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Transparência e participação social nas políticas públicas:

as inovações do novo marco regulatório das relações entre Estado e organizações da sociedade civil

Agenda 25/11/2015 às 13:28

Em julho de 2014 foi publicada a Lei nº 13.019, que dispõe sobre o as relações entre Estado e sociedade civil. As grandes inovações do novo instrumento são a exigência de transparência nas parcerias, inclusive na seleção dos projetos.

No dia 27 de julho de 2015 entrou em vigor a Lei nº 13.109/2014, que institui o Novo Marco Regulatório das Relações entre o Estado e as Organizações da Sociedade Civil – MROSC. Fruto de um debate de 10 anos entre governos, entidades e cortes de contas, e mais 3 anos de discussões no Congresso Nacional, a proposta traz uma série de inovações na gestão das parcerias firmadas entre os governos e as organizações não-governamentais, com destaque especial para a transparência ampliada e à participação social.

Entretanto, como toda norma nova, existem pontos de controvérsias, via de regra, decorrentes de problemas estruturais das administrações, especialmente dos governos locais e da falta de divulgação do projeto pelos meios de comunicação. Aliás, como sempre, a mídia oligopolista, ao contrário de contribuir para esclarecer dúvidas, opta por criar conflitos e desinformar a população.


1. O FRACASSO DO MODELO DAS OSCIPS

A criação de um marco legal diferenciado para gerir as relações entre o Estado e sociedade civil já havia sido tentada na década de noventa, através da Lei 9790/1999, que instituiu as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs, sistema que, na prática, nunca demonstrou eficiência.

Fruto do movimento das “Comunidades Solidárias”, comandado pela ex-Primeira Dama Ruth Cardoso, o modelo proposto pelas OSCIPs apresentava pelo menos três grandes defeitos, todos prejudiciais à universalização das políticas públicas: a) a lógica privatizadora; b) o excesso de ingerência do governo sobre a autonomia das entidades; c) a elitização.

A lógica privatizadora foi resultado do modelo de desmanche do Estado proposto pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), no qual se previa uma ação meramente subsidiária da administração na implementação das políticas públicas. Para que isso fosse executado, tanto as OSCIPs, como as Organizações Sociais – OS, poderiam ser transformadas em verdadeiras sucursais da ação pública, com atribuições que ultrapassam as funções de parceiras.

As Organizações Sociais, por exemplo, podem receber o controle de bens públicos sem, sequer, passar por licitação, o que acabou gerando verdadeiros absurdos jurídicos nos governos ideologicamente mais alinhados com o pensamento neoliberal. Cito como exemplo a proposta da ex-Governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius (PSDB), objetivando transferir a gerência das políticas ambientais, especialmente o poder de polícia executado pela FEPAM e pelo DEFAP (hoje, DEBIO), para Organizações Sociais. Tal modelo acabou sendo barrado pela mobilização de ambientalistas e dos movimentos sociais, e impediu a privatização de uma ação primária da Administração Pública.

No Novo Marco Regulatório, embora não sejam revogadas as anacrônicas leis das OSCIPs e das OSs, é vedada a transferência do poder de polícia do Estado para terceiros.

Outro subproduto da lógica privatizadora prevista no antigo marco de relações, foi a excessiva interferência do Estado sobre as entidades que buscavam a qualificação como OSCIPs, incluindo o obrigatório credenciamento das entidades pelo Ministério da Justiça. Aqui temos a retomada de modelos autoritários, herdados da tradição patrimonialista que rege a certificação de entidades, como no caso da filantropia, por exemplo, limitando a autonomia de organização da sociedade civil.

O controle “a priori” proposto pelo modelo OSCIP traz no seu bojo uma pré-condenação das entidades, mesmo que estas atuem de boa-fé, e confere privilégios a um grupo que aceita as limitações impostas pelo Estado.

Somente poderiam ser classificadas como OSCIPs determinadas entidades que se submetessem a determinadas regras definidas pela Lei, e que periodicamente deveriam renovar seu credenciamento e apresentar determinada documentação ao Ministério da Justiça para manter a certificação. Os demais, como as cooperativas de catadores de material reciclável, por exemplo, que cumprem uma função socioambiental relevante e, inequivocamente atendem ao interesse público, ficaram fora do modelo.

Isso tudo resultou no terceiro problema do sistema criado na década de noventa, que foi a elitização das parcerias, na medida em que apenas um pequeno grupo, normalmente formado por entidades com maior poder econômico e capacidade de influência, passou a receber certificação. O elevado número de exigências, especialmente contábeis, sem nenhum apoio institucional, acabou limitando o universo de parcerias, resultando no fracasso da proposta.

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Além disso, a pressão dos setores mais conservadores do Congresso reduziu a possibilidade de transferências de capital do Orçamento Geral da União para entidades não certificadas, prejudicando a execução de diversas políticas públicas, especialmente nos campos da assistência social, do sistema básico de saúde, educação, direitos humanos e meio ambiente.


