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Avaliação judicial da representação adequada das entidades legitimadas para as ações coletivas no Brasil:

estudo do caso julgado pelo STJ no REsp 1213614-RJ

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Agenda 30/11/2015 às 15:26

É injustificável a preocupação judicial relativamente a aspectos como credibilidade, capacidade econômica ou mesmo conhecimento técnico-científico da associação que promove uma ação coletiva. O que importa é que ela preencha os requisitos exigidos em lei para que seja considerada parte legítima para propor a ação.

1) Introdução

No dia 08 do mês de outubro deste ano, foi divulgada notícia no site do STJ sob o título “Juiz pode rejeitar ação civil pública proposta por “associação de gaveta”. Na notícia, constava afirmação atribuída ao Ministro Luis Felipe Salomão de que ele lamenta que a legitimação coletiva venha sendo utilizada de forma indevida ou abusiva por algumas entidades, tachadas como “associações de gaveta”, que não têm origem na sociedade civil. A notícia refere-se ao julgamento do REsp n. 1213614-RJ, da relatoria do eminente Ministro.

Em alguns blogs e grupos de discussão sobre temas jurídicos, a notícia foi recebida como um indicativo da introdução, por via pretoriana, do controle judicial da “representação adequada” das entidades que promovem ações coletivas. O acórdão referente ao recurso noticiado só seria publicado semanas depois (em 26 de outubro), talvez por isso tenha ajudado a difundir essa incorreta compreensão do alcance do julgado.

No entanto, examinando-se com atenção o caso julgado, pode ser melhor compreendida a lógica de decidir do Ministro relator, que apreciou um caso com circunstâncias peculiares, não se podendo tomá-lo como precedente no sentido de que o Juiz pode e deve, em todo e qualquer caso, fazer um escrutínio das condições econômicas, da capacidade técnica e da idoneidade da entidade autora da ação coletiva.

No presente trabalho, procura-se demonstrar que o nosso sistema jurídico não autoriza que o Juiz, ao receber a petição inicial de uma ação coletiva, realize uma avaliação do preparo técnico, da capacidade econômica ou qualquer outra condição específica para o fim de conferir legitimidade para a propositura da demanda. A regra continua sendo a de que, para se propiciar o seguimento do processo coletivo, é preciso o preenchimento de requisitos objetivos (constituição da associação há pelo menos um ano e finalidade institucional da defesa dos interesses coletivos).

Observa-se que, no caso julgado pelo STJ, a entidade proponente era despida de qualquer caráter verdadeiramente associativo, motivo pelo qual o relator teve que recorrer à regra do art.125, III, do CPC, que diz que o Juiz deve reprimir “ato atentatório à dignidade da Justiça”, para no caso concreto negar legitimidade à associação autora.

É certo afirmar que o acórdão revela que não cuidou de examinar as condições da autora para a defesa dos interesses coletivos, mas de constatar que quem promoveu a ação não era de fato uma associação, mas apenas um ente constituído sob a forma associativa.

Adiante o caso é dissecado em maiores detalhes.


2) Sistema jurídico brasileiro adota legitimação ope legis para as ações coletivas  

Efetivamente, o acórdão mencionado representa um caso em que o tribunal indicou a intenção de realizar o controle da “representação adequada” de entidades autoras de ações coletivas. Não se sabe se o Ministro Luis Felipe Salomão (e os ministros que o acompanharam) tenham se influenciado pela doutrina e jurisprudências norte-americanas, em que o exame da “legitimação adequada” para as ações coletivas (as class actions) é feita pelo Juiz.

