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Postagem de fotografias e vídeos de restos mortais: consequências jurídicas

Agenda 04/07/2015 às 10:10

Qual a responsabilidade penal, civil e trabalhista decorrente da exposição do cadáver do cantor sertanejo Cristiano Araújo?

É de conhecimento geral que fotos e vídeos do “de cujus” Cristiano Araújo foram indevidamente expostas nas redes sociais por funcionários de uma clínica localizada em Goiânia/GO. Internautas que possuem aversão a este tipo de material tiveram acesso às imagens do corpo sem prévia solicitação, eis que tais foram amplamente divulgadas por usuários em seus perfis.

Diversas consequências jurídicas podem advir deste fato. Vejamos.


I – DO CRIME DE VILIPÊNDIO A CADÁVER OU SUAS CINZAS

No vídeo é possível ouvir quando a auxiliar de serviço Márcia Valéria dos Santos, rindo, diz ao colega “Dá um tchau aí. Não mesmo”.  Ato contínuo, filma o próprio rosto.

O artigo 212 do Código Penal dispõe:

Art. 212 - Vilipendiar cadáver ou suas cinzas:

 Pena - detenção, de um a três anos, e multa.”

O referido dispositivo visa proteger o sentimento de respeito aos mortos. Tutela-se o sentimento dos parentes e amigos do morto, e não o próprio “de cujus”, que não é titular do direito.

Em outras palavras, vilipendiar é destratar, desprezar, menoscabar o cadáver ou suas cinzas.

Na lição de Rogério Sanches Cunha

“É crime de execução livre, podendo ser praticado pelo escarro, pela conspurcação, desnudamento, colocação do cadáver em posições grosseiras ou irreverentes, pela aposição de máscaras ou de símbolos burlescos e até mesmo por meio de palavras; pratica o vilipêndio quem desveste o cadáver, corta-lhe um membro com propósito ultrajante, derrama líquidos imundos sobre ele ou suas cinzas (RT 493/362)” (Manual de Direito Penal – Parte Especial. Ed. Jus Podivm, 7ª Ed. p. 433).

No mesmo sentido, Cezar Roberto Bitencourt:

“A ação tipificada é vilipendiar, que significa aviltar, ultrajar, e pode ser praticada de diversas formas, v. g., com palavras, gestos, escritos etc. O vilipêndio pode ser por palavras, atos ou escritos. Com efeito, vilipendiar cadáver é ultrajá-lo, aviltá-lo. Trata-se de ato que se pratica junto ao cadáver ou a suas cinzas, e não mediante declarações em público, publicações em jornais etc.” (Tratado de Direito Penal  - Parte Especial – Ed. Saraiva, 8ª Ed., p. 560)

Ainda, Rogério Greco:

“A conduta de vilipendiar pressupõe um comportamento comissivo por parte do agente. No entanto, o delito poderá ser cometido via omissão imprópria, na hipótese em que o agente,, por exemplo, gozando do status de garantidor, dolosamente, não impedir que alguém pratique atos que aviltem o cadáver ou suas cinzas” ( Curso de Direito Penal – Parte Especial – Editora Impetus, 6ª Ed.p.461).

Sem embargos de opiniões diversas, a conduta de uma funcionária (rindo e pedindo ao colega para que acenasse   para a câmera enquanto trabalhavam na preparação do corpo)  adequa-se perfeitamente na citada figura típica.

Os acusados, se condenados, podem receber pena de 01 (um) a 03 (três) anos de detenção. Ocorre que a pena de detenção é cumprida em regime semi aberto ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado (art. 33, caput, do Código Penal). Em outras palavras, dificilmente ficarão presos. Como se não bastasse, poderá ocorrer a suspensão condicional do processo pois a pena mínima é igual a 01 ano (Art. 89, Lei. 9099/95).

A ação penal é pública incondicionada, ou seja, será promovida pelo Ministério Público sem que haja necessidade de manifestação de vontade dos familiares de Cristiano Araújo. Ainda, a pena poderá ser substituída por penas restritivas de direitos (prestação pecuniária, prestação de serviços à comunidade, etc.), nos moldes do Diploma Repressivo.

O ato de compartilhar vídeos e imagens é fato atípico, podendo configurar ilícito civil (neste sentido, Luiz Flávio Gomes).


II – DA RESPONSABILIDADE CIVIL 

Se no âmbito penal a conduta não é passível de punição severa, é na seara civil que a conduta poderá ser mais gravemente reprimida.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, dispõe:

Art. 5.º (...)

X – São invioláveis a intimidade, a vida  privada, a honra e a imagem das pessoas,  assegurando o direito a indenização pelo  dano material ou moral decorrente de sua  violação”

Por sua vez, o Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

(...)

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

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Assim, presente está a responsabilidade civil por fato de terceiro. No caso em tela, responsabilidade da clínica por ato praticado por seus empregados.

Conforme já narrado, funcionários da empresa gravaram vídeo no qual faziam chacota com o cadáver de Cristiano Araújo. As imagens teriam sido feitas durante preparação do cadáver para o velório.

