2. A ORDEM DE APRECIAÇÃO E DE EXPOSIÇÃO DAS MATÉRIAS QUE CONSTITUEM O MÉRITO DO RECURSO
Procurando solucionar as questões formuladas, em atenção à primeira e principal indagação, haverá os que dirão – apesar do patente equívoco da afirmação – que o Tribunal não chegaria a apreciar as razões ou os fundamentos para a absolvição, porque reconheceria antes a nulidade, que constitui preliminar. Nada mais inexato!
A correta análise da questão deve ter origem na premissa assentada anteriormente de que as preliminares em sede recursal se relacionam tão somente ao seu juízo de admissibilidade. Ultrapassada a admissibilidade e conhecido, portanto, o recurso, todo o mais constitui análise de mérito, estando as matérias atinentes aos erros de procedimento e aos erros de julgamento no mesmo plano de apreciação.
Em um passo adiante, deve-se reconhecer que, entre as diversas questões contidas no mérito do recurso, há também uma ordem a ser observada, já que ninguém duvida de que a análise da dosimetria penal necessariamente sucede o juízo de condenação do acusado.
A doutrina, ao tratar dos recursos, transparece, porém, não dar o devido relevo à ordem de apreciação das matérias em sede recursal, o que, indubitavelmente, contribui para as imprecisões descritas anteriormente.
Eugênio Pacelli, por exemplo, em sua reconhecida obra, aduz tão somente que “mérito do recurso também é diferente do mérito da ação penal, ainda que muitas vezes o seu objeto seja o mesmo”, e destaca que “o mérito do recurso é o pedido que nele se contém, por meio do qual se delimita a quantidade e a qualidade da matéria a ser apreciada”18.
Embora enfatize a distinção já exposta entre o mérito do recurso e o mérito da ação, o autor não enfatiza o fato de que o pleito de nulidade do processo constitui mérito do recurso, como já assinalado, tampouco apresenta uma ordem para apreciação das matérias, evitando, por exemplo, uma equivocada anulação da sentença em razão de vício de procedimento que prejudica a defesa quando possível a absolvição do réu.
Ademais, boa parte da doutrina sequer se dedica ao tema, limitando-se a tratar, de forma esquematizada e apartada, da admissibilidade e, posteriormente, do objeto e das características de cada um dos recursos em espécie.
Com o mérito de solucionar a questão, mas, a nosso juízo, sem retificar o equívoco metodológico quanto à sequência de apreciação das matérias, o já tantas vezes citado Paulo Rangel ensina que, na hipótese de haver vício de procedimento e de julgamento,
não havendo recurso do Ministério Público contra a decisão, e, consequentemente, tendo transitada em julgado para a acusação, e havendo recurso exclusivo do réu, o tribunal está autorizado a reconhecer a nulidade, porém, entendendo que a condenação está em desacordo com o direito, desde já, absolver o réu em vez de declarar nulo o processo. O princípio do favor rei deve ser chamado à colação para autorizar a decisão absolutória do tribunal.19 (grifou-se)
Malgrado concordemos que o Tribunal deve absolver o acusado nesse caso, não nos parece que se trate de uma inversão na conclusão do julgamento. Tampouco nos parece que, para tanto, se exija o trânsito em julgado para a acusação, data maxima venia.
Em verdade – e este é o ponto nevrálgico –, a absolvição se impõe exatamente porque, diante do recurso defensivo, o Tribunal aprecia primeiramente se deve absolver o acusado de todas as imputações formuladas e, apenas concluindo pela impossibilidade de fazê-lo, é que deve analisar se cassa ou não a sentença em razão de error in procedendo que prejudique a defesa.
Se tanto as questões relacionadas à absolvição como as atinentes às nulidades constituem o mérito do recurso e, portanto, estão no mesmo âmbito de cognição, e é certo que a ordem de sua apreciação pelos Tribunais não deflui de uma suposta e inexistente relação de preliminariedade entre elas, tal sequência deve ser extraída da sistemática das nulidades, da lógica subjacente ao sistema recursal em sede processual penal, estampada na Súmula do STF, Verbete nº 160, e dos princípios processuais de estatura constitucional.