Mas é preciso advertir que o nosso sistema processual é diferente do norte-americano. Aqui são algumas entidades e associações (pessoas jurídicas), definidas por lei, que podem promover com exclusividade a ação coletiva. Lá nos Estados Unidos inclusive pessoas físicas podem promover a ação e pedir para que ela seja “certificada” como uma ação coletiva (class action). O Juiz, numa fase preliminar, faz então o exame da “representatividade adequada”, inclusive verificando se o corpo de advogados tem a expertise necessária para conduzir o caso, tudo isso com a preocupação de não prejudicar o conjunto ou a coletividade de consumidores (em caso de insucesso na demanda). Somente quando o Juiz se assegura de que a parte autora representa adequadamente os interesses coletivos, é que ele “certifica” a ação como uma class action (ação coletiva); não sendo a hipótese, ela segue tramitando como uma ação individual.

No sistema processual brasileiro, a legitimação para propor ação coletiva decorre da lei (ope legis); é a lei que estabelece os legitimados e indica os requisitos para a atuação judicial em processo coletivo. A lei já se encarregou de, previamente, avaliar a capacidade dos entes que legitimou para conduzir as ações coletivas.    O nosso sistema, portanto, é diferente do das class actions estadunidense, onde existe a possibilidade de aferição pelo magistrado acerca da adequação da representação do ente legitimado, como forma de garantir um processo que efetivamente tutele os interesses coletivos. Como requisito de desenvolvimento processual válido, é preciso que o Juiz se convença que o autor possa defender adequadamente os interesses coletivos que estão em jogo no processo. A isso se dá o nome de representação adequada, cuja principal consequência é tornar a legitimidade nas ações coletivas em ope iudicis. Como explica Antonio Gidi:

“De acordo com o direito americano, para que uma ação coletiva seja aceita, o juiz precisa estar convencido, entre outras coisas, de que o representante possa representar adequadamente os interesses do grupo em juízo. Esse é, sem dúvida, o aspecto mais importante das class actions americanas, tanto do ponto de vista teórico como prático”(1).

Todavia, o instituto da representação adequada não se aplica ao direito processual coletivo brasileiro, já que a legitimidade é conferida a associações (e outras pessoas jurídicas). Os requisitos da pré-constituição e da pertinência temática, previstos no art. 82, IV, CDC e art. 5º, V, LACP, não revelam a importação pura da construção doutrinária alienígena. A esse respeito, discorre Pedro da Silva Dinamarco:

“Entre nós não existe um verdadeiro requisito da representatividade adequada para que os legitimados possam ajuizar uma ação civil pública, ao contrário do que sustentam alguns doutrinadores. Dizem eles que as associações teriam de demonstrar essa qualidade mediante tempo mínimo de constituição e autorização expressa em seus estatutos ou por deliberação em assembléia. (...) Entretanto, esse requisito nada tem que ver com a representatividade adequada, que exprime um conjunto de fatores que demonstrariam concretamente ao juiz, durante todo o curso do processo, ser o autor pessoa idônea, que irá despender eficazmente todos os esforços necessários para a defesa dos interesses das pessoas ausentes do processo. Por outro lado, aquela autorização interna da associação é apenas requisito abstrato para que esteja plenamente satisfeita a legitimidade extraordinária em cada caso, não significando que a entidade irá realmente defender de forma adequada os interesses dos substituídos”(2).

O próprio Ministro Luis Felipe Salomão reconheceu (na ementa e voto do REsp n. 1213614-RJ) que, embora constasse do projeto que culminou na Lei n. 7.347/85, a verificação judicial da “representação adequada” foi eliminada do texto durante a tramitação no Congresso, restando tão somente a verificação de requisitos objetivos (constituição há pelo menos um ano e finalidade institucional da defesa dos interesses coletivos) para se propiciar o seguimento do processo coletivo. Confira-se o seguinte trecho:     

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“3. É digno de realce que, muito embora o anteprojeto da Lei n. 7.347/1985, com inspiração no direito norte-americano, previa a verificação da representatividade adequada das associações (adequacy of representation), propondo que sua legitimação seria verificada no caso concreto pelo juiz, todavia, essa proposta não prevaleceu, pois o legislador optou por indicar apenas quesitos objetivos (estar constituída há pelo menos 1 (um) ano e incluir, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico).

