Um contrato contaminado de má fé é aquele realizado em detrimento da vontade do consumidor. Poderíamos dizer que esse contrato padece de vício de consentimento, elemento básico da constituição de um contrato, o que fulmina sua validade, já que a manifestação de vontade viciada anula o contrato.
Esta manifestação de vontade pode ser viciada por falta de informação adequada, seja por omissão ou falta de clareza, o que contribui para que o consumidor, ao aceitar as estipulações do contrato, se equivoque quanto a total compreensão do que se está contratando. Não podemos esquecer que o princípio da informação adequada e clara é um princípio de direito do consumidor.
Nas relações de consumo, apesar do regramento robusto conferindo direitos e exigindo deveres, a falta de clareza nas informações prestadas pelos fornecedores de produtos e serviços ou sua omissão, na maioria das vezes dolosa, alimenta as demandas na justiça, por direitos que deveriam ser exercitados plenamente, já que previstos no ordenamento jurídico.
Aquele que deixa de observar a norma consumerista é acionado na judiciário para que aquele que sofreu a lesão tenha seu direito restabelecido ao status quo ante. A justiça então é exercida em sua acepção mais genuína, que é aquela que encerra a luta pelo Direito, exercício fundamental de cidadania.
Ocorre que o judiciário, aquele que deveria brandir a espada contra aqueles que violam direitos dos consumidores, parece exercer a cegueira como se também fosse surdo.
Alheios aos ditames das normas consumeristas, e ignorando o volume das demandas, que representam a quantidade de violações, se voltam contra os próprios consumidores sob argumentos diversos, ignorando os reais motivos desse volume de demanda, qual seja, que não há medida jurídica ou moral que freie a ganância estimulada pelo sistema capitalista.
Muitos consumidores lesados em seu Direito se frustram no judiciário, porque longe de proteger aqueles que são os beneficiários da norma, os tribunais se preocupam em evitar enriquecimentos sem causa, o que faria empobrecer os fornecedores de produtos e serviços, colocando em risco o sistema criado para oprimir os mais fracos, que são aqueles que devem sustentar os mais fortes.
Entretanto, se os mais fortes não sofrerem no próprio sistema que os sustenta, a espada da justiça, nada mudará. Continuará esse engodo do dano moral versus enriquecimento sem causa, razoabilidade e proporcionalidade, que na maioria dos casos padronizam Direitos, desestimulando a verificação dos casos concretos, colocando todos no mesmo nível.
A título de ilustração narrarei um caso concreto que se não exemplifica, pelo menos contribui para uma análise e visualização do que estou querendo dizer.
Um cliente me procurou porque um famoso banco, ao realizar uma previdência privada, esta era a intenção do cliente, portanto sua manifestação de vontade estava direcionada a esse objetivo, fez um pecúlio.
O título do produto fornecido ao cliente não deixava dúvidas de que se tratava de uma previdência privada, porém o conteúdo e consequentemente as estipulações do contrato deixavam claro que se tratava de um pecúlio, onde estava definido que o beneficiário do pecúlio, em caso de morte do titular, era o próprio titular. (?)
O cliente leu o título do produto, viu que seu nome estava como beneficiário, e por isso entendeu que aquilo que estava contratando era realmente o que ele objetivava.
Após alguns meses pagando e não querendo mais continuar com o produto, e lembrando que uma das cláusulas do contrato, conforme dito pelo bancário previa a desistência e consequentemente a devolução dos valores pagos, o cliente resolveu cancelar o produto requerendo a restituição. No banco teve a surpresa de saber que se desistisse do produto receberia menos da metade do valor arrecadado até então, foi quando ele me procurou...
Qualquer pessoa na mesma situação iria entender que ali, naquela situação, o espectro da justiça não estava presente. Não é preciso ser jurista para enxergar que havia uma má fé do banco e uma lesão ao direito do cliente.
Entramos com uma petição na vara cível do domicilio do réu pedindo ao juiz que se dignasse a determinar o cancelamento do contrato, a devolução dos valores pagos e por consequência, indenização pela lesão a moral do cliente, que se consubstanciava na sua boa fé, dignidade da pessoa humana e hipossuficiência, uma vez que foi ludibriado e agredido em sua esfera psíquica.
A surpresa nada surpreendente veio com a sentença. O nobre magistrado entendeu que não houve má fé por parte do banco e que o contrato deveria permanecer vigente, pois não havia NADA escrito que o inquinasse de vicio de consentimento.
Nem o registro, no próprio contrato, de que o próprio cliente seria beneficiário, após a própria morte, dos valores acumulados, serviu como prova das alegações.
Por que isso aconteceu? Por que o juiz sentenciou desta maneira? Por que o consumidor foi lesado pela própria justiça, a quem confiou sua dor? E por que tem sido assim dia após dia com vários consumidores?
Porque o judiciário está com uma consciência ultrapassada e egoísta. Porque não consegue pensar fora da caixinha. Porque não consegue abrir mão do status quo em que está inserido. Porque está inserido em velhos paradigmas apesar da lei trazer novos paradigmas e da Constituição de 1988 ter erigido uma nova Nação.
Pensar diferente dá trabalho. Quem quer trabalhar? Não é por menos que a primeira insatisfação que emerge daqueles que trabalham na burocracia jurídica seja a da quantidade de processos tramitando.
Questionando a causa chegarão à conclusão de que é a abertura das portas do judiciário, do acesso a justiça, da inclusão, da cidadania e não a afronta aos direitos, a lesão dos bens preciosos e protegidos que são dia após dia afrontados por todos aqueles que deveriam prezá-los e observá-los, porque uma vez lesados coloca-se em risco o direito de todos, a verdadeira responsável. A insegurança emerge como um dragão cuspindo fogo queimando toda a Nação.
Voltado ao caso que narrei, ao contrato de pecúlio (seguro de vida), elaborado como contrato de adesão, o que significa que, ou o consumidor aceita ou não aceita, não cabe discutir as cláusulas, mesmo se o consumidor tiver noção de seu conteúdo, ou seja, mesmo que o consumidor seja um versado nas letras da lei.
E sendo pecúlio, os efeitos deste contrato é estipulado em favor de terceiro, ou seja, jamais o beneficiário do pecúlio poderia ser o próprio estipulante, uma vez que morto não retorna a essa vida material para receber algo que só produz efeito por aqui.
Se o juiz que analisou o caso e o Desembargador que ratificou a decisão a quo, se eles não estivessem preocupados em manter seus campos de experiência intactos, se se permitissem observar com outros olhos as questões postas para análise, se se abdicassem de enquadrar casos aparentemente parecidos como se fossem iguais, se se permitissem exercer a verdadeira justiça, sem cansaço, apesar do volume de trabalho, e sem pré-conceitos, o que condiciona nossa razão a conceitos pré-estabelecidos, teríamos uma nova consciência jurídica, calcada na verdadeira justiça e no comprometimento com a paz social e com a realização dos anseios previstos na Constituição.