Nessa linha intelectiva, a sistemática das nulidades prevista no CPP, iluminada pelo brocardo pas de nullité sans grief, por si só, já impede o reconhecimento de qualquer nulidade decorrente de vício de procedimento que prejudique a defesa quando possível absolver o réu de todas as imputações formuladas.
Sobre o tema, estatui o Digesto Processual Penal, in verbis: “Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa” (grifou-se).
Ademais, o próprio CPC ainda em vigor reforça o ora exposto, in verbis:
Art. 249. O juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenando as providências necessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados.
§ 1º O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte.
§ 2º Quando puder decidir do mérito a favor da parte a quem aproveite a declaração da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato, ou suprir-lhe a falta. (grifou-se)
E a mesma disposição vem repetida no NCPC, in verbis:
Art. 282. Ao pronunciar a nulidade, o juiz declarará que atos são atingidos e ordenará as providências necessárias a fim de que sejam repetidos ou retificados.
§ 1º O ato não será repetido nem sua falta será suprida quando não prejudicar a parte.
§ 2º Quando puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a decretação da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta. (grifou-se)
Assim, em sede processual penal, tendo o error in procedendo contrariado os interesses da defesa, não pode o Tribunal conhecer primeiramente desse vício sem analisar, antes, a possibilidade de absolvição do acusado, já que, por óbvio, quando possível a absolvição20 do réu de todas as imputações, não haverá prejuízo para a defesa, que terá obtido o resultado favorável, a despeito do erro de procedimento verificado21.
E, nesse ponto, uma anotação se faz necessária: a possibilidade de absolvição do acusado deve ser apreciada mesmo que não tenha sido requerida no recurso de quaisquer das partes 22.
Ainda que não constitua objeto do recurso da defesa ou da acusação, deve o réu ser absolvido ex officio pelo Tribunal, uma vez submetido o feito à sua apreciação pela irresignação recursal, já que, como consabido, possível a concessão de habeas corpus de ofício pelo Tribunal23.
Sobre o tema, também é consolidado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
O art. 617. do Código de Processo Penal veda, tão somente, a reformatio in pejus, sendo admissível a reformatio in mellius na hipótese em que o Tribunal a quo, ao julgar o recurso da acusação, reconheceu a insubsistência do conjunto probatório e absolveu o réu, com fulcro no art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal.24
Demais disso, a respaldar a ordem de apreciação ora indicada, deve-se ter em consideração a inteligência da Súmula do STF, Verbete nº 160, segundo a qual “é nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício”25, combinada às garantais processuais do réu, a incluir o próprio princípio do favor rei.
Nessa senda, se é assente o entendimento de que a nulidade não suscitada no recurso da acusação (e que a prejudique) não pode ser conhecida de ofício pelo Tribunal contra o réu, como preconiza a citada Súmula do STF, Verbete nº 160, com maior razão, sob pena de se inibir o pleno exercício do direito de defesa, não se pode sustentar que, diante de recurso defensivo pugnando pela absolvição – em razão de error in judicando – e pela anulação – em decorrência de error in procedendo – possa o Sodalício proceder à anulação da sentença mesmo que deva absolver o recorrente.
Se assim o fosse, haveria desestímulo a que a defesa ventilasse em seu recurso as matérias atinentes aos eventuais erros de procedimento constatados, a fim de não despertar a atenção do órgão judicial ad quem para a possibilidade de cassação da sentença, o que, por óbvio, não se pode admitir.
Em outras palavras, caso se permitisse a anulação da sentença mesmo diante de hipótese de absolvição, o recorrente que não alegasse a nulidade ocorrida estaria em uma situação jurídica de maior vantagem – já que, nessa hipótese, como já sedimentado (Súmula do STF, Verbete nº 160), a nulidade não poderia ser reconhecida contra o réu26 – do que aquele que a indicasse nas razões recursais e pretendesse a anulação, além da absolvição, o qual correria o risco de, a prevalecer a ordem de análise das matérias atualmente seguida pelos Tribunais, ver o provimento judicial ser anulado, com a retomada da marcha processual, em vez de obter, desde logo, a absolvição de todas as imputações, com a reforma da sentença.