O Enunciado nº 451 da 5º Jornada de Direito Civil prega que: “A responsabilidade civil por ato de terceiro funda-se na responsabilidade objetiva ou independente de culpa, estando superado o modelo de culpa presumida”. Outro não é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que na Súmula 341 aduz: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”.

Carlos Roberto Gonçalves, citando Antônio Chaves, explica:

“Essa modalidade de responsabilidade complexa não compreende todas as categorias de prestação de serviços, mas unicamente as que se caracterizam pelo vínculo de preposição. Doméstico, empregado ou serviçal é a pessoa que executa um serviço, trabalho ou função, sob as ordens de uma outra pessoa, de sua família, ou ainda relativa aos cuidados interiores do lar. Preposto é aquele que está sob a vinculação de um contrato de preposição, isto é, um contrato em virtude do qual certas pessoas exercem, sob a autoridade de outrem, certas funções subordinadas, no seu interesse e sob suas ordens e instruções, e que têm o dever de fiscalizá-la e vigiá-la, para que proceda com a devida segurança, de modo a não causar dano a terceiros”.

E continua:

“Seja ou não preposto salariado, tenha sido sua escolha feita pelo próprio patrão, ou por outro preposto, o que importa é que o ato ilícito do empregado tenha sido executado ou praticado no exercício do trabalho subordinado, caso em que o patrão responderá em regra, mesmo que não tenha ordenado ou até mesmo proibido o ato. Não responde pelos atos dos empregados em greve, nem pelos que pratiquem fora das funções” (Direito Civil Brasileiro  - 9ª Ed., Saraiva, p. 105)

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. DIREITO À IMAGEM. MORTE EM ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. 1. Descabe a esta Corte apreciar alegada violação de dispositivos constitucionais, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal, ainda que com intuito de prequestionamento. 2. Havendo violação aos direitos da personalidade, como utilização indevida de fotografia da vítima, ainda ensanguentada e em meio às ferragens de acidente automobilístico, é possível reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, conforme art. 12 do Código Civil/2002. 3. Em se tratando de pessoa falecida, terá legitimação para as medidas judiciais cabíveis, o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral, até o quarto grau, independentemente da violação à imagem ter ocorrido antes ou após a morte do tutelado (art. 22, § único, C.C.). 4. Relativamente ao direito à imagem, a obrigação da reparação decorre do próprio uso indevido do direito personalíssimo, não havendo de cogitar-se da prova da existência de prejuízo ou dano. O dano é a própria utilização indevida da imagem, não sendo necessária a demonstração do prejuízo material ou moral. Precedentes 5. A indenização deve ser fixada em termos razoáveis, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso. Impossibilidade de modificação do quantum indenizatório sob pena de realizar julgamento extra petita. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ   , Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 04/11/2010, T4 - QUARTA TURMA)

Em casos análogos, já decidiu a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

REPARAÇÃO DE DANO MORAL Acidente de veículo com morte de motociclista Divulgação de fotografias do corpo da vítima pela rede mundial de computadores Imputação de responsabilidade objetiva ao Estado, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal Prova insuficiente de que tenha havido participação de servidor público na divulgação macabra Sentença de improcedência confirmada Recurso de apelação desprovido. (TJ-SP   , Relator: J. M. Ribeiro de Paula, Data de Julgamento: 02/10/2014, 12ª Câmara de Direito Público)

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. CERCEAMENTO DE DEFESA. 1. Ação para ressarcimento por danos morais suportados com os transtornos decorrentes da exposição não autorizada de fotos e vídeos do corpo de seu filho, em decorrência de morte violenta em local de trabalho, na internet. 2. Comprovação do dano moral, do nexo de causalidade e da conduta praticada por servidor público estadual. Presentes os elementos que impõem ao Estado o dever de indenizar por responsabilidade civil na forma objetiva, prevista pela Constituição da República, em seu artigo 37, § 6º. 3. Condenação por danos morais estimados em R$ 70.000,00 (setenta mil reais). Sentença reformada. Recurso parcialmente provido. (TJ-SP   , Relator: Nogueira Diefenthaler, Data de Julgamento: 27/05/2013, 5ª Câmara de Direito Público)

APELAÇÃO - IML - DIREITO A IMAGEM - RESPONSABILIDADE SUBJETIVA - NEGLIGÊNCIA - DANOS MORAIS - A responsabilidade do Poder Público por ato omissivo é subjetiva, configurando negligência quando deixa de zelar pela imagem de pessoa falecida cujo corpo encontra-se sob sua custódia. - O valor fixado a título de danos morais deve ter caráter pedagógico a fim de que o responsável passe a ter a diligência necessária para evitar possíveis danos futuros semelhantes, sem, entretanto, proporcionar enriquecimento despropositado à outra parte. (TJ-MG   , Relator: Jair Varão, Data de Julgamento: 27/03/2014, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL)

É sabido que a indenização possui caráter satisfativo e punitivo. A função satisfativa visa reparar (normalmente em dinheiro) o mal causado pela conduta dos funcionários da empresa. Entendemos que neste caso a reparação em pecúnia nada amenizará a dor causada.

