3. PROJETO DE LEI Nº 5.002/2013 – LEI DA IDENTIDADE DE GÊNERO (OU LEI JOÃO W. NERY)
A busca pela efetivação plena dos direitos à identidade de gênero, a qual não deve ser precedida da mera obtenção de um órgão sexual por vias cirúrgicas, tampouco de um laudo científico que ateste e defina a identidade de gênero, tornou-se uma luta pela visibilidade de pessoas que permanecem à margem.
Historicamente, são muitos os entraves, desde a garantia da readequação sexual pela cirurgia de redesignação e a mudança do fenótipo que não traduz o verdadeiro ser da pessoa, à sua inclusão nas relações sociais, como a escola, a universidade e, principalmente, o mercado de trabalho.
As dificuldades surgem, portanto, de diferentes ações discriminatórias que perpassam todos os ambientes de convívio, em verdadeiras humilhações, por serem obrigados/as a se identificarem perante a sociedade por meio de nome e sexo civil de gêneros distintos àqueles que seus corpos relatam. Ademais, seus corpos são suas expressões primárias, seus “cartões de visita”.
Diversamente aos homossexuais, as travestis, os/as transgêneros/as e transexuais não conseguem omitir suas identidades, vez que a levam consigo em suas feições, trejeitos e maneirismos, submetendo-se diariamente a situações de constrangimento, ao serem chamadas/os em público por nomes que traduzem a oposto ao da sua subjetividade.
Como melhor descreve João W. Nery no Capítulo 5 – Corpo trans-tornado da sua autobiografia:
Transformei-me literalmente num marginal, pois vivia à parte, à margem. Não pertencia nem ao grupo majoritário heterossexual e aceito, nem a qualquer grupo minoritário e discriminado. Não me sentia mulher nem homossexual. Ainda desconhecia todas as categorias “inventadas” em meados do século XX. Sabia que não era aprovado pela maioria. Em que grupo existente me enquadrava? Algo errado havia. Se fosse uma doença, onde e como? Não inspirava pena ou compaixão. E como explicar minha refinada sensibilidade, que me fazia ter uma doída lucidez, a ponto de viver minhas fantasias tão intensamente sem perderão senso de realidade? Por essa incompatibilidade da minha mente com as partes do meu corpo, numa inversão total de imagem, tornei-me cada vez mais um ser angustiado. Além de tudo, cônscio de que argumento algum poderia me justificar.
A visibilidade é obrigatória para aquele/a cuja identidade sexual está inscrita no corpo como um estigma, que não se pode ocultar sob qualquer disfarce. E o preconceito e a violência que sofrem é muito maior. Porém, de todas as invisibilidades às quais eles e elas parecem condenados/as, a invisibilidade lega é o ponto inicial e mais relevante.
Como ensina Mauro Cabral (2013, apud LITARDO, 2013, p. 5):
[...] a transgeneridade constitui um espaço heterogêneo, por definição, no qual convive – em termos não só desiguais, mas também confrontados – um conjunto de narrativas sobre a carne, o corpo e a prótese, o desejo e as práticas sexuais, o viajar e o estar em casa, a identidade e a expressão de si, o autêntico e o fictício, o reconhecimento e a subversão, a diferença sexual e o sentido, a autonomia de decisão e a tecnologia como instrumento que é, ao mesmo tempo, mudança de frente de batalha. Portanto, é um espaço percorrido por uma multidão de sujeitos em dispersão: travestis, lésbicas que não são mulheres, transexuais, drag queens, drag kings, transgêneros… e tod*s aquel*s que, de alguma maneira, encarnam formas de vida que não podem ser reduzidas nem ao binário genérico nem aos imperativos da hetero ou homonormatividade.
As divergências nas experiências trans não estão localizadas apenas no corpo subalterno e marginalizado, mas sim no confronto entre a experiência deste corpo em sua morfologia e uma estrutura cultural, social, política, econômica e jurídica que impõe obstáculos que possibilitam o exercício dessa experiência. Como Judith Butler (2006) frisa, “estar preso a um regulamento é estar subjetivado por ele”.
Diante do contexto destas demandas, nota-se o crescimento da luta pela visibilidade das pessoas transgêneras no campo judicial, com inúmeras demandas que mostram, gritam e esclarecem à sociedade e aos detentores do poder de decidir, que a sua identidade e dignidade não podem ficar à mercê de procedimentos e trâmites meramente científicos, tampouco judiciais, além de que seus nomes e gêneros não estão adequados aos constantes nos registros civis dos cartórios.
No contexto das ações afirmativas necessárias à tutela de determinados sujeitos, pontua Flávia Piovesan (2012, p. 175):
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Nesta ótica determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Isto é, na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença (que na era Hitler foi justificativa para o extermínio e a destruição), percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isto significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção de direitos.