Com efeito, o legislador instituiu referidas ações visando tutelar interesses metaindividuais, partindo da premissa de que são, presumivelmente, propostas em  prol de interesses sociais relevantes ou, ao menos, de interesse coletivo, por legitimado ativo que se apresenta, ope legis,  como representante idôneo do interesse tutelado (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores – Lei 7.347/1985 e legislação complementar. 12 ed. São Paulo: revista dos Tribunais, 2011, p. 430).”

Existem autores, entretanto, que, sob a justificativa de evitar que associações sem qualquer seriedade e conhecimento técnico manejem processos coletivos e terminem por prejudicar o interesse de todo um grupo de pessoas, defendem o reconhecimento do instituto da legitimação adequada no ordenamento pátrio, como é o caso da Profa. Ada Peligrini Grinover, que alerta:

“Todavia, problemas práticos têm surgido pelo manejo de ações coletivas por parte de associações que, embora obedeçam aos requisitos legais, não apresentam a credibilidade, a seriedade, o conhecimento técnico-científico, a capacidade econômica, a possibilidade de produzir uma defesa processual válida, dados sensíveis esses que constituem as características de uma ‘representatividade’ idônea e adequada. (...) Para casos como esse, é que seria de grande valia reconhecer ao juiz o controle sobre a legitimação, em cada caso concreto, de modo a possibilitar a inadmissibilidade da ação coletiva, quando a ‘representatividade’ do legitimado se demonstrasse inadequada”(3).

Essa preocupação, todavia, não leva em consideração uma nuance importante que distingue o sistema de tutela judicial coletiva brasileira do das class actions: os membros individuais de um grupo não são atingidos por eventual sentença desfavorável em processo coletivo (art. 103 do CDC). Como adverte Vinicius Marques Rosa Emygdio:

“Há um detalhe, pois, de suma importância que não pode ser desconsiderado: enquanto no direito estrangeiro narrado acima a coisa julgada na ação coletiva alcança toda a classe envolvida no litígio, independente do seu resultado, no direito pátrio a extensão dos efeitos da decisão é mitigada, uma vez que, em regra, a sentença desfavorável não prejudica a demanda individual. E em função disso não há por que atribuir ao julgador a função de avaliar a legitimação do autor da demanda (substituto), uma vez que, além de tal tarefa já ter sido realizada pelo legislador, as conseqüências advindas da má condução processual não obstarão que os membros da coletividade pleiteiem individualmente seus direitos”(4).

Como se observa, é injustificável a preocupação judicial relativamente a aspectos como “credibilidade”, “capacidade econômica” ou mesmo “conhecimento técnico-científico” da associação que promove uma ação coletiva. O que importa é que ela preencha os requisitos exigidos em lei para que seja considerada parte legítima para propor a ação.

Ainda existe outra característica do sistema processual brasileiro que justifica afastar o controle judicial da legitimidade (adequada) para a propositura de uma ação coletiva. É que no nosso sistema é conferida ao Ministério Público a função de fiscal da lei no processo coletivo (art. 5º., § 1º., da Lei 7.347/85), sendo-lhe facultado inclusive assumir a titularidade da demanda em caso de desistência ou abandono da causa (art. 5º., § 3º.). Além disso, a Lei permite que o Poder Público e outras associações legitimadas possam ingressar no processo coletivo como litisconsortes da parte (associação) autora, em defesa dos interesses da coletividade (art. 5º., § 2º).

Como se observa, a verificação judicial da representação adequada não se coaduna com o ordenamento processual coletivo vigente no Brasil.


3) Necessidade de preservação dos interesses coletivos impede que o processo seja extinto por aspectos meramente formais

Como se explicou acima, no sistema processual brasileiro, a legitimação para propor ação coletiva decorre da lei (ope legis); é a lei que estabelece os legitimados e indica os requisitos para a atuação judicial em processo coletivo.

