria reconhecida uma exculpação por fato de consciência, algo que se inclui na inexigibilidade de conduta diversa, ou ainda por reconhecimento da figura do autor por convicção. Estamos no campo da culpabilidade que é um juízo de valor, em razão do qual se reprova o autor pela ação cometida, diversamente da antijuridicidade que se refere à ação realizada em posição valorativamente conflitante com um valor tutelado pelo direito, como bem disse Miguel Reale Jr.[3]
O que é inexigibilidade de conduta diversa?
Miguel Reale Jr.[4] considera que a não exigibilidade não é um juízo sobre o aspecto psicológico do agente, mas antes um juízo acerca de uma situação concreta ou objetiva, na qual assume relevância, perante o direito, o valor que anima o agente. E conclui:
¨Não há renúncia por parte do direito, mas uma revaloração deste, diante de uma situação em que estão presentes determinados requisitos objetivamente determinados. A não exigibilidade não se reduz às situações em que o instituto de conservação determina a ação, mas uma valoração acerca de um conflito de valores, o valor da norma e o valor posto como motivo do agir em determinada situação.¨
Mas é impossível a construção de um homem médio, de um bom pai de família, para a análise do instituto.
De toda sorte, devemos levar em conta duas premissas: a opção do agente deve ser analisada na situação concreta em que se dá; o direito impõe valores e se impõe como valor, porém, ensinou Miguel Reale Jr., diante de determinadas situações, pode admitir como positiva uma opção em conflito com ele, considerando-a, excepcionalmente, válida.
Tudo isso deve ser analisado sobre premissas objetivas, sob o enfoque de dois critérios: o normativo e o judicial.
Se no comportamento antijurídico culpável, há o desvalor do comportamento e da formação do querer; por outro, a não exigibilidade de conduta diversa, introduzida por Frank, Mezger, dentre outros, e a ser adotada no futuro Código Penal, que determina que não está a agir culpavelmente aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso, como disse Francisco de Assis Toledo.[5]
Será dito, na linha de Bettiol, trazida por Francisco de Assis Toledo[6]:
¨cabe ao juiz que exprime o juízo de reprovação, avaliar a gravidade e a seriedade da situação histórica na qual o sujeito age, dentro do espírito do sistema penal, globalmente considerado.¨
Daí porque entendo que a prova da não exigibilidade de conduta diversa para a conduta penal do índio não poderá vir apenas de meras alegações, mas vir de um somatório de provas onde a prova pericial, oriunda de um laudo antropológico, deverá ter a devida e séria apreciação.
Mas, vamos ao problema do entendimento do que é autor por convicção.
É sabido que o autor comum é aquele que está normalmente em contradição consigo mesmo e reconhece, desta forma, a norma que viola. Por sua vez, o autor por convicção e o autor de consciência não estão em contradição consigo próprios, uma vez que agem segundo as suas convicções, a sua consciência, consoante a sua visão de mundo, e assim rejeitam a ordem jurídica, por entenderem ser contrária aos seus entendimentos, às suas crenças e aos seus princípios éticos e morais. Sendo assim o autor por convicção tem consciência do caráter proibitivo do ato, mas em nome de uma convicção política, religiosa ou social, nega a natureza criminosa do comportamento que leva a cabo, substituindo à sua a valoração legal, como ensina Eduardo Correia.[7]
Seja como for, a mensagem do Projeto parece ser de que os índios devem ter a sua forma de organização social, política e jurídica respeitadas, mas coloca a oposição entre o índio e o homem branco, o que se distancia do direito penal liberal, em sua tradição, que se afirmou cega a determinadas características contingenciais.
Ademais, fica nítido no Projeto, quando se estuda esses crimes praticados pelos índios, sob o enfoque de um erro de proibição, a questão, para muitos perigosa, da chamada culpabilidade da personalidade ou de pessoa[8]. Para Figueiredo Dias[9], considerado o pai do código penal português, culpa da pessoa é a violação pelo homem do dever de conformar o seu existir por forma a que, na sua atuação de vida, não viole ou ponha em perigo bens juridicamente protegidos.
Sendo assim o Projeto do Código Penal assegura aos índios o direito de serem diferentes e de serem respeitados em suas diferenças, abrindo caminho para outros critérios como a aplicação de exculpantes do erro de proibição e ainda da inexigibilidade de conduta diversa, que são mais compatíveis com os tempos atuais.
Notas
[1] Ora, o princípio da insignificância não exclui a ilicitude, como a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de direito, o estrito cumprimento do dever legal, mas a própria tipicidade material.
[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume I, parte geral, 6ª edição, São Paulo, RT, 2006, pág. 554 e 555.
[3] REALE JR.,Miguel. Teoria do delito, São Paulo, RT, 1998, pág. 85.
[4] REALE JR. Miguel. Teoria do delito, São Paulo, RT, 1998, pág. 151.
[5] ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de direito penal, São Paulo, Saraiva, 1991, pág. 328.
[6] ASSIS TOLEDO, Francisco de. Princípios básicos de direito penal, São Paulo, Saraiva, 1991, pág. 329.
[7] CORREIA, Eduardo. Direito criminal, volume II, Coimbra, Almedina, 1965, pág. 331.
[08]A maioria da doutrina vê a culpabilidade como dimensão do direito penal do fato e não do autor, segundo o qual o agente responde pelo que faz(ou deixa de fazer), mas não pelo que é.
[9] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Liberdade – Culpa – Direito Penal, pág. 118.