Neste sentido, é importante pontuar recente vitória no âmbito jurídico, embora ainda prematura e incerta, com o reconhecimento de repercussão geral em Recurso Extraordinário 670.422/RS, que discute matéria constitucional lesada por decisão que inadmitiu a retificação do sexo no registro civil ante a ausência de realização da cirurgia transexualizadora:
DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. REGISTROS PÚBLICOS. REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS. ALTERAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. RETIFICAÇÃO DO NOME E DO GÊNERO SEXUAL. UTILIZAÇÃO DO TERMO TRANSEXUAL NO REGISTRO CIVIL. O CONTEÚDO JURÍDICO DO DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL. DISCUSSÃO ACERCA DOS PRINCÍPIOS DA PERSONALIDADE, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, INTIMIDADE, SAÚDE, ENTRE OUTROS, E A SUA CONVIVÊNCIA COM PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA VERACIDADE DOS REGISTROS PÚBLICOS. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL.
S T C interpõe recurso extraordinário, com fundamento na alínea a, do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pela Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. TROCA DE NOME E SEXO.
À equação do presente pertinente a averbação no assento de nascimento do (a) recorrente sua condição de transexual. Aplicação dos princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos, pois estes devem corresponder à realidade fenomênica do mundo, sobretudo para resguardo de direitos e interesses de terceiros. POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO EM PARTE, VENCIDO O RELATOR.
(…)
As matérias suscitadas no recurso extraordinário, relativas à necessidade ou não de cirurgia de transgenitalização para alteração nos assentos do registro civil, o conteúdo jurídico do direito à autodeterminação sexual, bem como a possibilidade jurídica ou não de se utilizar o termo transexual no registro civil, são dotadas de natureza constitucional, uma vez que expõe os limites da convivência entre os direitos fundamentais como os da personalidade, da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da saúde, entre outros de um lado, com os princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos de outro. Assim, as questões postas apresentam nítida densidade constitucional e extrapolam os interesses subjetivos das partes, pois, além de alcançarem todo o universo das pessoas que buscam adequar sua identidade de sexo à sua identidade de gênero, também repercutem no seio de toda a sociedade, revelando-se de inegável relevância jurídica e social. Destarte, manifesto-me pela existência de repercussão geral da matéria. Brasília, 20 de agosto de 2014.
(STF, RE 671.422/RS. REL MIN. DIAS TOFFOLI, DPJ 21/11/2014)
Dito isto e diante das manifestações positivas, apesar de morosas e burocráticas, dos poderes Executivo e Judiciário, analisar-se-á a tentativa de quebrar a inércia do Legislativo para com a tutela efetiva dos direitos dos/as transgêneros, transexuais e travestis, por meio do Projeto de Lei nº 5.002/13, lei de identidade de gênero, apelidada de Lei João Nery.
O texto, elaborado pelo Deputado Federal Jean Willys e pela Deputada Federal Érika Kokay, tem como base a lei de identidade de gênero que vigora na Argentina, votada em 2012 por ampla maioria na Câmara dos Deputados e por unanimidade no Senado, com apoio expresso da Presidente da República e dos líderes de oposição, considerada a mais avançada do mundo no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais de transgêneros/as, travestis e transexuais[9].
A definição de identidade de gênero de ambos os textos legislativos advém dos princípios de Yogyakarta sobre a aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, nas questões que dizem respeito à orientação sexual e à identidade de gênero[10]:
[...] a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo. O exercício do direito à identidade de gênero pode envolver a modificação da aparência ou da função corporal através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, desde que isso seja livremente escolhido. Também inclui outras expressões de gênero, como a vestimenta, os modos e a fala.
O referido documento foi elaborado por especialistas em gênero, enumera diversos motivos que motivaram a formalização dos princípios a serem observados em âmbito internacional, dentre os quais o respeito à liberdade e igualdade, em dignidade de direitos; o direito de desfrute dos direitos humanos sem distinção de orientação sexual ou identidade de gênero; a preocupação com a violência, assédio, discriminação, exclusão, estigmatização e preconceito dirigidos contra pessoas em todas as partes do mundo, além das violações de direitos por pessoas percebidas como lésbicas, gays e bissexuais, ou por serem percebidas como transexuais, transgêneros e intersexuais, tendo sido apresentado perante a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007.
O projeto da Lei de Identidade de Gênero brasileiro (2013) declara, em seu artigo 1º, incisos I, II e III, que toda pessoa tem o direito à identidade de gênero, ao livre desenvolvimento da pessoa conforme sua identidade de gênero e a ser tratada de acordo com a sua identidade de gênero, a qual é conceituada pelo artigo 2º:
Artigo 2º – Entende-se por identidade de gênero a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo.
Parágrafo único: O exercício do direito à identidade de gênero pode envolver a modificação da aparência ou da função corporal através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, desde que isso seja livremente escolhido, e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de fala e maneirismos.
Portanto, ao afirmar que o exercício da identidade de gênero envolve a modificação da aparência ou da função corporal, mas também outras expressões, como vestimenta e modo de fala, abrange os conceitos de transexual, travesti e transgêneros.