O caso julgado pelo Ministro Luis Felipe Salomão (relator do REsp n. 1213614-RJ) foi de uma excepcionalidade à toda vista, não significando que tenha introduzido, por via pretoriana, instituto parecido com a “representação adequada” do direito norte-americano, em que o Juiz faz uma avaliação prévia, casuisticamente, das condições da pessoa autora da ação coletiva. É certo que em trecho da ementa do acórdão e do seu voto, o Ministro destacou ser “plenamente possível que, excepcionalmente, de modo devidamente fundamentado, o magistrado exerça, mesmo que de ofício, o controle de idoneidade (adequação da representação) para aferir/afastar a legitimação ad causam de associação”. Mas estudando-se as peculiaridades do caso, vê-se que o Ministro não pretendeu que, em cada caso, o Juiz faça uma avaliação prévia das condições da entidade autora de uma ação coletiva, sob os aspectos da capacidade técnica ou econômica.

Com efeito, o Ministro foi buscar fundamento no art. 125, III, do CPC, que diz que o Juiz deve reprimir “ato atentatório à dignidade da Justiça”, para no caso concreto negar legitimidade à associação autora. É que o caso envolvia circunstância gravíssima, onde a entidade autora não era propriamente uma “associação”, mas apenas uma pessoa jurídica criada formalmente sob essa moldura, que na verdade poderia servir como artifício de atuação para interesse de um único advogado, sem qualquer atividade associativa aparente. O Ministro destacou dado revelador apurado na corte de origem, de que todos os associados da entidade proponente tinham domicílio em um único local, circunstância que “já mostra indícios de algo que deve ser apurado”.

Como se observa, fica fácil perceber que as peculiaridades do caso julgado denotavam uma situação extrema, de uma associação apenas formal, chamada “associação de gaveta”, sem qualquer atividade conhecida ou registrada, em que os sócios apenas emprestaram seus nomes para sua constituição, tanto que têm um único domicílio. O Ministro considerou, assim, que permitir uma “associação” com esse nível de aparência artificiosa possa movimentar a máquina judiciária, com isenção de custas e outros benefícios, atenta contra a dignidade da Justiça.

Mas isso não significa, como se disse, que se torne regra, em processos coletivos, de o Juiz fazer uma avaliação prévia das condições da entidade autora, quer seja do ponto de vista técnico, operacional ou econômico. As condições exigidas pelo nosso ordenamento jurídico são objetivas, bastando que a associação seja constituída há pelo menos um ano e que tenha entre seus fins institucionais a defesa de interesses dos consumidores ou das matérias previstas para o manejo da ação civil pública (art. 82, inc. IV, do CDC, e art. 5º., V, da Lei 7.347/85).

Por outro lado, a atribuição de poder ao magistrado de dizer, em todo e qualquer caso, quem é o legitimado para propor a ação coletiva poderia enfraquecer o microssistema processual de defesa coletiva de interesses em juízo. Pequenas associações ou com poucos anos de constituição, ou por qualquer outro motivo, poderiam ser impedidas de litigar em juízo em defesa de interesses coletivos, o que redundaria num enfraquecimento do sistema coletivo de defesa de direitos. E não foi isso o que pretendeu o legislador brasileiro.

A tendência processual, inclusive representada com a aprovação no Congresso do novo CPC (Lei 13.105/15), é da facilitação e ampliação da utilização das ações coletivas. O novo CPC influencia o minissistema de processo coletivos, caracterizando-se por uma tendência à coletivização dos processos individuais. Portanto, uma concepção restritiva à legitimação das entidades autoras dos processos coletivos representaria um retrocesso nessa tendência processual.

O próprio Ministro Luis Felipe Salomão teve a preocupação de evitar que seu julgado seja utilizado com concepção restritiva, ao dizer que eventual controle excepcional da legitimação para a ação coletiva só pode ocorrer contanto que não seja exercido de modo a ferir a necessária imparcialidade inerente à magistratura, e sem que decorra de análise eminentemente subjetiva do juiz, ou mesmo de óbice meramente procedimental”.