2. O MROSC E A TRANSPARÊNCIA COMBINADA COM PARTICIPAÇÃO SOCIAL

A grande inovação do MROSC é a criação de mecanismos de transparência sem afetar a organização das entidades. Para tanto, as exigências começam a ser repassadas diretamente ao Poder Público, como: previsão da publicação antecipada dos orçamentos destinados a parcerias; realização de chamadas públicas; criação da manifestação de interesse social; criação de comitês de avaliação; publicação e divulgação dos instrumentos, dentre outras.

Deve ser ressaltado que a proposta reconhece a obrigação do Estado na implementação de políticas públicas, e a importância da parceria com o segmento não governamental para o alcance de resultados. Nesse caso, o Estado é o obrigado principal, e as entidades cumprem um papel subsidiário, tal como previsto pelo legislador constituinte.

Tradicionalmente não existe ampla divulgação dos recursos disponíveis para parcerias entre o poder público e as entidades da sociedade civil, o que acaba privilegiado os grupos que já atuam em conjunto com os governos. Pela nova lei, em todo o início de exercício orçamentário será obrigatória a publicação dos recursos disponíveis para parcerias, inovação esta que permite ampla publicidade à sociedade e aos órgãos de controle, assim como induz o planejamento para a execução de projetos.

Esta medida ganha relevo com a imperatividade da realização de chamamentos públicos de projetos, ampliando a impessoalidade nas escolhas e diminuindo a predominância dos interesses particularistas nas parcerias. Esse modelo já é adotado pelo Governo Federal, com excelentes resultados em termos de transparência, e agora será transferido aos demais entes federativos.

Ademais, as duas novas regras comungam com outra norma recente, que é a Lei do Acesso à Informação, garantindo o cumprimento de outro princípio obrigatório às administrações públicas, previsto no art. 37 da Constituição Federal, que é o da publicidade.

A manifestação de interesse social é uma grande e salutar inovação da Lei, ao permitir que cidadãos, cidadãs, entidades ou grupos de entidades possam apresentar aos governos pontos prioritários para investimentos e novas políticas públicas. Novamente, por meio de um processo transparente e formalizado, ampliando as possibilidades de participação social.

Por óbvio, a manifestação de interesse social não substitui o poder discricionário de um governo eleito democraticamente pela maioria de realizar as suas escolhas, mas permite a contribuição direta da população nestas decisões, superando o encastelamento de alguns administradores, o que beneficia apenas os grupos com maior poder econômico ou de influência.

Os comitês de avaliação, por sua vez, são estruturas públicas formadas predominantemente por servidores de carreira, cuja responsabilidade é acompanhar a execução dos projetos. Não se confundem com os Comitês de Seleção, responsáveis pela avaliação das propostas apresentadas nos chamamentos, nem com os Conselhos, instâncias de participação social.

Aliás, a Lei propõe a criação de Conselhos de Fomento e Colaboração, com funções consultivas e propositivas, e cuja criação é facultativa para os governos locais e estaduais.

Outro elemento que contribui para a transparência dos projetos é a imperatividade da publicação dos instrumentos firmados, dos valores dos repasses, das condições das parcerias, e nome e o endereço das entidades parceiras, permitindo o controle exercido pelos cidadãos e cidadãs. Ou seja, é mais uma medida que acompanha a lógica instaurada pela Lei de Acesso à Informação e que atende ao art. 37 da Constituição.


3. O RECONHECIMENTO DAS ESPECIFICADADES DA SOCIEDADE CIVIL

O MROSC também inova na criação de dois novos instrumentos para formalização das parcerias, que substituem os antigos convênios, além de reconhecer, de forma definitiva, a possibilidade de parcerias com entidades “organizadas em redes”.

Os velhos convênios são substituídos pelos Termos de Colaboração e de Fomento. De uma forma bastante simples, os Termos de Colaboração são firmados com entidades, selecionadas por meio de chamada pública, para o desenvolvimento de projetos propostos pela própria administração. São exemplos clássicos as parcerias voltadas para ações nas áreas de educação, saúde e assistência social, nos mais diversos rincões do país.

Mas são os Termos de Fomento que geram as maiores controvérsias pois são destinados ao atendimento dos projetos apresentados pela sociedade civil, muitos dos quais já incluídos em calendários de eventos dos governos locais, como feiras, seminários, festas populares, atividades esportivas etc., ou ainda a projetos alternativos pelas próprias entidades.

Como todos os instrumentos devem ser precedidos de chamadas públicas, surgem dúvidas sobre os modelos de chamamento destinados à participação de todos os envolvidos no segmento. A solução mais prática é a publicação, anual ou periódica, pelos órgãos concedentes do fomento, de “editais de chamamento voltados às demandas espontâneas”, com a indicação das áreas beneficiárias e dos valores destinados.

Cito como exemplo comum um edital de demanda espontânea para projetos de educação ambiental. Este pode ter três linhas de aplicação: 1) eventos; 2) formação; e 3) projetos autônomos. Ou seja, a administração não precisa definir todas as linhas de fomento beneficiárias, admitindo-se propostas autônomas derivadas da própria iniciativa das organizações, mas deve identificar, com clareza, os valores e as condições de seleção.