A função punitiva da indenização se mostra útil para impedir que a citada empresa se abstenha de novamente praticar tais atos ou permitir que funcionários o façam. Na mesma esteira, serve para alertar a sociedade de que os atos praticados pela empresa ofendem a moral, de modo a evita reincidências.

Nesta seara, a punição deve ser rigorosa, conforme entende Clayton Reis:

 "A fixação  do  montante  indenizatório deve  ser  rigoroso,  na  medida  que  esta postura contribuirá para reprimir a ação delituosa.  Aliás, é  uma  maneira  adotada  pelos  países  civilizados  para  penalizar de  forma  contundente  aqueles  que praticam  atos  ilícitos."(Reis,  Clayton. "Dano  Moral",  Editora  Forense,  3ª  ed., págs. 97/98.)

Nesse sentido Valdir Florindo afirma: 

"Segundo,  que  o  montante  das indenizações  deve  ser  algo  inibidor, para  impedir  investidas  do  gênero.  Por isso,  deve  o  juiz  ser  rigoroso  e arbitrar cifras consideráveis, posto que o objetivo também é o castigo do autor. O montante da indenização deve traduzir-se  em  advertência  ao  lesante  e  a sociedade,  de  que  comportamentos  dessa ordem não se tolerará." (Florindo, Valdir. "Dano  Moral  e  o  Direito  do  Trabalho" Editora  LTr  São  Paulo,  1996,  pág. 144).(G.N)


III – DA REPERCUSSÃO NA SEARA TRABALHISTA

A Consolidação das Leis do Trabalho dispõe:

Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:

(...)

b) incontinência de conduta ou mau procedimento;

O conceito de mau procedimento, na lição de Gustavo Filipe Barbosa Garcia:

“O mau procedimento pode ser entendido como uma conduta irregular, faltosa e grave do empregado, mas que não se enquadra em nenhuma das outras hipóteses mais específicas da lei. Por isso, o mau procedimento acaba sendo utilizado de forma subsidiária, ou seja, na ausência de figura mais específica para o ato faltoso e grave praticado pelo empregado, autorizando a dispensa com justa causa” (Manual de Direito do Trabalho, 7ª Ed. 2015, GEN)

Vólia Bonfim Cassar:

"O mau procedimento, hipótese contida na alínea b do art. 482 da CLT, se define pela quebra de regras sociais de boa conduta. Nesta justa causa não se exige o requisito da habitualidade, já que um ato isolado basta para o tipo.96 Normalmente é praticado em serviço, mas nada obsta que excepcionalmente ocorra nas proximidades da empresa, durante o expediente ou pouco antes ou depois do trabalho” (Direito do Trabalho– 9.ª ed. Método, 2014, p. 1113).

A conduta dos funcionários é passível de demissão por justa causa, na modalidade “mau procedimento”. Ao divulgar fotos e vídeos do cadáver, os empregados macularam a honra da empresa. Certamente trará prejuízos pois clientes certamente pensarão duas vezes antes de contratar seus serviços funerários.

Como consequência da dispensa por justa causa, os empregados deixarão de receber verbas como o Aviso Prévio, Férias Proporcionais acrescidas do terço Constitucional, 13º Salário, Multa de 40% sobre o FGTS depositado e Seguro Desemprego.


IV – DA CONCLUSÃO

Conforme exaustivamente narrado, a família do cantor Cristiano Araújo contratou os serviços de uma empresa funerária para preparar o cadáver confiando que tal papel seria muito bem desempenhado. Na contramão das boas expectativas, os funcionários da empresa, agindo de maneira ignóbil, divulgaram fotos e vídeos do cantor durante a preparação (com vísceras à mostra).

A péssima conduta dos funcionários produz efeitos jurídicos nas mais variadas áreas do Direito. Na esfera criminal restou configurado o crime de Vilipêndio a Cadáver (art. 232 CP), cuja pena é de  01 a 03 anos de detenção e multa. Os autores do ilícito poderão desfrutar de vários benefícios como a substituição por pena restritiva de direitos, suspensão condicional do processo, etc.

O fato violou a honra e a imagem do falecido, ensejando a responsabilidade civil da empresa. Não bastasse a dor causada pelo falecimento, familiares correm o risco de se deparar com fotos e vídeos do ente querido, o que pode gerar sérios danos de ordem emocional. No caso em tela, a punição deve ser severa e exemplar, de modo a evitar que a empresa volte a se comportar desta maneira, bem como demonstrar para a sociedade que condutas como esta serão severamente combatidas.

Na seara trabalhista, a demissão por justa causa é desdobramento lógico da repercussão negativa que o fato gerou.


Referência

[1] Cezar Roberto Bitencourt – Tratado de Direito Penal  - Parte Especial – Ed. Saraiva, 8ª Ed., p. 549

Sobre o autor
Heitor Carvalho Silva

Advogado Criminalista em Sumaré/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Heitor Carvalho. Postagem de fotografias e vídeos de restos mortais: consequências jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4385, 4 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40416. Acesso em: 22 dez. 2024.

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