Realmente, não se deve impedir o trânsito de uma ação coletiva por concepções formais que não decorram expressamente do texto da Lei. Além disso, permitir a apreciação das condições da pessoa autora de uma ação coletiva pelo Juiz, como condição de procedibilidade, geraria uma insegurança jurídica tremenda, dado o grau de subjetivismo na análise individual feita por cada magistrado, em prejuízo, repita-se, do sistema coletivo de defesa de direitos e em violação ao art. 170, V, da CF, que coloca a “defesa do consumidor” como princípio da ordem econômica nacional.

A extinção do processo coletivo, sob o fundamento da ilegitimidade da parte autora, só deve ser adotada em último caso, diante de circunstâncias excepcionais que comprometa a própria defesa do direito que se pretende tutelar por meio da ação, nunca por questões meramente formais. “As ações coletivas, em sintonia com o disposto no artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor, ao propiciar a facilitação da tutela dos direitos individuais homogêneos dos consumidores, viabilizam otimização da prestação jurisdicional, abrangendo toda uma coletividade atingida em seus direitos”(5). Nesse sentido, o alto grau de importância e valor social de que são dotadas as ações coletivas faz com que “o Poder Judiciário deva se esmerar em, sempre que possível, ser condescendente na análise de aspectos relativos ao conhecimento das ações, deixando de lado o apego ao formalismo”, como advertiu o Ministro Mauro Campbell Marques(6).

A importância social das ações coletivas faz com que o Juiz deva sempre procurar uma prestação jurisdicional relacionada com o próprio direito material em causa, ou seja, em sede de processo coletivo prevalece o “princípio da primazia do conhecimento do mérito”, como lembrou o Ministro Mauro Campbell Marques no julgamento do REsp n. 1177453/RS, ao enxergar na regra do § 4º. do art. 5º. da Lei n. 7.347/85 indicativo da adoção desse princípio:     

“Normas específicas do microssistema em comento e indicativas do que a doutrina contemporânea convencionou chamar de princípio da primazia do conhecimento do mérito do processo coletivo é o próprio art. 5º, § 4º, da Lei n. 7.347/85, que é especialização do princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 do CPC).”

Por ter o Juiz que buscar quase sempre, no processo coletivo, conferir uma jurisdição voltada à resolução do mérito, a criação de uma jurisprudência defensiva, com a colocação de obstáculos ao exame do mérito do processo, traduz um empecilho ao acesso efetivo ao Judiciário. A colocação de empecilhos formais de toda ordem ao exame do mérito, acaba por contrariar o direito fundamental de acesso à Justiça (art. 5º., inc. XXXV, da CF), aqui compreendido como garantia de acesso aos resultados que o processo se dirige e, pois, garantia de obtenção de pronunciamentos de mérito e de satisfação prática do direito substancial.

Nesse sentido, é inadmissível a extinção de um processo coletivo com fundamento exclusivamente na circunstância de o estatuto da associação proponente ser “excessivamente genérico”, por exemplo. O princípio da primazia do conhecimento do mérito, que na verdade é uma faceta ou decorre do princípio da instrumentalidade das formas (art. 154 do CPC)(7), impede que na demanda coletiva se busque num formalismo exagerado justificativa para extinguir o processo, afetando a conquista de um direito difuso ou coletivo. Ainda que um requisito de admissibilidade para a causa não esteja completamente implementado, deve-se buscar a superação de um formalismo exagerado, tendo em vista os benefícios incomensuráveis que a ação coletiva pode trazer para um conjunto de pessoas indeterminadas. Essa é a lição de Rhennan Faria Thamay, quando discorre sobre o princípio da primazia do conhecimento do mérito no processo coletivo:     

“Com esse princípio o que se pretende é de plano o conhecimento da questão de fundo, ou seja, da matéria que se está a discutir, analisando-se o mérito do debate por mais que haja a ausência de um dos requisitos necessários à admissibilidade da demanda, sendo essa uma das formas de superar o formalismo que veda todo e qualquer acesso ao Judiciário quando os referidos requisitos não estejam totalmente implementados. (...).