Como destacado anteriormente, outro elemento relevante e inovador é a admissão de parcerias com entidades da sociedade civil organizadas em rede, característica comum deste segmento. Para tanto, as redes devem eleger uma entidade líder, que coordenará a execução dos projetos.

Além disso, o marco resolve o eterno problema da precarização das relações de trabalho na sociedade civil, na medida em que permite expressamente o pagamento dos encargos remuneratórios dos empregados dos projetos e limita as contrapartidas a serem apresentadas pelos parceiros a bens economicamente mensuráveis, acabando com uma velha controvérsia presente na jurisprudência dos Tribunais de Contas, e colocando o alcance de resultados na implementação de políticas públicas como prioridade.


4. DAS CONSIDERAÇÕES GERAIS E DOS CONFLITOS DE INTERPRETAÇÃO E EXECUÇÃO

Como todos os novos instrumentos, o Marco já começou a sofrer críticas, algumas razoáveis, outras decorrentes da própria falta de interesse de alguns gestores públicos com a transparência na seleção dos projetos.

Dentre as críticas razoáveis, encontra-se a dificuldade para operar os sistemas financeiros dos instrumentos, pois todas as parcerias deverão contar com contas específicas e com os pagamentos dos objetos realizados por meio de transferência eletrônica. Isto, de forma imediata, pode resultar na canalização de recursos públicos para o pagamento de tarifas financeiras, prejudicando o funcionamento de alguns objetos, pois a grande maioria dos bancos estabelece franquias para as transferências.

Aqui, novamente, temos um prejuízo decorrente da onda privatista da década de noventa, que resultou na entrega de vários bancos públicos ao mercado privado. Com isso, os próprios bancos públicos começaram a tarifar vários serviços para garantir a sua sustentabilidade financeira. Em nome da transparência, seria recomendável que pelo menos os bancos públicos garantissem a dispensa de tarifa para as contas dos termos de fomento ou de colaboração, posto que as instituições financeiras já remuneram os seus serviços com o aproveitamento das aplicações financeiras durante a execução dos projetos. Outra alternativa poderia ser adotada pelos próprios entes públicos que não administram bancos, especialmente os municípios, forçando uma concorrência entre as instituições interessadas em receber contas das parcerias, para garantir a isenção tarifária na execução dos projetos.

O custo também tem sido a crítica daqueles que são contrários aos chamamentos públicos, elemento que não se sustenta no mundo real, pois o ganho em transparência e a exigência de controle de resultados, além da simplificação nas prestações de contas dos projetos de pequeno valor, reduzem a despesa operacional da administração.

Por outro lado, procede o argumento de que muitos municípios possuem capacidade técnica insuficiente para a gestão dos instrumentos, problema este que, aliás, já existia. Ou seja, não é uma criação do MROSC.

Esta fragilidade operacional resulta na negativação de entidades e na condenação de gestores, seja por má-fé, seja por erro. As soluções para os problemas de falta de qualificação operacional são óbvias: o intercâmbio, o aumento do uso de tecnologias de gestão, a profissionalização de servidores e a formação continuada.

Destaco que a formação continuada dos quadros da administração pública deveria ser uma prioridade para qualquer bom gestor público, até mesmo como forma de buscar a eficiência e a eficácia dos serviços prestados à população. Todavia, neste campo, ainda predomina a falta de planejamento e o casuísmo, motivo pelo qual muitas unidades de gestão de pessoas ainda são reféns das grandes empresas de consultoria à administração pública.

Nesse sentido, o Governo Federal também poderia contribuir com a formação de gestores por meio dos serviços de extensão das universidades federais. Com o crescimento do número destas instituições nos últimos 12 anos, hoje enraizadas em quase todo o país, seria possível criar “escolas de governos” para os Municípios mais pobres, equilibrando e fomentando a formação dos quadros administrativos e da sociedade civil. Tal medida também poderia ser adotada como um programa permanente, contribuindo para um velho problema da academia que é o seu afastamento da realidade social.

Em síntese, a proposta do Marco Regulatório, ao mesmo tempo que inova e avança em vários pontos, também traz desafios ao Poder Público e para a sociedade civil. Desafios estes que somente podem ser superados com discussão, organização e preocupação com o interesse público.

Aqui apresentamos algumas sugestões. Contudo, cabe aos próprios administradores definirem a forma como pretendem executar as suas políticas, e ao conjunto de cidadãos e cidadãs aproveitarem a oportunidade de transparência oferecida pelo Novo Marco Regulatório para fiscalizar a atuação do Poder Público.

Sobre o autor
Sandro Ari Andrade de Miranda

Advogado no Rio Grande do Sul, Doutorando em Sociologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Sandro Ari Andrade. Transparência e participação social nas políticas públicas:: as inovações do novo marco regulatório das relações entre Estado e organizações da sociedade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4529, 25 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39108. Acesso em: 22 dez. 2024.

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