Logicamente tal raciocínio redundaria em clara violação ao exercício da ampla defesa.
Em síntese, antes de apreciar o vício de procedimento que prejudica a defesa, dando ensejo à anulação do feito, forçoso analisar a prova dos autos com o escopo de concluir se é possível a absolvição do acusado.
E mesmo que não haja pleito de absolvição no recurso interposto pela defesa ou pela acusação, impende seja tal possibilidade analisada pelo Tribunal, que, como já dito e ressabido, pode conceder ordem de habeas corpus de ofício.
Por derradeiro, uma última hipótese deve ser analisada, já que até esse momento cuidamos dos casos em que há recurso apenas da defesa. Havendo recurso da acusação, exclusivo ou não, o único caso em que um erro de procedimento deve ser analisado antes mesmo dos fundamentos para absolvição do réu – o que não constitui exceção ao que anteriormente se expôs, mas, ao revés, representa corolário do que aqui sustentado – se verifica quando a cassação da sentença seja objeto do apelo da acusação, que exponha erro de procedimento que tenha prejudicado o exercício da persecução penal em juízo, ou, para usar a expressão do próprio Código de Processo penal, tenha prejudicado a acusação.
Nesse caso, por intuitivo, se se alega que a atividade persecutória não foi exercida de forma plena, torna-se precipitada a análise do conjunto probatório com o escopo de concluir pela absolvição ou não do acusado, já que a acusação, uma vez afastado o erro de procedimento, pode modificar o quadro fático-probatório e até jurídico até então desenhado.
Dessa forma, em casos tais, a análise da possibilidade de anulação da sentença em razão do vício de procedimento que prejudica a acusação, e não a defesa, antes de se apreciar a própria absolvição, deflui igualmente da racionalidade subjacente ao sistema recursal em sede processual penal.
Mas, frise-se, como decorre da própria Súmula do STF, Verbete nº 160, exige-se que o vício tenha sido submetido ao Tribunal por força do efeito devolutivo, em recurso da acusação que requeira a cassação da sentença, sendo vedado o seu conhecimento de ofício pelo julgador, sob pena de afronta à proscrição da reformatio in pejus (art. 617. do CPP).
De forma a ilustrar o que se expõe acerca da correta ordem de apreciação das matérias em sede recursal, elaboramos o quadro sinóptico a seguir:
MÉRITO DO RECURSO |
Ordem de apreciação |
Matéria a ser apreciada |
Quando pode ser analisada |
Fundamento |
1º |
Vício de procedimento que prejudica a acusação |
Apenas quando constituir objeto do recurso da acusação |
Vedação à reformatio in pejus, Súmula do STF, Verbete nº 160, e princípio do tantum devolutum quantum apellatum (art. 599. do CPP) |
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2º |
Absolvição do réu |
Em qualquer hipótese, mesmo que não seja objeto do recurso da defesa ou da acusação |
CPP, art. 654, § 2º, e princípio do favor rei |
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3º |
Vício de procedimento que prejudica a defesa e enseja nulidade absoluta 27 |
Em qualquer hipótese, mesmo que não seja objeto do recurso da defesa ou da acusação28 |
CPP, art. 654, § 2º, e princípio do favor rei |
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Vício de procedimento que prejudica a defesa e enseja nulidade relativa |
Apenas quando constituir objeto do recurso da defesa |
Princípio do tantum devolutum quantum apellatum (art. 599. do CPP) |
Os demais aspectos contidos no recurso relativos à dosimetria e regime inicial de cumprimento, que também constituem o mérito do recurso, seguem a sistemática já consolidada e, por óbvio, são analisados após e caso se decida pela condenação do acusado.