Com esse princípio o que se busca é, por toda a importância das demandas coletivas, dar seguimento às ações coletivas propostas, visando conhecer seu mérito e toda a discussão e não, simplesmente, acabar com a demanda por ausência de algum dos requisitos necessários à sua admissibilidade, desde que não causem prejuízo por lógico.

Isso é relevante pela natureza das demandas coletivas, já que podem “salvar” milhares de consumidores e cidadãos de incorretas cobranças ou ainda de procedimentos incorretos que se passem, ou até pior de infrações ambientais de alta gravidade, não devendo, e muito menos podendo, serem essas demandas afastadas por mero formalismo que poderá ser superado, visto que o mérito da questão debatida é que será nesse caso relevante, já que a repercussão é social e atingirá, em regra, a um grande grupo determinado de pessoas ou até a um grupo indeterminado. Por tudo isso é que esse princípio apregoa a superação das formalidades desprestigiadoras, para sim buscar levar ao poder público o conhecimento das mais diversas lesões que todos os dias se dão em um meio social fragilizado e por vezes esquecido.”(8)

Fica evidente, assim, em face dos princípios que regem o processo coletivo e da importância social que as demandas coletivas adquirem, que não se deve realizar a extinção do processo com fundamentos de ordem estritamente formais. Não é compatível com a natureza do processo coletivo, por exemplo, extinguir a demanda diante de uma ligeira discrepância entre as finalidades estatutárias e a natureza do direito que se procura preservar e, muito menos, invocar-se uma “excessiva generalidade” do estatuto da associação autora.

Mesmo nos países em que a legitimação para a propositura da ação coletiva é apreciada ope judicis, a análise das condições dos titulares da demanda ou da “representação adequada” não é feita inspirada em motivações ou argumentos formais ou com o intuito de restringir o transcurso da ação como uma demanda coletiva, para extingui-la, mas preponderantemente para garantir que os interesses relevantes que estão em jogo sejam devidamente defendidos e preservados.

Os próprios doutrinadores brasileiros citados pelo Ministro Luis Felipe Salomão em seu voto e que defendem a possibilidade excepcional do controle judicial da “legitimação adequada”, ressaltam que esse controle deve ser feito de forma a verificar se a entidade que propõe a ação tem capacidade para atuar em defesa do grupo:

“Se, de um lado, deve o magistrado abster-se de impor óbices meramente procedimentais aos representantes adequados dos direitos coletivos, compete-lhe, de outra face, exercer o controle da representatividade com o fito de impedir a iniciativa de entes desprovidos de capacidade para atuar em defesa do grupo. Do mesmo modo que não seria justo cercear o acesso à justiça de legitimados dotados de representatividade, também não se poderia permitir que os direitos coletivos fossem defendidos por entes que desconhecessem os reais interesses da coletividade ou que não estivessem aptos a tutelá-los de maneira satisfatória. (DIDIER JÚNIOR, Fredie; MOUTA, José Henrique; MAZZEI, Rodrigo (Coords.). Tutela jurisdicional coletiva: 2ª série. Salvador: Juspodivm, 2012, p.173-174)

A preocupação, portanto, mesmo para aqueles que admitem em caráter excepcional a análise judicial da “representação adequada” da entidade autora da demanda coletiva, é com a “defesa satisfatória” dos interesses do grupo, para evitar que associações sem condições técnicas e sem qualquer credibilidade possam terminar prejudicando a defesa dos interesses coletivos. Não se deve colocar óbices meramente formais à legitimação para atuação ativa em demanda coletiva, extinguindo o processo e trazendo, com isso, consequências sociais indesejáveis. O que parte da doutrina admite que pode ser feito, de forma excepcional, é uma análise da capacidade jurídica e técnica da entidade proponente, para a defesa dos direitos tutelados.

Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. Avaliação judicial da representação adequada das entidades legitimadas para as ações coletivas no Brasil:: estudo do caso julgado pelo STJ no REsp 1213614-RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4534, 30 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44946. Acesso em: 5 nov. 2024.

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