Dando continuidade, o projeto estabelece mecanismos jurídicos para o reconhecimento da identidade subjetiva, permitindo às pessoas a retificação do nome e do sexo nos registros civis oficiais, contemplando, pois, o direito à autodeterminação de gênero, ao consignar que “toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero auto-percebida.”
O texto legislativo preza pela definição de gênero psíquico e social, em detrimento da bioidentidade de gênero, ao vedar a obrigatoriedade da realização da cirurgia de transexualização, tratamentos hormonais, diagnóstico médico ou psicológico e decisão judicial, delimitando como requisitos a maioridade civil e o requerimento por escrito de retificação dos documentos de registro civil, prezando, pois, pelos os princípios da celeridade, pessoalidade, simplicidade, gratuidade e sigilo, uma vez que proíbe qualquer referência à transexualidade da pessoa ou à retificação dos documentos, salvo por autorização do sujeito.
A lei permitirá, ainda, a realização do procedimento de retificação dos registros civis de menores de 18 anos, que deverá ser efetuada por seus representantes legais, levando em consideração os princípios da capacidade progressiva e interesse superior da criança, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Este é um dos pontos polêmicos do projeto, que deve ser discutido e refletido na perspectiva de proporcionar a vivência do gênero perante a sociedade desde a infância, amenizando, assim, o processo doloroso e traumático de discriminação, que, em sua maioria, se intensifica no início da adolescência, a partir do surgimento dos caracteres físicos secundários.
De forma semelhante à lei argentina, o texto brasileiro delimitou critérios para assegurar a continuidade jurídica da pessoa, através do número da identidade e do registro da mudança de nome e sexo no registro civil das pessoas naturais, determinando, pois, sua notificação aos órgãos competentes, garantindo o sigilo do trâmite. As pessoas que realizarem a retificação civil continuarão tendo os mesmos direitos e obrigações. Os dados eleitorais, fiscais, de antecedentes criminais, por exemplo, serão atualizados.
O projeto de lei pátrio vai além, ao regulamentar as intervenções cirúrgicas e os tratamentos hormonais realizados para redesignação sexual, vez que desobrigam a apresentação de laudo médico ou psicológico para a realização do procedimento por meio do Sistema Único de Saúde[11], caminhando, assim, para despatologização da transexualidade.[12]
Desta feita, o Projeto de Lei João Nery preza pela independência entre o reconhecimento da identidade de gênero e as intervenções no corpo, incluindo, assim, as travestis, o qual é um subgrupo marginalizado. Ora, se as pessoas transexuais possuem dificuldade de manter-se ilesas às violências diárias, as travestis têm uma completa invisibilidade no que diz respeito à garantia da dignidade e de direitos básicos, os quais o respeito à sua identidade, a inclusão social em escolas e universidades e, principalmente, no mercado de trabalho.
Tal estigma é comprovado, vez que é socialmente aceito e naturalizado o fato de que toda travesti se utiliza da prostituição como meio único de sobrevivência e, para as mais abastadas (ou sortudas), das profissões como cabeleireira ou manicure. Ressalta-se, contudo, que tais pessoas possuem as mesmas identificações, quereres, sonhos, vontades e planos que pessoas heterossexuais, todavia sofrem com a imensa limitação das oportunidades e possibilidades.
Por sua vez, garantir o direito à retificação de nome e sexo apenas às pessoas trans que se submetem, ou precisam se submeter, à cirurgia de transexualização é discriminar um grupo já marginalizado. É beneficiar uns e esquecer outras com as mesmas pautas e as mesmas lutas diárias.
A democratização do direito à retificação do nome e sexo civil à identidade de gênero, incluindo, assim, travestis e pessoas trans que não querem realizar a cirurgia, aliada à despatologização e à não-judicialização da transgeneridade certamente são os pontos mais positivos e progressistas da referida legislação, que atualmente aguarda o parecer do relator da Comissão de Direitos Humanos e das Minorias (CDHM).[13]
O Projeto de Lei nº 5.002/2013, “lei da identidade de gênero”, ou “Lei João Nery”, implica uma transformação em prol do reconhecimento político e jurídico das identidades e manifestações trans. A mudança foi obtida por meio da práxis dos movimentos que lutam pelo reconhecimento da diversidade sexual e de gêneros (sem reduzi-los à “sopa de letras” já tão popularizada), que encontra, bem sutilmente e precariamente, alguma representação no Congresso Nacional, indo de encontro a um atual movimento de total regresso e conservadorismo político.
Neste contexto, a lei, se aprovada, reposicionará o poder constituinte do discurso médico-jurídico que, durante muito tempo, trabalhou na construção de situações de vulnerabilidade para as identidades e subjetividades, mediante a facilitação ou o retraimento referente ao reconhecimento do direito à identidade de gênero e, portanto, dos princípios constitucionais da igualdade, liberdade e dignidade humana.